O ministro Flávio Dino disse há poucos dias que o STF terá que restringir o manejo de Habeas Corpus pelas partes. Exemplificou a questão pontuando que o tráfico privilegiado, que é um dos temas mais comuns em concessões de Habeas Corpus no STF, é “matéria de fatos e provas”.
“Será que nós vamos ficar examinando milhares e milhares de Habeas Corpus para deles não conhecer? Dizendo que, por exemplo, tráfico privilegiado é matéria de fatos e provas e que não seremos nós que vamos infirmar a conclusão das instâncias ordinárias? De que serve isso? Para que serve isso?”, questionou.
Algumas questões exsurgem da declaração do ministro. Primeiro, se há pedidos de Habeas Corpus no STF (e no STJ) é porque algo não funcionou nas duas instâncias do sistema. Não adianta reclamar das águas do rio se as margens é que o oprimem. Quem examinar minimamente o cotidiano das práticas jurídicas verá o quão dura é a realidade no chão da fábrica. Gente presa por qualquer coisa. Não há uma conscientização no primeiro grau para o não recebimento de acusações sem justa causa. Não há um rigor com as provas ilícitas e com as nulidades processuais. Não há obediência dos precedentes do STF e STJ (lembremos das queixas do ministro Salomão e agora do ministro Dino). É fácil determinar prisões por meio de temporária ou preventiva. Ou negar recorrer em liberdade. Mormente se o réu é pobre. Ainda não conseguimos superar De La Torre Rangel, que dizia: La ley es como la serpiente; solo pica al descalzos.
Se o STF tem de examinar Habeas de furto de pastéis ou caramelos, é porque alguém prendeu mal ou condenou erradamente. E o fiscal da lei deveria ter cuidado disso com mais precaução. Os exemplos são incontáveis. Há até furto de baldes de água que foi parar no STF. Conto o caso: em novembro de 2021, a ConJur noticiou Habeas Corpus deferido pelo ministro Alexandre de Moraes liberando uma mulher do estado de Minas presa há quatro meses por ter furtado água. Emblemáticos. Assim:
1) Um juiz mineiro decretou a preventiva,
2) o Tribunal de Minas considerou a prisão regular,
3) o Superior Tribunal de Justiça negou o HC por ela ser, além de tudo, perigosa e, finalmente,
4) o STF teve que entrar em campo para dizer o óbvio: prender alguém por esse tipo de crime deixaria Sir Coke de cabelos em pé (falo em Coke porque foi citado no belo voto do ministro Alexandre de Moraes).
Bem recentemente há um caso que ilustra melhor ainda o que estou dizendo:
1) sujeito foi condenado à pena de regime semiaberto, com prisão preventiva decretada, portanto, sem direito a recorrer em liberdade (afinal, para essa pena nem cabe preventiva, segundo o STF);
2) TJ-SP negou Habeas Corpus;
3) STJ negou Habeas Corpus:
4) o ministro André Mendonça não conheceu do HC, mas concedeu ordem de ofício (uma jabuticaba , mas, enfim, muito útil). O ministro disse que o Supremo já reconheceu a incompatibilidade da imposição ou manutenção da prisão preventiva se o réu for condenado a uma pena diferente do regime fechado.
5) portanto, se havia precedente (atenção, aqui de novo, o que é isto – um precedente?), por qual razão não é aplicado?
6) sob o império do precedentalismo, cabe perguntar: se o objetivo dos tribunais superiores é fixar teses que se prestam a coisas futuras, qual é a razão de essas coisas futuras se repetirem à exaustão no “sistema”?
Eis as margens do rio (sistema) que comprimem o curso da água (STF e, também, STJ).
Mas, vejamos também a violência das águas.
Com efeito, há uma profunda questão estrutural no sistema de administração da justiça. Como segundo ponto lembro que não basta, em breve, o STF decidir em um determinado caso que, a partir de então, não mais aceitará determinados pedidos de HC (não sei como faria isso, de todo modo). Lembremos do passado (2016): por meio do HC 126.292, de Itapecerica da Serra, o STF fez uma virada na presunção da inocência, da noite para o dia. E isso durou até 2019.
