A resposta da doutrina, ou como não defender uma decisão judicial

Textos que se propuseram a defender medida cautelar de Gilmar Mendes não foram capazes de apresentar respostas satisfatórias aos questionamentos

Além de seus instrumentos oficiais de defesa institucional, o Supremo também conta com alguns mecanismos não oficiais. Entre estes, há um que os constitucionalistas chamam, em tom jocoso, de “controle judicial preventivo pela mídia”.

Em geral, ele acontece quando ministros do tribunal se valem de seus assessores de imprensa – que, não raro, buscam se apresentar como jornalistas – para emitir recados públicos ao Congresso ou à sociedade. Por mais estranho que pareça, a repetição acabou normalizando a prática, a ponto de hoje vermos apresentadores de telejornais conversando com ministros, em tempo real, durante a programação.

Há, contudo, outra dimensão dessa defesa institucional pela mídia. Mais sofisticada, essa versão vem sob o verniz de nomes proeminentes no cenário jurídico nacional. São autores que se valem do capital reputacional que construíram para assinar artigos – algumas vezes bem fundamentados – em defesa de decisões judiciais. Acontece que essas mesmas figuras, não raramente, contam com processos importantes perante o tribunal que estão defendendo, o que acaba levando os mais céticos a questionarem a honestidade dos argumentos apresentados.

Não gosto de partir da premissa de que aqueles que defendem o Supremo o fazem por ter algo a ganhar com isso, da mesma forma que rejeito a ideia – muito presente nos textos atuais – de que críticas legítimas ao tribunal configuram um ataque à democracia. Por isso, prefiro dar aos argumentos a maior consideração possível, tomando seus fundamentos como bem-intencionados e de boa-fé, ainda que ácidos ou debochados – afinal, não posso criticar o uso de uma ferramenta que integra meu repertório.

Nesse contexto, a suspensão parcial da cautelar do ministro Gilmar Mendes, na última quarta, traz uma ótima oportunidade de realizar tal exercício. Para além dos fundamentos apresentados pelo ministro na nova decisão, aproveito o evento para analisar também os argumentos apresentados por aqueles que se propuseram a enfrentar o tema no debate público.

Jogando com palavras

Depois de uma rodada do que alguns chamaram de diálogos institucionais, o ministro Gilmar Mendes suspendeu a parte de sua cautelar que restringia ao PGR a legitimidade para a apresentação de pedido de impeachment contra ministros do Supremo. Ainda que possa ser elogiado pela concisão e clareza, o documento não apresenta fundamentos satisfatórios aptos a justificar a suspensão, além de suscitar dúvidas quanto à decisão original.

Após alguns parágrafos tecendo elogios a Davi Alcolumbre e Rodrigo Pacheco pelo espírito cívico em defesa do Supremo Tribunal Federal, Mendes faz notar como ambos foram responsáveis por um sem-número de arquivamentos de denúncias contra ministros do Supremo. O relator apontou, ainda, que sua cautelar resultou na tramitação prioritária do projeto de lei sobre a nova Lei do Impeachment que, em suas palavras, “incorpora[ram] parcela significativa das orientações contidas na medida cautelar”. Esse quadro fático justificaria, na visão do relator, a suspensão parcial da decisão.

Há dois problemas aqui. Primeiro, os arquivamentos de denúncias pelo atual e por ex-presidentes do Senado são eventos antigos – e recorrentes – na história da Nova República. Assim, ao mesmo tempo em que não servem como prova de uma mudança relevante na realidade, tampouco seriam capazes de justificar o deferimento da cautelar original, dada a falta de contemporaneidade do risco.

Segundo, o projeto de lei em tramitação não adota, nem em termos quantitativos nem qualitativos, “parcela significativa” da cautelar. O PL 1388/2023 deixa de fora, nas hipóteses de impeachment de ministros do Supremo, os chamados “crimes de hermenêutica” e suprime qualquer possibilidade de redução salarial. As convergências, porém, se esgotam aí.

