O consumo de crédito e de outros serviços financeiros é um tema sensível no Brasil. Mesmo com a incidência do Código de Defesa do Consumidor, pautado nos princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio, as relações entre instituições financeiras e consumidores são marcadas por altíssima litigiosidade. Ano após ano, os relatórios Justiça em Números do CNJ indicam os bancos entre os maiores litigantes, em demandas que discutem desde os abusos em cobranças de dívidas e os pedidos de revisão dos contratos,[1] até os fenômenos mais recentes do superendividamento e a explosão de fraudes bancárias [2].
Com a intensa transformação digital dos serviços financeiros, a proteção dos consumidores exige cada vez mais o conhecimento especializado e multidisciplinar, tanto para compreensão dos novos problemas nas relações bancárias, quanto para construir as respectivas soluções. O Direito Bancário é naturalmente multidisciplinar e dialoga constantemente com outras ciências. Expressões como custo efetivo total, sistema de amortização, capitalização composta de juros, etc., são linguagem corriqueira dos contratos bancários, com conceitos definidos pela Economia ou Matemática Financeira.
O Direito Bancário também se funda em múltiplas fontes, como a Constituição, o direito dos contratos no CDC e no Código Civil, as legislações específicas do sistema financeiro, os precedentes do STJ e STF que interpretam esse arcabouço normativo, a regulação setorial do Conselho Monetário Nacional (CMN) e Bacen, os usos e costumes bancários, as recomendações de soft law e a autorregulação bancária [3].
O CDC, microssistema das relações de consumo, prevê expressamente, em seu artigo 7º, o diálogo das fontes. Esse método possibilita uma visão unitária, sistemática e coerente do direito privado, iluminado a partir da Constituição, para a concretização do direito fundamental de defesa do consumidor [4]. O diálogo entre o CDC e as demais normas que regulam o Sistema Financeiro Nacional foi reconhecido na Adin 2.591/DF, julgamento em que o STF consolidou a aplicação do CDC aos contratos e serviços bancários.
Quase duas décadas depois, o diálogo com a regulação setorial, exercida pelo CMN e Bacen, pode contribuir para o aprimoramento das relações entre bancos e consumidores, em três frentes distintas: (1) a informação adequada sobre os custos e riscos do crédito; (2) a limitação dos juros praticados em operações de alto risco de endividamento, como o cartão de crédito e o cheque especial; e (3) o reforço dos deveres de segurança das transações, para prevenção e reparação das fraudes bancárias.
O detalhamento do custo do crédito se articula com um dos principais direitos do consumidor: o direito básico à informação, artigo 6º, III, CDC, que exige que o consumidor seja informado, de forma prévia e adequada, sobre os elementos dos produtos ou serviços, inclusive a modalidade, riscos e preço. Para que o consumidor compreenda os custos do crédito, o CDC desde sua origem estabeleceu uma série de informações obrigatórias no artigo 52, dentre elas a “soma total a ser paga, com ou sem financiamento”. Ou seja, há mais de três décadas, exige-se que a concessão de crédito ou financiamento esclareça ao consumidor, de forma clara, o valor total devido pelo empréstimo.
Para reforçar a clareza sobre os custos do crédito, a Lei 14.181/2021 introduziu no CDC os artigos 54-B, 54-C e 54-D, com o intuito de prevenir o superendividamento dos consumidores. Desde então, os fornecedores de crédito devem não apenas informar mas também esclarecer os consumidores sobre os custos do crédito e modalidade de contratação, bem como advertir sobre os riscos gerais e específicos da inadimplência. O artigo 54-B especifica que o Custo Efetivo Total (CET) das operações, sintetizado em percentual ao ano, deve compreender todos os valores cobrados do consumidor, “sem prejuízo do cálculo padronizado pela autoridade reguladora do sistema financeiro”. E é justamente nesse cálculo padronizado do CET que a regulação bancária contribui para aprimorar o direito à informação [5].
