A demanda por maior fiscalização dos serviços públicos constitui tema recorrente no debate público brasileiro contemporâneo. Duas questões permeiam a percepção social: de um lado, a gravidade associada à recorrência de fraudes, práticas de corrupção e desvios de finalidade diante de mecanismos insuficientes de fiscalização; de outro, a suposta falta de instrumentos de controle e de supervisão sob as atividades desempenhadas por servidores públicos. A reforma administrativa, pauta do momento, espelha isso ao buscar maior eficiência, desempenho e accountability no serviço público.
Na realidade, a maior parte das atividades públicas é submetida à atuação frequente de múltiplas instâncias de controle (institucional e social) e fiscalização. Diariamente há a divulgação de denúncias de irregularidades detectadas pelos órgãos de controle interno, como a Controladoria-Geral da União (CGU), e de controle externo, como o Tribunal de Contas da União (TCU), além do trabalho do jornalismo investigativo e das funções fiscalizatórias exercidas pelo Ministério Público e pela Polícia Federal. Essas estruturas contribuem para a identificação e a exposição de irregularidades na gestão pública em todas as suas esferas.
Contudo, há um segmento do Estado que permanece relativamente à margem do escrutínio institucional e social: as universidades públicas federais. Ainda que as estruturas de controle mencionadas também se apliquem a essas instituições, a sua atuação é menos frequente. A própria natureza das atividades desempenhadas no ambiente universitário — marcadas pela complexidade acadêmica e pela multiplicidade de arranjos administrativos —, somada à autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial assegurada pelo artigo 207 da Constituição, gera, na prática, um certo distanciamento em relação à fiscalização externa cotidiana.
Esse cenário contribui para que fragilidades de governança e integridade institucional permaneçam menos visualizadas pelos principais atores do sistema de controle estatal. Isso, contudo, não significa a inexistência de irregularidades nesse ambiente. Ao contrário: ainda que não ocupem as manchetes com a mesma frequência que os outros setores da administração pública, é possível, mediante uma rápida pesquisa (como aqui, aqui e aqui), identificar episódios nas universidades que envolvem desvios de recursos, fraudes e outras práticas incompatíveis com os princípios da legalidade e da moralidade administrativa.
Em relatório de 2018, o TCU apontou, em todas as universidades analisadas, exposição média ou alta a riscos de fraude e corrupção, resultado de fragilidades sistêmicas nos mecanismos de controle interno e de governança. Em uma atuação igualmente preventiva, a CGU determinou, por meio da Portaria CGU nº 57/2019, que os órgãos da administração pública federal direta, autárquica e fundacional executem, estruturem e monitorem planos de integridade institucional. Essa atuação do TCU e da CGU nas universidades, embora relevante e corriqueiro, apresenta um caráter predominantemente episódico e pontual. Tal limitação decorre da própria natureza e da abrangência das competências desses órgãos, cujas atividades de controle são estruturadas em ciclos, planejamentos anuais e ações direcionadas por critérios de materialidade e risco.
Tríade do controle interno
A resposta a esse cenário de limitações no acompanhamento contínuo encontra-se no próprio ordenamento jurídico brasileiro, que prevê mecanismos estruturantes voltados ao fortalecimento da fiscalização permanente e à adoção de estratégias preventivas de integridade nas universidades. Entre eles, destaca-se a consolidação dos sistemas de controle interno nas organizações públicas, com a presença articulada de três instâncias estratégicas: a Ouvidoria, a Corregedoria e a Auditoria Interna. Essa tríade, resultado da aglutinação de normativos diversos (como a Lei nº 10.180/2001 e os Decretos nº 5.480/2005 e o 9.492/2018), constitui parte fundamental dos sistemas de integridade e responsabilização institucional, atuando na escuta social, na apuração de desvios funcionais e na avaliação da eficácia dos controles internos. Ao analisar a estruturação dessas três macrofunções de controle interno nas universidades, no entanto, o resultado exprime fragilidade.
As auditorias internas são responsáveis por avaliar atos de gestão, operações administrativas, contratos, processos de planejamento, estruturas de governança e gerenciamento de riscos. Também exercem função de assessoramento institucional, contribuindo para o aprimoramento da administração pública. Utilizando técnicas reconhecidas internacionalmente, as auditorias promovem maior efetividade nas decisões institucionais, ampliam a transparência e fortalecem a confiança pública. Por estarem inseridas diretamente na estrutura das universidades, configuram-se como a primeira instância na detecção de irregularidades, no aperfeiçoamento dos processos internos e no enfrentamento à corrupção e aos desvios, através da emissão de recomendações tecnicamente fundamentadas.
