Reforma tributária e facilitação do comércio exterior: caminhos opostos?

O tema da reforma tributária e seus impactos sobre o comércio exterior não é novo nesta coluna, já tendo sido analisado em duas oportunidades anteriores, com muita propriedade, por outros colegas colunistas. Na primeira oportunidade, deu-se destaque aos regimes aduaneiros especiais [1], ao passo que, na segunda, buscou-se avaliar os desdobramentos da reforma sobre a carga tributária e os procedimentos de importação e a concorrência entre produtos nacionais e importados [2].

Para todos esses pontos, a conclusão apresentada foi no sentido de que as alterações previstas na proposta, e aprovada na Câmara dos Deputados, não seriam significativas e que seria possível esperar melhoramentos e simplificações, sem impactos considerados negativos aos operadores do comércio exterior.

Considerando a amplitude e complexidade do projeto em tramitação, procuraremos na coluna de hoje contribuir para a discussão a partir de uma perspectiva de facilitação do comércio exterior, abarcando aspectos selecionados do chamado Imposto sobre o Valor Adicional (IVA) Dual, composto pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Como apresentado em oportunidade anterior, a CBS substituirá IPI, PIS/Pasep, PIS/Pasep-imprtação, Cofins e Cofins-importação, ao passo que o IBS substituirá o ICMS e o ISS.

Ainda que seja preciso reconhecer que a ideia de substituição de diversos tributos, com regras e legislações específicas e uma gama complexa de exceções e tratamentos diferenciados por uma nova tributação, sob a promessa de maior simplificação e centralização é atraente, essa mudança traz consigo preocupações relevantes e que, até o presente momento, não parecem ter sido exploradas de forma aberta por especialistas e operadores. Diante disso, propomos, neste artigo, lançar ao debate existente pontos de atenção no que diz respeito ao impacto do IBS sobre as importações no Brasil.

Embora não se possa afastar a existência de dúvidas e preocupação também sobre o funcionamento da CBS, no presente momento, nos parece mais urgente tratar do contexto que circunda o IBS, visto que este contempla a transferência de competências tributárias municipais e estaduais à União, a exemplo do ISS e do ICMS, respectivamente.

O imposto, que tem como características a adoção de alíquota uniforme para todos os bens e serviços — ainda que com possibilidade de variação de alíquota entre estados e municípios — e a vedação a benefícios fiscais, traz consigo a premissa de acabar com a antiga e incômoda guerra fiscal e suas distorções competitivas e alocativas. Para tanto, a regra prevista é deque, nas operações entre entes federativos, deverá ser aplicado o princípio do destino, segundo o qual o imposto pertencerá ao estado ou ao município de destino da operação.

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Aqueles com mais de uma década de experiência no comércio exterior certamente se lembram das extensas e complexas discussões sobre a competência de arrecadação do ICMS nos casos de importações que comportavam operações interestaduais, bem como a enxurrada de glosas e autuações realizadas por fiscos estaduais disso decorrentes.

Apesar de se tratar de um passado distante e que, felizmente, foi superado, a falta de previsões claras a respeito dessa situações no novo projeto traz consigo um temor (legítimo) de que esse tipo de discussão volte a ocorrer sob a batuta do IBS. Isso porque a previsão existente é de que, nas importações, o local do fato gerador será o domicílio do destinatário, entendido como aquele que promove a entrada de bens no território nacional, ou seja, o importador — definição que não está em linha com o regime vigente e com as regras do comércio exterior.

Em se tratando de operação de importação por conta própria, a sujeição passiva é clara e aparentemente suficiente. Todavia, quando se trata de importações indiretas — por conta e ordem ou encomenda — ou mesmo de importações a serem destinadas a outra filial de uma mesma empresa em localidade diversa ou com transferência para beneficiamento com posterior retorno para revenda, a falta de regras claras e em sintonia com a legislação sobre o comércio exterior traz consigo uma sensação de déjà vu, com justificadas preocupações de que aquele antigo e caótico cenário volte a ocorrer.

Portanto, tem-se aqui um ponto altamente sensível e que precisa ser melhor debatido e aprofundado antes que o projeto da reforma seja definitivamente aprovado, sob pena de que as boas intenções do legislativo venham a representar um retrocesso em termos de segurança jurídica e facilitação do comércio.

A segunda grande preocupação despertada pelo IBS nas importações se relacionada com a implementação do Portal Único de Comércio Exterior (Pucomex), processo iniciado em 2014 e que, após múltiplas postergações, tem como previsão final de entrega o início de 2026 [3].

Dentre as principais mudanças trazidas pelo Portal Único está o chamado Novo Processo de Importação (NPI) que, provavelmente, é uma das mudanças mais aguardadas pelo Setor Privado nos últimos 20 anos.

O primeiro passo para isso foi dado por meio da Portaria Coana 77/2018, que lançou a base para o Projeto Piloto de despacho aduaneiro com a Declaração Única de Importação (Duimp). Todavia, passados quase cinco anos, a efetiva utilização da mesma foi mínima. Segundo informações fornecidas por representantes da Secretaria da Receita Federal (RFB) e da Secretaria de Comércio Exterior (Secex), entre 2021 e 2022, os despachos aduaneiros utilizando a Duimp não totalizaram 50 processos no ambiente de produção.

