Uma estorinha antiga envolvendo coelhos, leões, lobos, professores e juízes
Em 2012, escrevi uma sátira do relativismo e do livre convencimento — ideia que pode hoje ser estendida aos tempos de “narrativas” e “pós-modernidades” jurídica. Basta abrir as redes sociais. Para os céticos do direito — que dizem que o direito é indeterminado — eis minha contribuição.
Como dizem alguns professores, o direito não espelha a sociedade; logo, não tem muito o que fazer e o resultado dos julgamentos é produto das convicções pessoais… É o que dizem os céticos.
Bom, se eu aceitar esse tipo de pessimismo, tenho de parar de lecionar. E até de lidar com o direito. Esse tipo de pessimismo epistêmico tem consequências. Graves. Será que os professores (céticos-realistas) não se dão conta? Que tipo de juristas estamos formando desse modo? “É assim mesmo, diz o doutor”?
Bem, se é assim, vamos todos pra casa.
Volto à estorinha. Antiga. Construída por autor — ao que tudo indica — desconhecido, para mostrar a “vontade do poder” do orientador de teses de mestrado e doutorado (qualquer semelhança com o que ocorre em decisões judiciais não é mera coincidência, mormente no que concerne ao livre convencimento, livre apreciação e decisões em embargos de declaração; não esqueçamos que o TJ-SP diz que o erro judiciário pelo qual Edmilson foi condenado a 170 anos decorreu do livre convencimento — vejam, não é alegação minha; é do TJSP). Na época, a coluna fez mais de 80 mil leitores. Em meia hora.
Então. Esse tipo de pessimismo epistêmico tem consequências. Perguntem ao Edmilson.
A tese de doutoramento do jovem Coelho
Num dia lindo e ensolarado, o coelho saiu de sua toca-triplex com o notebook e pôs-se a trabalhar, bem concentrado. Usava óculos de aros grossos, o que lhe dava uma aparência séria e intelectual. Pouco depois, passou por ali a mestranda raposa (ela fazia dissertação sobre o relevantíssimo tema “O Papel dos Embargos e por que milhares são fulminados sem que sejam lidos: Um Olhar Retrospectivo”), e viu aquele suculento coelhinho, tão distraído, que chegou a salivar. No entanto, ela ficou intrigada com a atividade do coelho e aproximou-se, curiosa:
R – Coelhinho, o que você está fazendo aí tão concentrado?
C – Estou redigindo a minha tese de doutorado – disse o coelho sem tirar os olhos do trabalho, apagando o cigarro nervosamente.
R – Humm … e qual é o tema da sua tese?
C – Ah, é uma teoria provando que os coelhos são os verdadeiros predadores naturais de onívoros como as raposas.
R – Ora! Isso é ridículo! Nós é que somos os predadores dos coelhos! Isso está em qualquer livro que trata do assunto, como, por exemplo, o recém-lançado “Manual da Cadeia Jurídico-Alimentar para Estagiários”. Há, ainda, um outro, chamado “Manual Simplificado da Alimentação dos Onívoros)”. Mas, diga-me: qual é a sua teoria de base? Epistemologicamente falando (ele usava o conceito correto de epistemologia e não como hoje se usa por aí, confundindo análise com as condições da análise — a raposa lera Bachelard).
C – Minha tese está sustentada na Jurisprudência dos Interesses. Isto é: embora a lei diga que as raposas são os predadores dos coelhos e outros animais, fui buscar, a partir de uma análise sociológica, os interesses que moveram o legislador. Logo, fiz uma “ponderação” à brasileira e encontrei a solução. E fez sinal com as patinhas como se estivesse pesando coisas…! De todo modo, vou detalhar isso melhor. Venha comigo à minha toca-biblioteca, que lhe mostrarei toda a bibliografia.
O coelho e a raposa entram na toca-biblioteca. Livros à mancheia. Poucos instantes depois, ouvem-se alguns ruídos indecifráveis, alguns poucos grunhidos e depois silêncio. Em seguida o coelho volta, sozinho, e mais uma vez retoma os trabalhos da sua tese, como se nada tivesse acontecido.
E o coelho é inquirido pelo recém-formado bacharel Lobo
Meia hora depois passa um lobo, recém-formado e ativo nas redes sociais (já produzia “conteúdos” o malandrinho). Levava debaixo do braço sua mais recente aquisição, o livro “Como Aprender Direito Por Meio de Raciocínios Pequeno-gnosiológicos”.
