A proteção à marca e a liberdade religiosa

Uma igreja registra a marca no INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) e, anos depois, move ação judicial contra outra congregação que utiliza denominação semelhante. O caso, aparentemente simples, esconde uma complexa questão jurídica: até que ponto o direito de propriedade industrial pode limitar a liberdade religiosa?

A situação se repete em alguns tribunais do país. Organizações religiosas, munidas de registros marcários, buscam impedir que outras comunidades de fé utilizem nomes que consideram similares aos seus. Do outro lado, congregações argumentam que termos bíblicos e expressões de significado espiritual não podem ser monopolizados por uma única entidade.

O conflito revela uma tensão fundamental: a proteção da propriedade intelectual versus o direito fundamental à liberdade religiosa. Este texto examina como a doutrina e Superior Tribunal de Justiça têm enfrentado essa questão, buscando um equilíbrio que respeite tanto os interesses da propriedade intelectual quanto os valores inerentes à liberdade de expressão religiosa.

Diversas são as nuances jurídicas que permeiam tais disputas, explorando a natureza das marcas evocativas ou fracas, a especificidade do registro de marcas mistas, a aplicabilidade da teoria da distância e as implicações relativas à liberdade de crença e culto. A problemática central reside em harmonizar a proteção conferida ao titular de uma marca, que visa garantir a distintividade e evitar a concorrência desleal, com a garantia fundamental da liberdade religiosa, que abrange a autonomia na escolha do nome pelo qual uma comunidade de fé se identifica.

Direito fundamental à liberdade religiosa e a identidade das comunidades de fé

A liberdade religiosa, consagrada no artigo 5º, inciso VI, da Constituição, é um pilar do Estado democrático de Direito, assegurando a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, o livre exercício dos cultos e a proteção aos seus locais. Este direito transcende a esfera íntima do indivíduo, projetando-se na dimensão coletiva por meio da formação de comunidades religiosas. A escolha do nome de uma entidade de fé, neste contexto, não é uma mera designação comercial; ela carrega um significado profundo, refletindo a identidade, a doutrina e a missão do grupo.

Como ensina o ministro Luís Roberto Barroso [1], a dignidade da pessoa humana, fundamento da República, possui uma origem intrinsecamente ligada à tradição religiosa, sendo o alicerce e a finalidade dos direitos fundamentais. A liberdade religiosa, portanto, está absolutamente relacionada com a dignidade, e o respeito à opção religiosa de cada um é condição para a cidadania plena.

A doutrina jurídica defende uma indissociabilidade entre os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana, uma vez que esta “é tanto o fundamento quanto o fim dos direitos fundamentais, para os quais atua como paradigma e por meio dos quais aflora concretamente.” [2]

Assim como os demais direitos fundamentais, portanto, a liberdade religiosa “está absolutamente relacionada com a dignidade da pessoa humana e com a cidadania” [3] e, “para que um indivíduo possa se considerar cidadão e portador de dignidade juridicamente protegida, a sua opção religiosa deve ser respeitada, como parte de sua liberdade de consciência” [4].

O exercício da fé é uma expressão do direito à personalidade, merecendo especial tutela constitucional e infraconstitucional, conforme o artigo 11 do Código Civil. Restringir indevidamente o uso de uma nomenclatura escolhida por uma comunidade religiosa, especialmente quando baseada em textos sagrados, pode configurar um cerceamento desproporcional da liberdade de crença e de culto.

Muito embora a propriedade intelectual tenha amparo constitucional, é preciso reconhecer que essa proteção não pode representar um embaraço absoluto ao exercício da liberdade religiosa. Nesse norte de ideias, assim como a proteção da marca, a livre profissão da fé também encontra respaldo constitucional, devendo ambos os direitos coexistirem de forma equilibrada e harmoniosa  (artig 5º, VI e XXIX, da Constituição).

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A disputa, nestes casos, não é puramente mercantilista, mas atinge o cerne da autonomia e da expressão identitária de grupos religiosos. A utilização de nomes para designar igrejas está, assim, diretamente ligada ao exercício coletivo do direito fundamental à liberdade religiosa. O Estado laico tem o dever de proteger o livre exercício das diversas religiões, garantindo tratamento isonômico. Embora o direito de propriedade intelectual sobre marcas também possua guarida constitucional (artigo 5º, XXIX, CF/88), sua aplicação no contexto religioso deve ser ponderada com a liberdade de fé, buscando a coexistência harmônica desses direitos.

Mitigação da exclusividade marcária: marcas evocativas, fracas e a possibilidade de convivência

A Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96), em seu artigo 124, incisos XIX e XXIII, condiciona a violação do direito de marca à possibilidade de gerar confusão no consumidor ou associação indevida. No âmbito religioso, é comum o uso de termos extraídos de textos sagrados ou de conceitos espirituais amplamente difundidos.