Resoluções do Conselho Monetário Nacional
O custo das operações foi tratado pelo CMN em três resoluções, publicadas no Dia Mundial do Consumidor (15/3), no ano de 2013. A Resolução CMN 4.196 exigiu que os bancos esclareçam aos consumidores o direito aos serviços essenciais gratuitos nas contas correntes para pessoas físicas, devendo informar que o consumidor não é obrigado a contratar um pacote mensal de tarifas, para abertura e movimentação de contas correntes. Trata-se de dever importante de informação que deve ser atendido pelos bancos, para que a contratação de tarifas em contas correntes não seja imposta em venda casada, prática abusiva vedada pelo artigo 39, I, CDC.
A Resolução 4.198 regula as informações sobre os custos de transações de câmbio. Já a Resolução 4.197, estabeleceu que o Custo Efetivo Total das operações de crédito deve discriminar cada componente (juros, tarifas, IOF, seguros, etc.) em percentual ao ano e em reais. Ou seja, não basta apenas informar as taxas de juros e valores das prestações mensais. Para compreensão adequada do custo do crédito, cada encargo cobrado deve ser detalhado tanto em percentual ao ano, como em valor monetário, permitindo assim que o consumidor avalie com clareza o custo real do crédito. A Resolução CMN 4.881, de 23/12/2020, passou a exigir esse detalhamento do CET também para os contratos de empresários individuais e empresas de micro ou pequeno porte, que podem se enquadrar no conceito de consumidores, ante a vulnerabilidade que notadamente apresentam junto aos bancos [6].
O objetivo de aprimorar as relações entre bancos e clientes se observa também na Resolução CMN 2.878, de 26/7/2021, que estabeleceu que as instituições financeiras devem atuar com transparência nos relacionamentos com seus clientes, assegurando respostas tempestivas a dúvidas, clareza nas informações sobre os custos das operações, em contratos de fácil leitura, fornecendo aos seus clientes os contratos, extratos, demonstrativos de dívidas e demais documentos solicitados. O texto foi alterado pelas Resoluções CMN 3.694, de 26/3/2009, CMN 4.949, de 30/9/2021 e CMN 5.117, de 25/1/2024, e a versão atual exige deveres como adequação dos produtos às necessidades dos clientes, segurança das transações, em uma política de relacionamento cooperativo, equilibrado e justo para os clientes, considerando seus perfis de relacionamento e vulnerabilidades associadas.
Ainda para reforçar a transparência, as Resoluções CMN 5.004, de 24/3/2022 e CMN 5.112, 21/12/2023, estabelecem que a contratação de operações financeiras depende de formalização de instrumento representativo do crédito junto ao cliente. Tal exigência é de suma importância, num cenário em que não raro os consumidores não recebem cópia dos contratos, o que inclusive contribui para a propagação de fraudes bancárias. Essas mesmas resoluções determinam que as instituições financeiras devem fornecer aos clientes, pessoas físicas e empresários individuais, o Documento Descritivo de Crédito, detalhando informações como número do contrato, saldo devedor atualizado e demonstrativo de sua evolução, sistema de pagamento, além de informar o valor para quitação antecipada dos contratos, com o abatimento proporcional dos juros a partir das mesmas taxas contratadas. O Descritivo de Crédito deve ser fornecido imediatamente nos canais de atendimento presenciais, e em até um dia útil nos demais canais de atendimento.
Essas medidas reforçam um dos principais pilares do direito contratual, tanto do CDC, como do Código Civil: a boa-fé objetiva, princípio de ordem pública, fonte dos deveres colaterais de cooperação, transparência e lealdade. As próximas normas que serão abordadas corroboram com outro pilar fundamental do CDC: o princípio do equilíbrio, que reprime a onerosidade excessiva.
A proteção contra onerosidade excessiva em contratos bancários perpassa necessariamente pelo tema das altíssimas taxas de juros praticadas no Brasil. O provisionamento da inadimplência continua sendo a principal justificativa dos bancos para as estratosféricas taxas de juros brasileiras. Tal justificativa é questionada, a partir de estudos que demonstram o crescimento das taxas de juros mesmo em períodos em que a inadimplência se mantém estável [7]. Outras pesquisas identificam que o principal fator para as taxas de juros tão altas é o igualmente elevado spread bancário [8], decorrente da falta de competição no mercado financeiro [9]. O spread bancário do Brasil é o maior do mundo e cerca de 11 vezes o praticado em países desenvolvidos, não havendo diferença significativa entre o spread dos bancos públicos e privados no Brasil[10].