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O Legislativo optou, pelo menos no PL, por preservar o quórum de maioria simples para a instauração do procedimento, introduzindo, contudo, a possibilidade de recurso, por iniciativa de dois terços dos senadores, contra decisões de arquivamento. O afastamento da autoridade – agora previsto a partir da fase de instrução – foi mantido.

Por fim, o projeto pretende alterar o rol de legitimados para a apresentação de denúncia, que passa a abranger: (i) partidos políticos com representação no Congresso Nacional; (ii) a OAB; (iii) entidades de classe de âmbito nacional ou estadual; e (iv) cidadãos que preencham os requisitos da iniciativa popular. Não há, portanto, qualquer identidade substantiva – nem em termos quantitativos, nem qualitativos – entre o PL e a cautelar.

“Porque eu quero”

Seguindo a ordem do rito processual, um problema essencial que não foi resolvido, seja pela decisão, seja por seus defensores, foi a questão dos requisitos da cautelar. Um primeiro argumento em favor da medida – presente na decisão e ecoado de maneira acrítica por seus defensores – é a quantidade de pedidos de impeachment já apresentados e ainda pendentes de deliberação no Senado.

A fragilidade dessa alegação foi demonstrada por Thomaz Pereira,[1] ao apontar que a abertura do rol de legitimados não empodera quem pode apresentar a denúncia, mas quem sobre ela decide. Tanto é assim que não há, desde a redemocratização, qualquer registro de denúncia contra ministro do Supremo que tenha sido aceita.

Diante disso, que tipo de urgência justifica a cautelar? A potencial – e incerta – eleição de uma supermaioria conservadora no Senado, que tomaria posse em 2027? Ou seria o risco de o presidente do Senado – exaltado pelo relator como detentor de “espírito público, aguda percepção institucional, prudência e notável coragem cívica” – deixar seus predicados de lado e atuar contra o tribunal?

Os defensores da decisão também esquecem, por vezes de forma deliberada, que a jurisdição constitucional, não raramente, é utilizada como mecanismo de freios institucionais – para não falar das ocasiões em que é instrumentalizada como ferramenta de chantagem. Na semana passada, por exemplo, um dia após a aprovação do execrável PL da dosimetria, o Supremo destravou o inquérito contra Paulinho da Força, relator do projeto.

Aqueles que cerraram fileiras com Mendes não enfrentam esses argumentos, não explicam como a distância da eleição não é um obstáculo ao deferimento da cautelar. Ignoram, igualmente, a realidade institucional e como todos os pedidos de impeachment contra ministros do Supremo foram arquivados. É uma cautelar como puro ato de vontade.[2]

Como não utilizar o constitucionalismo abusivo: um guia (ed. rev. atual. e ampl.)

Não há, em meu texto inaugural,[3] qualquer indício de que eu não reconheça os riscos do constitucionalismo abusivo. Deixo claro que sei do plano da extrema-direita para o Senado nas eleições do próximo ano, assim como estou ciente dos perigos que a domesticação de um tribunal põe à democracia. [4]

Isso, entretanto, não impediu que alguns articulistas desenvolvessem não-argumentos que não foram defendidos por qualquer parcela relevante da doutrina que enfrentou o tema. A defesa contra a existência de crimes de hermenêutica talvez seja a melhor ilustração disso. É difícil de crer que alguma pessoa com formação em Direito consiga articular um argumento razoável em defesa disso. O que não significa que não existam, no Congresso, propostas assim – afinal, nosso Legislativo não é famoso por seu destaque moral e intelectual.

Essas platitudes, por vezes, aparecem enfeitadas por grandiloquentes referencias, mas sem qualquer cuidado metodológico com frameworks teóricos. Tomemos como exemplo o texto de Georges Abboud,[5] que transita entre a história do Terceiro Reich e a obra de Ernst Fraenkel para explicar como o impeachment pode ser instrumentalizado para dar cabo à independência judicial. Para o autor, a experiência nacional com o autoritarismo deve ser o fio condutor da interpretação proposta pela cautelar.