Tais expressões, por sua natureza, podem ser consideradas “fracas” ou “evocativas”, pois possuem baixo grau de distintividade intrínseca ao sugerirem características do “serviço” religioso. A apropriação exclusiva de termos como “Nova Aliança”, “Cruz do Calvário” ou “Pentecostes”, dentre milhares de outros exemplos, presentes em diversos textos bíblicos, por uma única instituição, é questionável, pois poderia configurar uma afronta à liberdade de crença e ao livre acesso ao patrimônio espiritual comum.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem se consolidado no sentido de que marcas fracas, sugestivas ou evocativas, por constituírem expressão de uso comum, atraem a mitigação da regra de exclusividade, admitindo-se sua utilização por terceiros de boa-fé.

Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça destacou que marcas registradas com termos que remetem à própria religião devem coexistir, mitigando-se a exclusividade:

RECURSO ESPECIAL. MARCA. ABSTENÇÃO DE USO E INDENIZAÇÃO. SINAL SUGESTIVO. EXCLUSIVIDADE. MITIGAÇÃO. CONCORRÊNCIA DESLEAL. CONFUSÃO. NÃO OCORRÊNCIA.
Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
Cinge-se a controvérsia a saber se o detentor do domínio vozesmormons.com.br na internet viola o direito de propriedade da marca mormon, registrada pel’A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.
A jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça entende que marcas fracas, sugestivas ou evocativas, que constituem expressão de uso comum, de pouca originalidade, atraem a mitigação da regra de exclusividade decorrente do registro, admitindo-se a sua utilização por terceiros de boa-fé. Precedentes.
No caso, o sinal distintivo não tem ligação direta com a entidade que a registrou, mas remete à própria religião por ela professada e, principalmente, aos seus adeptos, o que caracteriza um sinal meramente sugestivo, devendo a coexistência ser tolerada.
Na hipótese, rever o entendimento do Tribunal de origem, que concluiu que a confusão nos fiéis e a concorrência desleal não se caracterizaram, exigiria o reexame de provas, procedimento vedado pela Súmula nº 7/STJ.
Recurso especial não provido.
(STJ – REsp: 1912519 SP 2020/0337381-8, Data de Julgamento: 14/06/2022, T3 – TERCEIRA TURMA, Rel. Min. MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA. Data de Publicação: DJe 17/06/2022)

Este entendimento é crucial. Se uma denominação está intimamente ligada à doutrina de uma comunidade, fundamentada em textos sagrados, e se o seu uso é anterior ao registro por outra entidade, ou se atuam em contextos geográficos distintos, a coexistência dos nomes pode ser a solução mais equilibrada. A boa-fé e a ausência de confusão real entre os fiéis são fatores determinantes para permitir a convivência, harmonizando a propriedade intelectual com a liberdade religiosa.

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Proteção da marca mista e análise conjunta dos elementos

Muitas entidades religiosas registram suas marcas na modalidade “mista”, que combina elementos nominativos (palavras) e figurativos (logotipos). Nestes casos, a proteção conferida pelo INPI abrange o conjunto, e não cada elemento isoladamente. Quando o titular de uma marca mista busca impedir o uso de um nome semelhante, a análise de colidência não deve se restringir à comparação do elemento nominativo.

Deve-se considerar o conjunto marcário como um todo, incluindo a logomarca, as cores e a estilização. Se os elementos figurativos são significativamente diferentes, a ponto de tornar os conjuntos inconfundíveis para o público-alvo, a mera semelhança parcial no nome pode não ser suficiente para caracterizar violação de marca.

O Superior Tribunal de Justiça preconiza a análise do conjunto marcário como um todo indivisível, considerando a percepção do público consumidor:

RECURSO ESPECIAL. PROPRIEDADE INDUSTRIAL. AÇÃO DE NULIDADE DE REGISTRO DE MARCA E DE ABSTENÇÃO DE USO. COLORÊ / YOPA COLORES. ANÁLISE DO CONJUNTO MARCÁRIO. TODO INDIVISÍVEL. POSSIBILIDADE DE CONVIVÊNCIA. AUSÊNCIA DE RISCO DE CONFUSÃO OU ASSOCIAÇÃO INDEVIDA. DIFERENÇA FONÉTICA. FAMÍLIA DE MARCAS. FUNÇÃO SECUNDÁRIA DA EXPRESSÃO COLORES. MARCA MISTA X MARCA NOMINATIVA. DISTINGUIBILIDADE SUFICIENTE. NULIDADE DO ACÓRDÃO. PREJUDICIALIDADE. PRIMAZIA DO JULGAMENTO DO MÉRITO. (…) 8. Não se pode fragmentar a análise da marca a ponto de quebrar sua unidade e a forma pela qual o público consumidor a percebe, sendo de rigor que se proceda a uma análise global do conjunto. Doutrina. (…)
(STJ – REsp: 1924788 RJ 2020/0077290-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 08/06/2021, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/06/2021)

O que se vê é que em disputas envolvendo marcas mistas de entidades religiosas, se o elemento nominativo é semelhante, mas os elementos figurativos são distintos, a possibilidade de confusão diminui consideravelmente, abrindo espaço para a convivência, especialmente se as entidades atuam em localidades distantes e não há evidência de aproveitamento parasitário.

