O contrato de seguro é essencialmente marcado pelo risco. Enquanto elemento que independe da vontade das partes, o risco se caracteriza pela possibilidade da ocorrência de um evento futuro e incerto que ameaça o interesse do segurado [1], de modo a justificar a necessidade de proteção, “relativo à pessoa ou a coisa”, por meio do contrato de seguro (artigo 757 do Código Civil). A obrigação do segurador é, portanto, a de garantir o interesse legítimo do segurado contra riscos predeterminados mediante o recebimento de uma contraprestação. É dizer, o seguro é a transferência do risco do segurado para o segurador.
O mutualismo é também uma característica fundamental do seguro. A partir da contribuição dos prêmios, os riscos são pulverizados entre os segurados, formando um fundo comum que suportará o ônus em caso de sinistro. Daí porque a boa-fé no contrato de seguro desempenha um papel crucial na análise precisa do risco assumido pela seguradora, uma vez que essa avaliação é resultado das informações fornecidas pelo segurado.
Qualquer desajuste nesta etapa — seja por omissão de dados, seja pela prestação de informações distorcidas ou imprecisas — pode desequilibrar o contrato. Afinal, “a qualidade, a transparência e a veracidade das informações transmitidas ao segurador são requisitos que impactam a possibilidade de obter uma cobertura de seguro-garantia, desde a formação, interpretação, execução e extinção contratual” [2].
Essa assimetria também decorre de outro aspecto. O risco não é estático e pode ser alterado durante a vigência do contrato, seja por ação do segurado ou por fatores alheios ao seu controle. A primeira hipótese interessa à reflexão, isto é, quando o segurado é o agente responsável pela modificação do risco, agravando a probabilidade de sinistro (ou suas consequências) a ponto de perder a garantia.
O artigo 768 do Código Civil estabelece que o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato. Doutrina e jurisprudência não conseguiram alcançar um consenso a respeito da temática do agravamento do risco, especialmente no tocante ao requisito da “intencionalidade”, devido à subjetividade do conceito. Apesar das divergências, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) delimitou como característica de conduta capaz de gerar a perda do direito à garantia a intencionalidade do agente, ou seja, a existência de conduta volitiva capaz de aumentar o risco.
Além da intencionalidade, é essencial analisar a conduta do segurado no contexto do sinistro. O STJ enfatiza a necessidade de que exista um nexo de causalidade entre o comportamento do agente e o evento. Um exemplo disso ocorre nos casos de embriaguez ao volante, hipótese em que a conduta do sujeito deve ser determinante para o evento.
Nesse sentido: “[…] o estado de embriaguez do condutor de veículo, caso seja determinante para a ocorrência do sinistro, é circunstância apta a excluir a cobertura do seguro contratado, por constituir causa de agravamento do risco [3]“. Do mesmo modo: “[…] o entendimento jurisprudencial recente procurou buscar amenizar os efeitos do agravamento dos riscos por ato voluntário do segurado, pendendo para a solução de que se deve analisar a conduta do segurado no contexto do sinistro”. [4]
Seguro para danos derivados de vendaval
Se a intencionalidade é atributo da conduta que agrava o risco, logo, aquilo que foge da vontade e do controle do segurado não tem aptidão para atrair a consequência prevista no artigo 768.
Essa reflexão pode ser ilustrada pela apelação cível nº 0003946-39.2012.8.26.0590, julgada pela 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo [5]. O caso envolvia reclamação de segurado de apólice de seguro empresarial (multirriscos) com cobertura para danos derivados de vendaval. Neste caso, embora comprovada a ocorrência de vendaval (risco coberto pela apólice), a seguradora argumentou que o segurado havia agravado o risco ao não realizar os reparos no telhado por ocasião de um primeiro sinistro decorrente do mesmo fator climático ocorrido no mesmo local.
O Juízo, no entanto, afastou a tese defensiva ao ponderar que os reparos não foram efetuados em virtude da ausência de pagamento da indenização securitária a tempo e modo. A conclusão prestigiou a boa-fé no sentido de que “não se poderia exigir que o segurado arcasse com o prejuízo decorrente do evento coberto para aguardar a boa vontade da seguradora em cumprir sua obrigação de indenizá-lo”.
A temática do agravamento do risco também foi debatida na apelação cível nº 1052968-83.2020.8.26.0100 pela 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, desta vez no contexto do seguro-garantia. O acórdão fundamentou-se na constatação de que alterações contratuais significativas foram realizadas sem o conhecimento da seguradora, o que resultou em um claro agravamento do risco e ofensa aos artigos 768 e 769 do Código Civil.
No caso em análise, o tribunal registrou que os atrasos e falhas da empresa tomadora no curso do contrato de empreitada não foram comunicados à seguradora e que a providência era necessária para que a companhia, então, “pudesse reavaliar o risco do negócio à luz da nova realidade”.
A decisão enfatizou que a comunicação dessas alterações era não apenas uma obrigação contratual, mas também uma medida necessária para que a seguradora pudesse ajustar sua avaliação de risco de acordo com os novos termos estabelecidos. Essa interpretação consagra a boa-fé objetiva especialíssima aplicável ao seguro e sintetiza em que medida a conduta do segurado pode resultar em desequilíbrio da equação econômica do contrato.
Como visto, os atributos do agravamento do risco capazes de resultar na perda do direito à garantia estão sendo moldados e definidos à luz da casuística. A jurisprudência tem desempenhado papel fundamental nesse processo, buscando interpretar e aplicar os requisitos legais de forma a equalizar os interesses das partes envolvidas. Além disso, a boa-fé tem sido o princípio orientador dessas decisões, garantindo que seja preservado o equilíbrio da mutualidade.
[1] ALVIM, Pedro. O contrato de seguro. 3ª edição, Rio de Janeiro, 1999. p. 215.
[2] POLETTO, Gladimir Adriani. O seguro-garantia. São Paulo: Editora Roncarati, 2021. p. 53 e 183
[3] AgInt no AREsp 1.629.694/PB, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 21/09/2020, DJe de 24/09/2020.
[4] STJ – REsp: 1175577 PR 2010/0004761-9, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 18/11/2010, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/11/2010
[5] TJ-SP 00039463920128260590 SP 0003946-39.2012.8.26.0590, Relator: Mariella Ferraz de Arruda Pollice Nogueira, Data de Julgamento: 24/04/2018, 9ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 25/04/2018.
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