A distinção entre as perspectivas macro e micro é usual em diversas ciências. Na Física se estuda a macrofísica, envolvendo teorias como a da relatividade geral, e a microfísica, acerca do conjunto de temas não visíveis a olho nu, como as partículas subatômicas. Na Biologia se analisa a macrobiologia, relativamente aos grandes organismos vivos, e a microbiologia, para os microrganismos, como as células. Nas Ciências Sociais, o clássico livro de Michel Foucault A microfísica do poder analisa as relações interpessoais envolvendo pequenas áreas em que tal poder é exercido, diferentemente da perspectiva macro, que se relaciona às instituições, como o Estado e a Igreja. Essa distinção é usual na Economia, na qual é consagrado o uso das expressões microeconomia e macroeconomia. Tal diferenciação também é aplicável ao Direito, e diversos autores já a utilizaram, como Eros Grau, Gilberto Bercovici, Luiz Fernando Massonetto e Esteban Cottely, conforme expus em texto acadêmico.
De forma simplista, pode-se dizer que são diferentes óticas sobre o mesmo objeto. Observado o fenômeno sob lentes de um microscópio, teremos uma visão micro daquele objeto; se utilizarmos lentes de um telescópio, a visão será macro. Não se pode afirmar que uma ótica é prevalente sobre a outra, mas que se constituem em diferentes métodos de análise, ambos válidos e que podem ser conjugados para se melhor compreender o objeto, que, na prática, se correlaciona com as duas visões, pois são intercambiantes.
Essa distinção é aplicável também ao direito sancionatório. De forma didática, pode-se dizer que as normas jurídicas advindas do Poder Legislativo regulam de forma macroscópica as condutas humanas, considerando os fatores gerais e abstratos relativos a uma determinada conduta. Por exemplo, o artigo 121 do Código Penal (que é uma lei – ato do Poder Legislativo) prevê como crime a conduta de matar alguém. Porém, existem atenuantes e agravantes a essa conduta, tais como matar alguém por motivo fútil (o que agrava o crime) ou matar alguém no exercício regular de uma função (o que é até uma excludente na tipificação do crime). A análise dessa conduta no caso concreto é feita por decisão do Poder Judiciário (usualmente uma sentença), que individualiza a norma geral (lei) criada pelo Poder Legislativo. Aqui se vê o macro e o microjurídico colocados na previsão legislativa (macro) e na decisão judicial individual (micro).
Discute-se no Congresso Nacional a concessão de anistia política aos envolvidos nos eventos ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023. Para quem não recorda, trata-se de uma enorme sublevação da ordem na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, na qual foram depredados o patrimônio público na Praça dos Três Poderes, com um quebra-quebra generalizado nos prédios do Congresso Nacional e, em especial, no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal. Mais de 600 pessoas foram presas, a maior parte delas já foi julgada e os culpados foram condenados a penas diversas, obedecido o devido processo legal.
O mais recente ex-presidente da República, junto com outros representantes do alto escalão de seu governo, foram indiciados pela Polícia Federal. Os autos foram remetidos à PGR (Procuradoria Geral da República), que elaborou uma denúncia não se limitando aos fatos ocorridos no dia 8/1, mas demonstrando o desenrolar de um processo, ou seja, os diversos atos realizados ao longo do tempo visando alcançar uma finalidade determinada, que, segundo a peça processual, visavam abolir o Estado Democrático de Direito, dentre outros crimes ali capitulados. Pode-se dizer que a PGR analisou os fatos e os conectou, apresentando-os como um filme (visão macro), e não como uma fotografia estanque de um único evento em determinado local (visão micro). A denúncia foi recebida pelo STF e o julgamento desses réus deve ser iniciado em breve.
Parece óbvio que, considerado isoladamente, de forma microscópica, o uso de um batom para pichar uma estátua se insere como um crime menor, uma depredação leve do patrimônio público. Porém, analisada no contexto, isto é, adotada uma visão macrojurídica, esse ato isolado se conecta a muitos outros fatos, formando o conjunto analisado pelo STF. Não dá para isolar um ato (o uso do batom na estátua) de todos os demais fatos sob análise (a sublevação e a depredação com finalidade determinada), embora a pena seja individual.
Anistia sob lente telescópica
Retorna-se à anistia que está em debate no Congresso Nacional. Alega-se que outras já foram concedidas, com destaque para a veiculada em 1979 (Lei 6.683/79) que concedeu anistia “a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos”, incluindo os servidores públicos “punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”. Essa anistia foi reafirmada pela Emenda Constitucional 26/85, que convocou a Assembleia Nacional Constituinte.
No contexto comparativo direto, na qual se usa um microscópio para ver o fenômeno sob uma perspectiva microjurídica, tendo havido anistia em 1979, seria possível haver anistia semelhante em 2025; todavia, tal análise não esgota a matéria.
