Não há dúvidas que o crime de lavagem de dinheiro merece atenção das autoridades, e que particulares devem cooperar com sua prevenção, em especial aqueles que atuam nos setores mais sensíveis ao delito. Nesse contexto, é relevante que se incentivem programas de integridade, a fim de que as regras de cuidado, de armazenamento de informações sobre clientes e de comunicação de atos suspeitos às autoridades públicas sejam cumpridas com rigor e eficiência.
No entanto, há um elefante que anda pesadamente pela sala: o exagero.
O medo de ser associado a práticas de lavagem de dinheiro levou algumas empresas ao fetiche do compliance, a adotar regras tão rígidas, procedimentos tão pesados, que acabaram por afetar de forma significativa sua atividade econômica. O resultado: uma superestrutura de integridade, nem sempre eficaz para evitar a lavagem de dinheiro, mas com efeito
O medo de ser associado a práticas de lavagem de dinheiro levou algumas empresas ao fetiche do compliance, a adotar regras tão rígidas, procedimentos tão pesados, que acabaram por afetar de forma significativa sua atividade econômica. O resultado: uma superestrutura de integridade, nem sempre eficaz para evitar a lavagem de dinheiro, mas com efeitos colaterais significantes.
Um primeiro: a exclusão de inúmeras pessoas do mercado profissional de trabalho ou de prestação de serviços: aquelas classificadas de alto risco de envolvimento em atos de lavagem de dinheiro.
Na ausência de uma definição clara do que seja esse risco, acabam por compor esse grupo pessoas citadas em notícias como envolvidas com atos ilícitos, ainda que não processadas ou formalmente investigadas, envolvidas em investigações e absolvidas, ou condenadas e com penas já cumpridas, sem contar aquelas relacionadas com personagens politicamente expostos.
Suas contas bancárias são encerradas, seu acesso a créditos ou financiamentos é fechado, suas empresas não são contratadas, seus serviços não são requisitados.
Muitas vezes até familiares sofrem restrições em razão de um sobrenome que frequentou as mesas policiais no passado, algo incompatível com a previsão constitucional de vedação de penas perpétuas e da individualidade da sanção penal.
Tal fenômeno não é sem razão. Não poucos bancos, contadores, auditores ou empresas de qualquer espécie sofrem investigações por ter se relacionado — ainda que licitamente — com pessoas suspeitas de lavagem de dinheiro, às vezes em momentos anteriores à própria suspeita.
Um simples pagamento, uma conta aberta, uma transação, pode carregar a empresa para uma operação policial, uma busca e apreensão, com todos os impactos em custos e em desgastes derivados de tal fato. Se a regra tem sido apreender antes de perguntar, a resposta será o afastamento das instituições privadas de toda e qualquer relação com pessoas que tenham tido algum dia relações com atos ilícitos, ou politicamente expostas.
Um segundo efeito colateral: para além da exclusão da vida comercial de um contingente grande de pessoas, esse medo institucional acaba por afetar os próprios mecanismos de combate à lavagem de dinheiro.
Instituições obrigadas a comunicar às autoridades públicas atos suspeitos de seus clientes ou parceiros acabam por relatar centenas ou milhares de de operações, em um excesso prejudicial a qualquer controle ou fiscalização.
O grande número de informações acaba por inviabilizar a atividade de inteligência, por misturar milhares de dados sobre atos irrelevantes com condutas que realmente podem caracterizar a lavagem de dinheiro, encobrindo as últimas com os primeiros.
Perdem as empresas, com gastos excessivos em programas de compliance, perdem os reguladores, afogados em mares de dados inúteis, e perdem os cidadãos, cujo acesso a serviços essenciais pode ser restrito caso seu nome apareça — ainda que tangencialmente — em notícias ou expedientes de investigação.
A situação do excesso de compliance é alarmante a ponto de o próprio Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi) elaborar um relatório intitulado “High-level synopsis of the stocktake of the unintended consequences of the FATF Standarts” (2017), no qual alerta para as consequências não desejadas de uma aplicação equivocada das recomendações da da entidade.
Segundo o órgão, corre-se o risco do exagero do de-risking, o “fenômeno pelo qual instituições financeiras encerram ou restringem relações de negócios com clientes ou categorias de clientes para evitar, mais do que gerenciar, riscos relacionados com as recomendações do Gafi”. Como indica a própria instituição, esse fenômeno implica em desbancarização e incentiva o uso de meios informais para operações financeiras.
As políticas de prevenção à lavagem de dinheiro exigidas pelas autoridades públicas e de compliance adotadas pelas empresas são relevantes, mas é preciso evitar o excesso que até agora pautou tais posturas. De nada adiantam normativos complexos e pouco taxativos, cujo resultado será apenas uma enxurrada de informações sobre atos possivelmente suspeitos que não podem ser geridos ou digeridos de forma razoável.
Que os alertas do Gafi sobre os excessos do compliance sejam levados em consideração por governos e instituições privadas, a fim de revisitar e racionalizar regras e procedimentos voltados a empresas e profissionais que atuam em áreas sensíveis à lavagem de dinheiro, de impedir excessos que afetam a atividade econômica, e suprimir imprecisões ou ambiguidades regulatórias, identificadas como fontes primárias da insegurança jurídica que prejudica.
Fonte: Conjur