Apesar de todo o tabu que essa discussão enfrenta, o fato é que a Lei Bancária (Lei 4.595/64) atribui ao Conselho Monetário Nacional a competência normativa para limitar os juros praticados pelas instituições financeiras. A limitação é mais frequente nos contratos de crédito direcionado, linhas de crédito específicas, criadas por lei, para a execução de alguma política pública, como o crédito para habitação, financiamento estudantil e crédito rural. Apenas recentemente é que o CMN passou a exercer o seu poder regulatório também em operações de taxas livres, em que não há limitação legal de encargos. E o fez justamente em duas modalidades de concessão de crédito, de altíssimo custo e risco de endividamento: o cheque especial e o cartão de crédito.
A Resolução CMN 4.765, de 27/11/19 limitou em 8% a.m. as taxas máximas de juros cobradas pela utilização de limite de cheque especial, em contas correntes de pessoas físicas e microempreendedores individuais. Dentre as justificativas adotadas pelo Bacen, para estabelecer esse teto inédito de juros, destaca-se a constatação de que “entre 2017 e 2019, a taxa de juros do cheque especial aumentou − a despeito da queda na taxa básica de juros, da manutenção do nível de inadimplência e da queda dos spreads bancários para a quase totalidade das operações de crédito com taxas livremente pactuadas entre instituições financeira e clientes” [11].
Em relação ao cartão de crédito, que segue sendo um dos vilões de endividamento dos consumidores, a Resolução CMN 4.549 de 26/01/17, determinou que: (1) o uso do limite rotativo do cartão de crédito somente poderia ser feito em um mês, evitando que o cliente reiteradamente contrate essa modalidade de crédito de altíssimo custo; (2) a partir do mês seguinte, o banco deve ofertar ao cliente a possibilidade de parcelamento do valor em aberto, com taxas de juros mais baixas, em benefício do cliente. Importante frisar que ofertar uma linha de crédito alternativa, com juros mais baixos, não é o mesmo que impor um parcelamento automático, sem solicitação expressa do cliente, e com taxas muito maiores do que as do crédito pessoal.
Para conter o endividamento excessivo nos cartões de crédito, a Resolução CMN 5.112, de 21/12/2023, estabeleceu que os valores totais de encargos cobrados pelos parcelamentos de faturas de cartão de crédito não poderia ultrapassar o valor emprestado. A partir de janeiro de 2024, os bancos devem respeitar o teto de encargos fixado pelas autoridades monetárias.
As limitações de encargos nos contratos de cheque especial e cartão de crédito são um importante avanço. Entretanto, a regulação do CMN nas operações com “taxas livres” ainda é tímida, com parcimônia e omissão em relação a empréstimos para pessoas físicas, com taxas de juros que alcançam os absurdos patamares de 1000% ao ano. Se na limitação dos encargos a regulação setorial ainda deixa muito a desejar, o campo da segurança e prevenção contra fraudes talvez seja o de maior atuação.
No ano de 2012, a Súmula 479/STJ reconheceu a responsabilidade objetiva das instituições financeiras em reparar os danos causados a consumidores, por fraudes cometidas por terceiros. Trata-se de risco inerente da atividade bancária, que integra o chamado “fortuito interno”.
A regulação bancária permite aprofundar tanto a noção do fortuito interno, quanto as medidas que devem ser adotadas pelos bancos para cumprir os deveres de segurança. A Resolução CMN 4.557, de 23/2/2017 inclui expressamente as fraudes internas e externas como eventos inerentes ao risco operacional da atividade bancária. Em conjunto com a Resolução CMN 5.076, de 18/05/23, esclarecem uma série de falhas que integram o risco das atividades de pagamento, e exigem que a estrutura de gerenciamento de riscos operacionais deve contemplar sistemas, processos e infraestrutura de T.I. para assegurar integridade e segurança nas transações, mecanismos de proteção de redes, monitoramento das falhas de segurança e das reclamações dos consumidores, além de identificar movimentações financeiras e operações atípicas.
As operações atípicas podem ser compreendidas a partir do perfil de movimentação financeira e de uso do crédito de cada cliente da instituição financeira. No âmbito do Pix – pagamento instantâneo brasileiro, a regulação está em constante aperfeiçoamento. A Resolução BCB 142, de 23/9/2021 estabeleceu limites máximos de valores para transações realizadas entre 20h e 6h, bem como prazo mínimo de 24h para aumento de limites de transações a pedido dos clientes. As tentativas de fraudes devem ser registradas diariamente, cabendo aos bancos também discriminar as medidas corretivas adotadas.