Deve-se analisar o contexto macro, isto é, usar lentes telescópicas para se ver com amplitude a cena completa. Em agosto de 1961 ocorreu a renúncia do ex-presidente Jânio Quadros, o que deu início ao processo promovido por militares para impedir a posse do vice-presidente João Goulart, e com reação por parte daqueles que buscavam a solução legalista. Nessa quadra histórica, o que ocorreu foi a busca de uma quebra do Estado Democrático de Direito que então existia, e que culminou com o golpe militar de 1964 e a profusão de atos institucionais e complementares que se seguiram. Olhando por essas lentes telescópicas, pode-se dizer que a anistia de 1979 perdoou (1) aqueles que cometeram crimes a partir de setembro de 1961 em busca da manutenção e da quebra do Estado Democrático de Direito que existia sob a égide da Constituição de 1946; (2) e daqueles cometeram crimes até agosto de 1979 contra e a favor do Estado Não-Democrático de Direito, que teve seu destaque após 1964.
O que se busca em 2025 é uma anistia para quem cometeu crimes tentando violar o Estado Democrático de Direito instaurado no país desde a Constituição de 1988. O cotejo entre os fatos apresenta uma situação completamente diferente, demonstrando o absurdo da equiparação entre as duas situações, a de 1979 com a de 2025. Anistia para os sublevados de 2025 é uma ideia fora do lugar, pois trata como iguais situações diversas. Em 1979 foram anistiados os dois polos antagônicos, embora um deles ainda permanecesse no poder até mesmo em 1985, quando aprovada a EC 26, e em 2025 busca-se uma anistia somente para quem se sublevou contra o Estado Democrático de Direito reinante, e que permanece vigente. Não há identidade entre as duas situações.
Caso o Congresso aprove uma emenda constitucional anistiando os atos ocorridos em 08/01/23, seguramente o STF será levado a se manifestar, gerando enorme tensão entre esses dois Poderes da República, pois não haverá nem mesmo a possibilidade de veto normativo por parte do Poder Executivo.
Haverá quem alegue que a anistia de 1979 foi referendada pela Emenda Constitucional 26/85, e a que se discute em 2025 também o será por meio de uma emenda constitucional. E ainda observar que o STF, em 2010, declarou improcedente a ADPF 153, centrada em debater o conceito de crimes conexos constante da Emenda Constitucional 26/85 (bem como na Lei 6.883/79).
Rota de colisão
Observemos novamente as semelhanças e as diferenças entre as duas situações, utilizando o mesmo método micro e macro.
Macroscopicamente haverá semelhança nas duas situações em face de ser possível uma emenda constitucional conceder anistia política, e que o STF já reconheceu que, sendo concedida por uma emenda constitucional, não há como reverter o ato político proferido (ADPF 153).
Microscopicamente haverá diferença ao se constatar que todos os votos (maioria e minoria do placar de 7×2, com uma ausência e um impedimento) embasaram-se no argumento de que a EC 26/85 havia inaugurado uma nova ordem constitucional no Brasil, após o período militar, fundando as bases da redemocratização, que deu ensejo à Constituição de 1988, fruto de um acordo político que não deveria ser objeto de revisão pelo STF – a dissidência ocorreu no âmbito do alcance semântico do texto acerca da expressão crimes conexos. A situação em 2025 não tem o mesmo status político, tornando-se essa emenda constitucional, caso venha a ser aprovada, apenas mais uma das mais de 130 já existentes, sem qualquer caráter fundante de uma nova ordem jurídico-política constitucional.
Se aprovada uma emenda constitucional anistiando os crimes cometidos em 8/1, haverá no Brasil uma rota de colisão entre o Congresso Nacional e o STF, com o Poder Executivo de mãos atadas. É bem possível que o STF trilhe o caminho relacionado, admitindo a ação que seguramente será proposta por qualquer dos diversos legitimados a fazê-la, e possivelmente decidirá pela inconstitucionalidade da emenda constitucional da anistia. Crise complexa à vista, que paralisará as instituições e dificultará a governabilidade e a economia. Repito: aprovar uma emenda constitucional de anistia para os crimes ocorridos em 8/1 é uma ideia fora do lugar, para usar a consagrada expressão de Roberto Schwarz.
Identificado o iceberg, não precisamos rumar direto para ele. Não somos o Titanic e não devemos colocar em xeque nossa jovem democracia. Desviemos a rota, pois existem muitos problemas reais a serem enfrentados, como o recente tarifaço do presidente Trump, dos Estados Unidos. Não precisamos de uma crise artificial, que está sendo enfrentada de conformidade com as normas do Estado Democrático de Direito.
Em tempo: embora este texto seja centrado na anistia política em debate no Congresso, que seria para todos os envolvidos nos eventos de 8/1 (foco macrojurídico), está sendo usado como argumento retórico a revisão das penas, que é algo a ser feito caso a caso pelo STF (foco microjurídico).
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