Ao ver o apetitoso coelhinho tão distraído, agradece mentalmente à cadeia alimentar por estar com o seu jantar garantido. No entanto, o lobo também acha muito curioso um coelho trabalhando naquela concentração toda, manejando o seu flamante Apple. O lobo então resolve saber do que se trata aquilo tudo, antes de devorar o coelhinho:
L – Olá, jovem coelho. O que o faz trabalhar tão arduamente?
C – Minha tese de doutorado, bacharel Lobo – e acendeu mais um Cohiba. “Nós, coelhos, somos os grandes predadores de vários animais carnívoros, inclusive dos lobos.”
O lobo não se contém e farfalha diante da petulância do coelho.
L – Caríssimo coelhinho! Isto é um despropósito. Nós, os lobos, é que somos os genuínos predadores dos coelhos. Até aquele livro, “Direito dos Animais Descomplicado”, que já vendeu mais de 20 edições, diz isso. Também o livro “ABC da Predação das Espécies sem as partes chatas” aponta nessa direção. Tem também as publicações plastificadas que explicam bem isso. E na internet está cheia de artigos mostrado isso. Os coaches dizem isso. Mas, diga-me: qual é a sua matriz teórica?
C – Minha tese – e fez uma pausa para uma baforada fazendo círculos de fumaça no ar – está fulcrada na Jurisprudência dos Valores. Sim, a Wertungsjurisprudenz (era terrível esse coelho; agora já estava lançando mão de outro aporte). Por debaixo da lei que diz que, vocês, lobos, são os nossos predadores, estão os valores da sociedade. São esses valores que devem guiar o intérprete no momento da aplicação do direito. E eu os descobri. Descobri também o princípio da famelicidade (que garante aos coelhos famintos o seu quinhão alimentício). São cláusulas abertas. O direito é indeterminado, não sabe? Tenho também o princípio da “evidência”, dos filósofos Chitão e Xororó. Isto é, a lei é apenas a ponta do iceberg. O ius difere da Lex… O barco dos textos jurídicos bate na parte invisível do iceberg (neste instante, seu olhar de superioridade parecia insuportável para o Bel. Lobo). A propósito, se você quiser, eu posso apresentar a minha prova. Você gostaria de me acompanhar à minha toca-biblioteca, para um chá, um charuto e uma discussão teórica de alto nível?
O Lobo não consegue acreditar na sua boa sorte. Ambos desaparecem toca-biblioteca adentro. Alguns instantes depois, ouvem-se uivos desesperados, ruídos de mastigação e … silêncio. Mais uma vez o Coelho retorna sozinho, impassível, e volta ao trabalho de redação da sua tese, como se nada tivesse acontecido… Mastiga, agora, um Partagás, cuja cinza ameaça cair a todo instante…
E o Coiote cursando mestrado profissional encontra o Coelho
No dia seguinte, passa um Coiote, este cursando mestrado profissionalizante. Seu trabalho de conclusão versaria sobre “Como Construir Petições no ChatGPT melhor que o advogado – um (novo) Olhar Gestional” (genial ele, não?). Mesma história. Diálogo parecido. E o Coiote, rolando de tanto rir, faz a mesma pergunta: e em que você se baseia? Li tudo a respeito no livro “Como Aprender O Direito Natural dos Animais em 15 minutos”, já em sua 30ª edição”.
E o Coelho responde: baseio-me na “ponderação de princípios” (ou valores, porque princípios são valores, você bem sabe… — pelo menos para os adeptos do caráter teleológico dos princípios). Na verdade — e, com isso, o doutorando Coelho já estava na sua terceira “matriz teórica” — “fiz um sopesamento e facilmente cheguei à conclusão de que, entre os valores em jogo, facilmente se conclui que são os coelhos os predadores dos coiotes.”
Afinal, se um princípio qualquer inventado pode derrotar o Código Civil ou uma ponderação pode derrotar um precedente de ADC (e citou alguns casos), por qual razão…e continuou falando por mais quinze minutos, atordoando o Coiote. E concluiu: afinal, discricionariedade por discricionariedade, mormente como ela é aplicada em terrae brasilis, preferi a ponderação, a “pedra filosofal da interpretação”. É mais charmosa… Pego um princípio (ou um valor) em cada “mão”, pondero, e, pronto… Aí está a solução. E nem preciso construir a regra adstrita. Lembro, ainda, disse o Coelho, “que até fiquei tentado a usar algumas teses pragmaticistas-realistas, retiradas do direito norte-americano. Daria no mesmo”. E, fazendo ar de desdém, deu por encerrada a discussão, não sem antes convidar o visitante a visitar a sua imensa toca-biblioteca.