A Resolução BCB 103 de 8/6/2021 criou o Mecanismo Especial de Devolução (MED), que pode ser iniciado tanto por iniciativa do usuário pagador, em caso de pagamento indevido ou suspeito de fraude, quanto por iniciativa própria da instituição financeira, que atende o usuário recebedor, em caso de suspeita de fraude. Ambos os processos são implementados por meio do Diretório de Identificadores de Contas Transacionais (Dict).
Já o Bloqueio Cautelar, criado pela Resolução BCB nº 147, de 28/9/21, estabelece a obrigação dos bancos de bloquearem preventivamente as operações, quando as transações destoarem do perfil do cliente e do histórico de transações anteriores, ou quando a chave recebedora dos valores for uma chave suspeita. O bloqueio cautelar deve ser implementado independentemente de solicitação do usuário pagador.
A Resolução Conjunta CMN/BCB 6 de 23/5/2023 e a Resolução BCB 343 de 4/10/2023 determinam aos bancos o compartilhamento de informações sobre suspeitas de fraudes. E a Resolução BCB 457 de 6/3/2025 estabeleceu que serão canceladas as chaves Pix vinculadas a CNPJs e CPFs que estejam irregulares junto à Receita Federal.
Em suma, a regulação bancária atual: (1) reforça a clareza das informações sobre os custos do crédito; (2) impõe limites às taxas de juros, que podem orientar os processos de revisão dos contratos, sobretudo nos casos de superendividamento; e (3) auxilia a identificar as falhas de segurança das transações bancárias, que ensejam o dever de reparação das fraudes. Se outrora houve resistência dos bancos à aplicação do CDC, da regulação setorial os bancos não podem se afastar.
[1] Sobre o tema, vide a robusta pesquisa indicando que, na maioria dos casos, os consumidores de crédito tem razão nos litígios judiciais contra os bancos. GREGORINI, Pedro Augusto. Jurimetria aplicada aos litígios em massa: o perfil dos processos envolvendo os bancos na Justiça Estadual de São Paulo. 2021. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2021. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/107/107131/tde-15082022-114649/. Acesso em: 11 jun. 2025.
[2] Metade dos brasileiros sofreu fraude em 2024, diz Serasa Experian | Agência Brasil. Acesso em 29/03/2025.
[3][3] MIRAGEM, Bruno. Direito Bancário. 2 ed. rev., atual. e ampl – São Paulo: Thomson Reuters, 2018, pp. 85-106
[4] MARQUES, Claudia Lima. Diálogo das fontes: do conflito à coordenação de normas no direito brasileiro / Claudia Lima Marques, coordenação. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 59-63.
[5] Código de defesa do consumidor comentado / organização de Denise Hammersschmidt / Curitiba: Juruá, 2025. Artigos 54-A a 54-G, Andressa Jarletti Gonçalves de Oliveira / Maria Carla Moutinho, pp. 452-481.
[6] OLIVEIRA, Andressa Jarletti Gonçalves de. Defesa judicial do consumidor bancário. Curitiba: Rede do Consumidor, 2014, pp. 76-94.
[7] CAMARGO, Patrícia Olga. A evolução recente do setor bancário no Brasil. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, pp. 84-85.
[8]NOGUEIRA, José Jorge Meschiatti. Tabela Price: Mitos e Paradigmas. 3. Ed. Campinas: Millenium Editora, 2013, pp. 208-209.
[9] BELAISCH, Agnès. Do Brazilian Banks Compete? IMF: [s.l.], 2003.
[10] DANTAS, José Alves. MEDEIROS, Otávio Ribeiro de; CAPELLETO, Lucio Rodrigues. Determinantes do spread bancário ex post no mercado brasileiro. RAM, Revista de Administração Mackenzie, v. 13, n. 4. São Paulo, jul./ago. 2012, p. 48-74.
[11] Banco Central do Brasil. Cheque Especial: avaliação do impacto da limitação da taxa de juros. Relatório de Economia Bancária. 2020.
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