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Assumindo essa premissa como verdadeira, dela não se podem extrair, contudo, as mudanças propostas pela decisão – como defende Abboud. Acredito, inclusive, e parafraseando Pierre Legrand, que a cautelar original – com todas as suas falhas – estaria em melhor situação quanto mais cedo este artigo fosse esquecido,[6] tendo em vista que o autor recorre a elementos de senso comum sem qualquer reflexão sobre as premissas subjacentes à antiga Lei ou mesmo sobre as consequências de seus argumentos.

No trecho sobre o novo quórum de 2/3 desenhado pela cautelar, por exemplo, Abboud limita-se a reconhecer que um quórum qualificado é mais adequado dada a importância do impeachment. Sobre o afastamento do cargo após a abertura do procedimento, o autor faz ainda menos esforço, restringindo-se a falar em uma adequação do antigo texto às garantias da Constituição de 1988.

A decisão original, contudo, invoca uma suposta simetria, equiparando ministros individuais ao presidente da República. Uma dificuldade que esse raciocínio apresenta é o fato de que o quórum qualificado exigido para abertura de processo contra um presidente se justifica na medida em que diferentes Casas do Congresso deliberam de maneira autônoma. No caso de ministros do Supremo, exigir um aumento do quórum, por mais intuitivo que possa parecer, cria dois problemas.

O primeiro é de ordem lógica. Ao elevar o quórum de abertura de maioria simples para 2/3, a decisão faz com que instauração e condenação não se diferenciem, causando uma perda de seu sentido prático e normativo – sobretudo porque a fase de instrução, que deveria ser o espaço institucional de produção de prova e amadurecimento do juízo político-jurídico, deixa de operar como filtro qualitativo e se torna mero rito.

O segundo problema é de desenho institucional, uma vez que o aumento do quórum de abertura do processo se soma ao não afastamento do ministro do cargo – aceito de maneira acrítica pelo articulista como uma adequação ao texto constitucional.

Essa combinação, entretanto, acaba por criar uma nova assimetria, dessa vez em benefício do Supremo. Isso porque é difícil explicar, seja do ponto de vista dogmático, seja do ponto de vista teórico, que razão justificaria uma arquitetura institucional em que o próprio designer se coloca acima do presidente – que permanece sujeito ao afastamento após a abertura do processo de impeachment. Além disso, o obstáculo ao afastamento, imposto pela cautelar, também distorce o processo em uma dimensão prática, permitindo que o magistrado continue a usufruir dos benefícios do cargo  para resistir ao processo senatorial.

É possível, ainda, que o articulista suscite a importância da independência judicial, como se tal argumento fosse um truco constitucional capaz de retirar do presidente a legitimidade da soberania popular do voto, elemento de igual grandeza segundo todas as teorias democráticas que se possa imaginar.

Não satisfeito em ignorar todos esses argumentos – e para a infelicidade do leitor – Abboud continua seu texto, desse vez adentrando no campo do constitucionalismo abusivo. Nesse trecho, o autor se refere às críticas que se valeram do léxico dessa teoria como “pueris”, e justifica sua posição em um parágrafo que parece ter saído direto de um manual de direito constitucional:

Pela mesma razão, as críticas pueris sobre uma suposta captura do léxico do constitucionalismo abusivo na fundamentação da decisão também não se justificam. Afinal, o constitucionalismo abusivo se configura com a instrumentalização de mecanismos jurídicos legítimos para produzir resultados contrários ao constitucionalismo que os sustenta: o indulto conferido à Daniel Silveira e já considerado inconstitucional pelo STF é um bom exemplo. A instrumentalização do mecanismo de impeachment sem fundamento técnico-jurídico, baseado em mera conveniência política, certamente é outro.

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Não são apresentadas quaisquer considerações sobre as diferenças institucionais entre o Supremo Tribunal Federal e as demais Cortes Constitucionais que passaram por processos de domesticação. Nenhuma linha é escrita sobre o poder de invalidar emendas constitucionais à disposição do STF. Nem mesmo uma palavra sobre o papel que as cláusulas pétreas desempenham na proteção institucional. Um verdadeiro desrespeito com as balizas teóricas e metodológicas propostas pela literatura acadêmica.