Receio que o STF faça algo desse tipo, ao ler nas entrelinhas a fala do ministro Dino. E disso surge um terceiro ponto: os tribunais superiores não têm o poder de alterar a legislação por meio de julgamentos dos quais extraem-editam uma tese, depois chamada de precedente. Teses não são precedentes (ver aqui, aqui, aqui e aqui).
Portanto, a restrição ao direito do Habeas Corpus não pode ser feita sem a intervenção do legislador, locus da discussão genuíno (embora o parlamento “não se ajude muito” nos últimos tempos). A comunidade jurídica não pode simplesmente analisar o problema apenas na ponta de cima. Urge que discutamos os dois andares da jurisdição. A forte jurisprudência defensiva acaba também gerando mais pedidos de Habeas Corpus. De fato, o sistema está em um impasse:
1) existe uma jurisprudência defensiva pelo qual a vagueza da Súmula 7 (STJ) e 279 (STF) permite uma espécie de katchanga real, servindo para admitir ou inadmitir recursos;
2) quando há a inadmissão no tribunal de REsp ou RE, vem a Súmula 182 para ceifar liberdades (lembremos que a Súmula 182 é fruto de julgamento de cédula rural);
3) a Súmula 691 é outro obstáculo – hoje ilegal, mas que continua sendo usada (ler aqui artigo meu com Bheron);
4) outro fator é o número de RHCs, decorrentes de indeferimentos dos tribunais de segunda instância e também do STJ;
5) E o Tema 339/STF – que, em linhas gerais, permite ao julgador a exposição sucinta das razões decisórias – que simplesmente obsta todo e qualquer recurso extraordinário que tenha por objetivo levantar discussão sobre violação ao artigo 93, inciso IX, da Constituição (aí é fácil, certo?). Perceba que este enunciado talvez seja o maior obstáculo dentre todos aqueles nominados. Isso porque, além de, no mais das vezes, ser decidido no próprio tribunal de origem (nem subindo o recurso extraordinário ao seu destinatário final – o STF), trata da cláusula de accountability do Poder Judiciário e da democracia. A forma como se nota, na práxis, a utilização de tal tema praticamente estiola qualquer possibilidade de se levar ao conhecimento do Supremo questões atinentes à violação do dever de fundamentação;
6) Há um acúmulo de processos e um aumento da demanda, mas não há o aumento estrutural do número de ministros e servidores – preferindo o sistema apostar em inteligência artificial, tornando o direito das partes dependente de máquinas.
Dentre estes elencados acima, tantos outros poderiam ser citados para demonstrar que a existência do Habeas Corpus – e a sua ampla veiculação perante os tribunais superiores – em verdade soa como um importante instrumento para superar as barreiras intransponíveis da jurisprudência, que, em nome de uma pretensa eficiência, suprime cada vez mais os direitos fundamentais dos cidadãos.
Há um provérbio latino — Ne nuntium necare (“não mate o mensageiro”) — usado para ilustrar a atitude comum de reis e autoridades da Antiguidade que, ao receberem más notícias, em vez de enfrentarem a realidade ou lidarem com ela, ordenavam a execução do mensageiro. Restringir ainda mais o manejo de habeas corpus pelas partes é fechar os olhos para os sintomas do sistema de administração de justiça criminal brasileiro. É matar o mensageiro.
Voltando à metáfora do rio e das margens que o oprimem, vê-se que não são apenas as margens as responsáveis pela violência das águas; o próprio rio tem o seu grau de responsabilidade.
Portanto, não nos tirem o último bastão do direito, que, aliás, foi o primeiro (tragam-me o corpo, por isso Habeas Corpus). Por isso o chamamos de Remédio Heroico. Deve haver um bom motivo, pois não?
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