Falsa antinomia: relação entre acordos para evitar dupla tributação e regime do Simples

Na Solução de Consulta Cosit nº 220, de 24 de julho de 2024, o contribuinte narra que presta serviços de treinamento e desenvolvimento gerencial a uma empresa sediada no Peru. Considerando o acordo para evitar a dupla tributação firmada pelo país com o governo do Peru, questiona sobre a dedução do imposto de renda e a contribuição social pagos alhures.

Receita Federal - Fachada - Brasília - Agência Brasil - Ministério da Fazenda - Superintendência -

A Receita Federal foi consultada sobre a possibilidade de aplicação de acordo para evitar a dupla tributação por contribuintes optantes pelo Simples Nacional.

 
 

Em situação fática semelhante, outro contribuinte, também optante pelo Simples Nacional, que indicou prestar serviços de engenharia para empresa domiciliada no Chile, com base em acordo para evitar a dupla tributação, consultou a RFB sobre a possibilidade de dedução do imposto de renda retido em favor do governo chileno pelo tomador dos serviços. A resposta consta da Solução de Consulta Cosit nº 219, de 24 de julho de 2024.

O entendimento da Receita refletido nas soluções de consulta é de que não seria possível a dedução dos tributos pagos. Ainda que reconheça que, em tese, a remuneração pelos serviços independentes comportaria a dupla tributação (nos termos do artigo 14, ‘a’, dos acordos) e que, portanto, seria aplicável o mecanismo de crédito (artigo 22, 2), viabilizando a dedução do tributo pago na apuração do imposto doméstico, ainda assim, haveria uma antinomia com a norma que trata do Simples Nacional (Lei Complementar nº 123/2006 — LC 123/2006).

Diante da suposta antinomia, a Receita sustenta a incompatibilidade da aplicação dos acordos para evitar a dupla tributação aos optantes pelo Simples Nacional com base em sete argumentos:

  • (1) a restrição da LC 123/2006 (artigo 18, §14) a redução da carga fiscal a determinados tributos (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) para receitas de exportação, não permitindo a redução relativamente ao imposto de renda;
  • (2) ausência de autorização da LC 123/2006 para que a União conceda isenção ou redução de percentual de imposto sobre a renda (artigo 18);
  • (3) a impossibilidade de compensação de créditos e débitos exceto se ambos fossem apurados dentro do regime do Simples Nacional (LC 123/2006, artigo 21, §9º);
  • (4) a impossibilidade de o contribuinte optante pelo Simples Nacional obter qualquer outro benefício fiscal não previsto na lei complementar de regência (LC 123/2006, artigo 24, §1º);
  • (5) o acordo para evitar a dupla tributação teria status de lei ordinária no sistema brasileiro e só prevaleceria sobre outras leis ordinárias diante da sua especialidade;
  • (6) a Constituição (artigo 146, §1º) exigiria lei complementar para regulação do Simples Nacional (reserva material) e, dada a natureza de lei ordinária aos acordos para evitar a dupla tributação, a LC 123/2006 prevaleceria; e
  • (7) a facultatividade do regime do Simples Nacional, o que impediria ao contribuinte fruir outros benefícios além dos expressamente previstos no regime da LC 123/2006.

Acordo para evitar dupla tributação

Não obstante os fundamentos apontados, chama-se atenção para o fato de que não há real antinomia para que se decida sobre a prevalência da lei complementar, quer em razão da reserva material, quer por razões de hierarquia. O acordo para evitar a dupla tributação não concede benefício fiscal, não dispõe sobre os critérios quantitativos da norma tributária ou institui, majora ou reduz tributo.

Atua em outro plano [1]. Diz com a possibilidade de o Estado tributar determinada renda (regras de alocação do poder de tributar) e, havendo direito de ambos estados contratantes de tributar, aponta qual o mecanismo adequado para aliviar a dupla tributação. Nos casos analisados, utiliza-se o do crédito, autorizando a dedução do tributo pago no Peru ou no Chile.

Não há, portanto, conflito para que se alegue a prevalência hierárquica da lei complementar ou a reserva material fixada pela Constituição. Reforça-se: não há antinomia notadamente porque os escopos dos diplomas normativos são distintos. A LC 123/2006 trata, dentre outras coisas, do regime tributário próprio ao Simples Nacional. Já os acordos para evitar a dupla tributação dizem respeito ao poder do Estado brasileiro de tributar determinadas categorias de renda e, havendo dupla tributação, como neutralizá-la.

As soluções de consulta não se sustentam, e outras razões poderiam ser invocadas. Para reforçar o ponto, vale a observação de que, para enquadramento no regime, a LC 123/2006 traz requisito a partir da receita bruta da empresa. Houve majoração do valor e hoje o limite está em R$ 4,8 milhões (LC 123/2006, art. 3º, II). Parcela importante dos contribuintes está submetida ao regime do Simples.

Prevalecendo o entendimento da Receita, bastaria ao governo majorar o regime ou criar regimes específicos com base em lei complementar para descumprir o que acordou com outros países. Violaria, assim, os compromissos internacionais assumidos, em comportamento que não respeita a boa-fé esperada.


[1] Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Notas sobre os tratados internacionais sobre tributação. In AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do Amaral (coord.). Tratados internacionais na ordem jurídica brasileira – 2. ed. , rev., atual. e ampl. – São Paulo : Lex, 2014, p. 319.

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