Seguindo para as partes finais – de um texto que teria se beneficiado de algumas páginas a menos[7] –, o autor chega naquela que, talvez, seja sua única contribuição real ao debate: a transformação que vem ocorrendo no equilíbrio entre os Poderes. Mais uma vez, contudo, Abboud reclama dos críticos, particularmente das invocações acríticas de experiências internacionais. Curiosamente, contudo, não só a decisão que ele defende faz esse paralelo com a Hungria – sem notar as diferenças institucionais entre os países[8] – como o próprio texto do articulista é contaminado pela falta de rigor metodológico que tanto o incomoda.

O cerne de seu argumento, porém, merece a devida atenção. Nosso país, nos últimos anos, presenciou um agigantamento do Poder Legislativo, que vem se apropriando, de PL da dosimetria, de parte significativa do orçamento público. Isso tem causado um desequilíbrio na relação entre Executivo e Legislativo, levando o Supremo a ocupar – de forma indireta e extraoficial – a vaga da coalizão que anteriormente cabia aos partidos políticos.[9]

Também é verdade que o Supremo, nesse novo contexto, tem sido forçado a deliberar, de forma cada vez mais recorrente, sobre questões de megapolítica[10] e outros temas sensíveis. Contudo – e novamente – disso não decorre a conclusão de que as alterações promovidas pela cautelar estão corretas. Isso porque, apesar das transformações, o desenho institucional dos Poderes, em especial o do Supremo, continua contando com fundamentos sólidos capazes de resistir a eventuais investidas de natureza autoritária – como demonstrei no texto que inaugurou este debate.[11]

No fim, os textos que se propuseram a defender o acerto da medida cautelar não foram capazes de apresentar respostas satisfatórias aos questionamentos e obstáculos apresentados – aqui e em outros ensaios.[12] Já o texto de Abboud, em particular, foi além; não só criou espantalhos dos críticos que enfrenta, como nos brindou com um excepcional manual de como não defender uma decisão judicial.


[1] #268 Gilmar e a Lei de Impeachment (com Thomaz Pereira). Onze Supremos Podcast,  Disponível em: https://open.spotify.com/episode/0z0DPIroMYXJrMXeC3CSYP?si=78a36bc36fd042da.

[2] Ver Adeildo Oliveira, Suprema Blindagem. JOTA, 9 dez. 2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/suprema-blindagem.

[3] David Sobreira, Subvertendo o constitucionalismo abusivo, JOTA, 08 dez. 2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/subvertendo-o-constitucionalismo-abusivo.

[4] David Sobreira, How Courts Die. Vermont Law Review, v. 50 (no prelo) – https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=5218322.

[5] Georges Abboud, O impeachment de ministros do STF. JOTA, 13 dez. 2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/observatorio-constitucional/o-impeachment-de-ministros-do-stf.

[6] Pierre Legrand, Comparative Law’s Shallows and Hollows: A Negative Critique on Ablepsy. The Journal of Comparative Law, v. 20, n. 2, 239–438, 2025. p. 439.

[7] Ver Antonio Gidi, Redação Jurídica. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2025

[8] Sobreira, How Courts Die […]

[9] Ver Christian Lynch, Lula e o judiciarismo de coalizão. Meio, 6 dez. 2023. Disponível em: https://www.canalmeio.com.br/edicoes/2023/12/06/lula-e-o-judiciarismo-de-coalizao/.

[10] Ran Hirschl, The Judicialization of Mega-Politics and the Rise of Political Courts. Annual Review of Political Science, v. 11 (2008).

[11] Sobreira, Subvertendo o constitucionalismo abusivo […]

[12] Ver, por exemplo, Rafael Mafei, Dois caminhos para piorar o STF. Piauí, 09 dez. 2025. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/dois-caminhos-para-piorar-o-stf-alcolumbre-gilmar-mendes/.

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