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Um dos principais motivos que pode ser apontado como responsável pelo desempenho inicial aquém do esperado é justamente a não adesão das Secretarias da Fazenda Estaduais ao NPI.

Além de o Comitê Nacional de Política Fazendária (Confaz) — que reúne todas as Secretarias da Fazenda Estaduais — ter se mostrado reticente quanto à Duimp desde o início, o que se observou ao longo dos últimos anos foi a expressa orientação de algumas secretarias estaduais à não utilização desse novo despacho aduaneiro. A razão parece ser bastante simples: a falta de integração entre os sistemas (Estadual e Federal) demanda recursos e adaptações no modus operandi atualmente visto. Assim, a migração para a Duimp antes de que a integração ocorra implica aumento de trabalho manual por parte dos auditores-fiscais estaduais.

Poucos estados iniciaram, de fato, o projeto de integração entre o sistema estadual e o Pucomex, sendo Paraná e Santa Catarina os poucos exemplos concretos. Ainda que não caiba aqui discutir as razões pelas quais os projetos não foram iniciados pelas demais unidades federadas, cabe destacar que se trata de fato preocupante e que coloca em risco o próprio cronograma da janela única, cuja expectativa é de que a transição para o NPI e o desligamento do Siscomex se realize entre 2025 e 2026.

Tal expectativa parece ainda mais longe de ocorrer diante dos rumos da reforma tributária. Com a previsão de entrada em vigor do IBS para daqui a alguns anos, impactando também a dinâmica de arrecadação dos impostos estaduais, questiona-se: as Secretarias da Fazenda Estaduais investirão recursos humanos, tecnológicos e financeiros para iniciar, dar continuidade ou finalizar os projetos de integração sistêmica? Faz sentindo aos Estados realizar tal investimento quando constatado que, com a reforma, esse sistema não terá mais utilidade?

Por outro lado, cabe ressaltar que, sem as Fazendas Estaduais, o Novo Processo de Importação não alcançará o potencial de economia em tempo e em recursos mencionado nos documentos oficiais, nas palestras e nas pesquisas acadêmicas. Isto porque, dentre as principais vantagens prometidas está o módulo Pagamento Centralizado de Comércio Exterior (PCCE), por meio do qual o desembaraço das mercadorias seria agilizado e os atuais problemas com pagamento dos tributos devidos na importação, principalmente com relação à comprovação de recolhimento do ICMS devido, seriam sanados.

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Se, por um lado, parece ser factível que os estados repensem a validade e o cabimento dos investimentos necessários à plena implementação do Pucomex esperados no momento atual, por outro, é certo que esperar pela reforma para que o sistema entre totalmente em vigor geraria um grande problema e traria (ainda mais) insegurança jurídica.

Não é demais lembrar que, enquanto o cronograma do Pucomex prevê o seu término para 2026, a fase de transição da reforma, em tese, só terminará em 2033 — tempo demasiadamente longo e incompatível com a urgência de efetivação de medidas de facilitação do comércio exterior pleiteados pelos operadores.

Há quem avente a hipótese de que a alta gestão do Portal Único se veja forçada a implementar unilateralmente o NPI, passando a exigir apenas a Duimp, mesmo sem que as Fazendas Estaduais estejam efetivamente integradas. Em nossa visão, esse cenário — apesar de pouco provável — ameaçaria a fluidez das importações e poderia resultar em tempos de desembaraço maiores do que os atualmente vistos, já que os auditores-fiscais estaduais precisariam autorizar manualmente a maior parte dos processos de ICMS, principalmente em virtude dos complexos sistemas de créditos tributários vigentes.

Neste cenário crítico, os benefícios esperados do Pucomex seriam seriamente comprometidos, com possibilidade de prejuízo às empresas que atuam no comércio exterior, com destaque para aquelas localizadas em estados que possuem significativos volumes de operação em razão dos chamados “tratamentos tributários diferenciados”.

As questões ora apresentadas são pontos relevantes e que devem ser atentamente discutidos e enfrentados pelas partes envolvidas, públicas e privadas, com vistas a garantir que a reforma tributária — que a cada dia parece mais próxima da aprovação — traga, como prometido, simplificação e harmonia. Sem que tais pontos sejam endereçados de forma técnica e cuidadosa, corre-se o risco de que a reforma corra em sentido contrário às medidas de facilitação de comércio que a União, com muito esforço, vem implementando, cenário altamente indesejável e que traria impactos negativos à já frágil competividade das empresas brasileiras.

[1] MEIRA, Liziane. Reforma tributária e impactos da bala de prata nos regimes aduaneiros especiais. 16/5/2023. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-mai-16/territorio-aduaneiro-impactos-bala-prata-regimes-aduaneiros-especiais. Acesso em 12/8/2023.

[2] MEIRA, Liziane. A reforma tributária está saindo, mas como fica o comércio exterior? 01/8/2023. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-ago-01/territorio-aduaneiro-reforma-saindo-fica-comercio-exterior. Acesso em 12/8/2023.

[3] SISCOMEX. Cronograma de Implementação. Disponível em https://www.gov.br/siscomex/pt-br/conheca-o-programa/cronograma-de-implementacao. Acesso em12/8/2023.

Fonte: Conjur

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