Na sequência, ambos — coelho e coiote — desaparecem toca-biblioteca adentro. Alguns instantes depois, ouvem-se uivos desesperados, ruídos de mastigação e … silêncio. Mais uma vez o coelho retorna sozinho, impassível, e volta ao trabalho de redação da sua tese, como se nada tivesse acontecido… Seu olhar, agora, era blasé. Como se tivesse pena do mundo.
E o segredo da força do Coelho é, finalmente, revelado ao mundo
Na cena que só pôde ser vista em circuito fechado, dentro da toca-biblioteca do Coelho vê-se uma enorme pilha de ossos ensanguentados e pelancas de diversas ex-raposas e, ao lado desta, outra pilha ainda maior de ossos e restos mortais daquilo que um dia foi de lobos, além de ossos de coiotes…
Ao centro das duas pilhas de ossos, charutos cubanos e garrafas de Dom Perignon, um enorme Leão, satisfeito, bem alimentado e sonolento, a palitar os dentes… Na camiseta que usava podia-se ler a frase: Orientador. Que o leitor(a) pode substituir por… bom, cada um saberá.
Moral da estória (se é que preciso explicitar):
– Não importa quão absurda é a tese (ou causa) que você pretende sustentar;
– Não importa se você não tem o mínimo fundamento científico;
– Não importa o tipo de livro que você está lendo;
– Não importa se os seus experimentos nunca cheguem a provar sua teoria;
– Não importa nem mesmo se suas ideias vão contra o mais óbvio dos conceitos cunhados pela tradição da teoria (no caso, do direito)…
– O que importa, mesmo, é o poder (discricionário ou o nome que se dê), é o subjetivismo, é o solipsismo que está por trás do seu argumento (ou quem seja o seu orientador, se estivermos a tratar de uma tese…). O que importa é a “vontade do poder”; o que importa é que a “interpretação seja um ato de vontade”, seja essa “vontade” entendida como poder discricionário, arbitrário, busca dos interesses, dos valores etc (se estivermos a tratar de uma decisão judicial…). Importa mesmo se você tem poder para dizer — por exemplo, para dizer o que é um precedente. Com isso, sempre se terá a resposta que se quiser.
Metáforas, estórias, histórias, metonímias etc., servem para ajudar a entender a realidade.
Esta coluna, que reproduz algo que escrevi em 2012 (e nada mudou de lá para cá) é uma homenagem aos otimistas que acreditam que vale estudar, que a doutrina tem papel relevante, que existem fatos, que não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.
O ensino jurídico vai bem? Se assim está bem para você, retiro tudo o que disse. E cada um pode sair por aí dizendo “qualquer coisa sobre qualquer coisa”. Igual ao coelho da alegoria acima. Basta procurar em seu armário gnosiológico uma teoria prêt-à-porter. Sempre haverá alguma tese doutrinária ou algum “precedente” de caráter solipsista para sustentar que Chimbinha é genial. E se a “corte de vértice” disse… então é porque é. Evidente.
Como bem disse outro dia o grande L.F. Veríssimo: rios são metáforas fortes. Contundentes. Daí o mistério de buscar a nascente dos rios. Imagine-se a emoção dos exploradores da National Geographic quando descobriram os pingos da geleira do Nevado Mismi, no Peru, onde aparece o filete d’água que se transforma no Amazonas. E a alegria de Joseph Conrad quando encontrou os primeiros pingos do Nilo, no coração escuro da floresta do Congo. Diz Veríssimo: as nascentes são metáforas mais obscuras: do começo e da razão profunda de tudo. Do primeiro mistério.
Concluo com Guimarães Rosa: “só na foz dos rios é que se ouvem os murmúrios de todas as fontes”. Talvez o que falte para o direito é buscar a nascente.
Acham que não? Perguntem o que o Edmilson acha. Edmilson existe.
Post Scriptum: este artigo foi produzido em ambiente controlado, por profissional habilitado e nenhum coelho, raposa, lobo ou coiote foi maltratado durante a sua realização!
E vejam que belos óculos usa o professor Leão.
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