Teoria da Distância e diminuição da força distintiva da marca

teoria da distância postula que a análise de colidência entre duas marcas deve considerar o grau de distintividade que elas possuem quando comparadas com as demais já existentes em seu segmento. Essa teoria se refere ao distanciamento linguístico entre os sinais marcários, e não à distância física entre os respectivos titulares das marcas [5].

Se um termo já é utilizado por diversas marcas no mesmo nicho de mercado (serviços religiosos), ocorre um fenômeno de diminuição da sua força distintiva. Com isso, o titular de uma marca que contenha tal expressão não pode exigir que novas marcas concorrentes sejam mais diferentes da sua do que a sua própria é das preexistentes.

Em outras palavras, se as marcas de um mercado têm aparência gráfica semelhante, uma nova marca pode seguir esse padrão visual sem precisar ser muito diferente. Isso não causaria confusão, pois o consumidor já está acostumado com esse estilo no segmento. Impedir isso poderia, inclusive, limitar a concorrência no mesmo mercado [6].

A presença de múltiplos registros no INPI contendo termos como “Igreja” ou “Cristo” na classe de serviços religiosos evidencia que tais vocábulos são de uso comum, o que enfraquece a possibilidade de erro do consumidor e exige uma análise mais detalhada dos elementos distintivos. É o que o STJ também vem adotando em casos julgados sobre o tema:

RECURSO ESPECIAL. PROPRIEDADE INDUSTRIAL. AÇÃO DE NULIDADE DE REGISTRO DE MARCA E DE ABSTENÇÃO DE USO. ELLE / ELLE ELLA. POSSIBILIDADE DE CONVIVÊNCIA. AUSÊNCIA DE RISCO DE CONFUSÃO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. TEORIA DA DISTÂNCIA. (…) 5. O fato de existirem diversas marcas em vigor também formadas pela expressão ELLE atrai a aplicação da teoria da distância, fenômeno segundo a qual não se exige de uma nova marca que guarde distância desproporcional em relação ao grupo de marcas semelhantes já difundidas na sociedade. (…)
(REsp 1819060/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/02/2020, DJe 26/02/2020).

A comparação se dá não somente entre as marcas em disputa, mas também quanto ao mercado pertinente, conforme a lição da doutrina:

“(…) Desenvolvida na Alemanha, a teoria da distância também se vale da ideia de marcas imersas em campos de proteção com magnetismo variado. Seu postulado consiste no princípio segundo o qual a análise de colidência entre duas marcas deve levar em consideração o maior ou menor grau de distintividade que elas possuem, quando comparadas com as demais marcas já existentes em seu segmento. A possibilidade ou não de confusão é estabelecida não só com base no nível de semelhança que as marcas tidas como semelhantes observam entre si, mas também na similaridade que têm com as demais marcas de seu ramo de atividade” (SCHMIDT,  Lélio Denicoli. A distintividade das marcas: secondary meaning, vulgarização e teoria da distância. São Paulo: Saraiva, 2013, edição eletrônica).

Se diversas entidades religiosas já utilizam expressões comuns, a exigência de abstenção de uso por uma nova entidade, com base apenas na semelhança parcial do nome, pode ser desproporcional, especialmente se não houver risco concreto de confusão, considerando todos os elementos distintivos, como logomarca e localização geográfica.

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Conclusão

A análise dos conflitos entre o direito de marca e o uso de nomes por entidades religiosas revela uma tensão que demanda uma ponderação cuidadosa. A aplicação rígida das normas de propriedade industrial, sem considerar as particularidades do contexto religioso, pode levar a um cerceamento indevido da liberdade de crença e culto. A utilização de termos de origem bíblica ou de significado espiritual comum pode caracterizar marcas como fracas ou evocativas, cuja exclusividade deve ser mitigada, permitindo a convivência pacífica.

A análise de marcas mistas deve considerar o conjunto dos elementos, onde a distintividade dos logotipos pode suplantar a semelhança nominativa. Ademais, a teoria da distância e a ausência de prova de ato ilícito, confusão ou dano concreto podem afastar a responsabilidade civil.

A solução para tais litígios deve buscar o equilíbrio, privilegiando a coexistência das diferentes manifestações de fé, em respeito à pluralidade religiosa. A propriedade intelectual, embora relevante, não pode se sobrepor de forma absoluta a um direito humano fundamental como a liberdade religiosa, especialmente quando a disputa envolve expressões que pertencem ao patrimônio comum da fé.

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[1] BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado, 2010. Disponível aqui.

[2] TAIAR, Rogério. Direito internacional dos direitos humanos: uma discussão sobre a relativização da soberania face à efetivação da proteção internacional dos direitos humanos. São Paulo: Faculdade de Direito da USP, 2009. Disponível aqui.

[3] CHEHOUD, Heloísa Sanches Querino. A liberdade Religiosa nos Estados Modernos. São Paulo: Almedina, 2012. p. 94.

[4] CHEHOUD, 2012, p. 95.

[5] TAUK, Caroline Somesom; SANTOS, Celso Araújo. Lei da Propriedade Industrial interpretada: comentários e jurisprudências. São Paulo: Editora Juspodivm, 2024, p. 500.

[6] Ibid.

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