As competências atribuídas às unidades de auditoria interna contrastam com as condições estruturais em que operam. Estudos apontam que essas unidades enfrentam baixo grau de independência funcional e alta rotatividade de pessoal (Santos; Formiga; Peixe, 2021), além de problemas recorrentes como insuficiência de servidores, falta de capacitação técnica e ausência de apoio institucional por parte da gestão superior (Rodrigues; Sampaio; Machado, 2020). Em 2025, o orçamento previsto para as Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) foi de R$ 6,5 bilhões, valor que não inclui os recursos adicionais provenientes das receitas movimentadas pelas Fundações de Apoio. Apenas em 2021, por exemplo, as fundações tiveram receitas superiores a R$ 8 bilhões. A fiscalização de todo esse montante recai sobre um contingente reduzido: segundo dados do Portal da Transparência, há apenas 225 auditores internos atuando em todas as Ifes do país, representando uma média de três auditores por universidade.
O levantamento de Rodrigues, Sampaio e Machado (2020), revelou que 47,54% das unidades de auditoria das Ifes, entre 2015 e 2019, não dispuseram de pessoal suficiente para executar suas atribuições. O estudo estimou a necessidade de, ao menos, 118 novos servidores para suprir essa lacuna. Além disso, os autores destacam que a complexidade e a abrangência das atividades realizadas são desproporcionais ao quantitativo de profissionais disponíveis. Como reflexo direto da escassez de recursos humanos, 86,89% das unidades não possuem qualquer divisão interna, forçando os servidores a desempenharem múltiplas tarefas sem a devida segmentação ou especialização temática.
A precariedade não é uma realidade apenas nas auditorias internas. No caso das corregedorias, estudo de Córdova et al. (2023) identificou que apenas 37 das 63 universidades analisadas (59%) possuíam uma unidade estruturada e independente da Corregedoria. Quanto à definição clara do papel institucional da corregedoria — como órgão responsável por analisar e apurar denúncias e responsabilidades —, esse aspecto estava presente em apenas 27 instituições (43%). A exigência de sigilo, elemento essencial ao adequado funcionamento dessas unidades, também não é plenamente atendida: somente 9 universidades (14%) disponibilizam um canal acessível para recebimento de denúncias e fornecimento de informações. A independência em relação à alta administração, como reitoria e órgãos de apoio, é observada em apenas 15 instituições (24%). Por fim, quanto à transparência de sua atuação, apenas 9 universidades (14%) divulgam relatórios ou informações públicas sobre suas atividades.
As ouvidorias das universidades públicas federais também apresentam deficiências estruturais que comprometem seu funcionamento. Muitas operam com poucos servidores, recursos limitados e subordinação direta à alta gestão, o que reduz sua autonomia. Segundo Santana (2017), essa limitação impede que a ouvidoria exerça funções além da simples recepção de manifestações. Amorim e Melo (2024) identificam a falta de recursos humanos como o principal obstáculo à execução adequada das atividades, agravado pelo acúmulo de funções atribuídas à unidade. Esses fatores reduzem a efetividade das ouvidorias e dificultam sua atuação como instrumento de controle e melhoria institucional.
Risco admitido
A persistência dessas fragilidades evidencia não apenas carências estruturais, mas também uma postura institucional de naturalizar os riscos e vulnerabilidades decorrentes da ausência de mecanismos adequados de controle. Mais do que uma mera omissão, trata-se de uma decisão de gestão que, deliberadamente ou por inércia, opta por manter distância de estruturas que poderiam exercer fiscalização sobre os seus próprios atos administrativos. A alocação de novos servidores nas unidades é uma das respostas mais diretas a esse cenário; no entanto, as restrições orçamentárias e os limites impostos aos códigos de vagas tornam essa medida, embora urgente, de viabilidade remota no curto prazo.
Há, contudo, alternativas viáveis e sem impacto orçamentário que podem gerar resultados positivos no fortalecimento do controle institucional. Uma delas é o estabelecimento das unidades de auditoria interna, corregedoria e ouvidoria com independência funcional e desvinculação administrativa da reitoria, assegurando maior autonomia em suas atividades. Outra medida consiste no apoio direto da alta gestão à reestruturação e atualização dos portais institucionais dessas unidades, por meio da articulação com os setores de comunicação e tecnologia da informação, garantindo canais acessíveis, informativos (com o uso de dashboards e outras ferramentas de visualização interativa de dados, por exemplo) e orientados à transparência ativa. Por fim, a promoção de uma cultura institucional de valorização das atividades dessas unidades, com incentivo à qualificação, ao cumprimento das recomendações de auditoria e ao julgamento diligente das demandas da corregedoria e da ouvidoria.
Antes de se recorrer a (ou até pedir por) reformas administrativas drásticas, medidas excepcionais do Poder Executivo ou alterações legislativas de grande alcance, as universidades públicas federais poderiam avançar em integridade, segurança institucional e governança com a simples observância dos normativos já existentes — estruturando adequadamente suas unidades de auditoria interna, corregedoria e ouvidoria. O fortalecimento desses mecanismos não depende de inovação normativa, mas de vontade institucional e compromisso com a transparência pública.
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