No último dia 26 de fevereiro foi disponibilizado o relatório final da Comissão de Atualização do Código Civil. De pronto, insta consignar e render elogios ao trabalho árduo e em tempo recorde, de todas as pessoas, profissionais, envolvidas.
Por outro lado, esse é o momento de aprofundar as reflexões sobre a proposta apresentada. Nesse sentido e com o propósito de contribuir para o debate, destaca-se o texto sugerido para o artigo 768 do Código Civil, que trata do agravamento do risco, in verbis:
“Art. 768. O segurado perderá o direito à garantia, se agravar intencionalmente e de forma relevante o risco objeto do contrato.
§ 1º Será relevante o agravamento que aumente de forma significativa a probabilidade de realização do risco ou a severidade de seus efeitos;
§ 2º Nos contratos paritários e simétricos, o agravamento intencional de que trata o caput deste artigo pode ser afastado como causa de perda da garantia.”
De pronto, consigna-se que a redação proposta pela comissão é melhor que a atual redação do artigo 768, que apenas anuncia que “o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”, representando, portanto, um importante avanço.
No entanto, com a máxima vênia, a proposta ao manter o qualificativo “intencional”, perde a oportunidade de retirar do texto normativo fator de controvérsias interpretativas e que, além disso, não guarda pertinência estrita com o objetivo da norma, que é a preservação do equilíbrio econômico do contrato.
Além disso, o parágrafo segundo permite a interpretação de que nos contratos paritários e simétricos seria possível afastar o agravamento intencional quando, por certo, a intenção da norma proposta é indicar a possibilidade de afastamento do qualitativo intencional e não a disciplina do agravamento.
A reflexão aqui proposta parte de três premissas interligadas entre si
- imprescindibilidade da correlação entre prêmio e risco para a técnica securitária;
- especial funcionalização do contrato de seguro;
- agravamento do risco como instrumento de preservação do equilíbrio econômico do contrato e do mutualismo, a seguir explicitadas.
O prêmio e o risco figuram como elementos essenciais do contrato de seguro. O primeiro é a principal obrigação do segurado e consiste em uma prestação pecuniária correspondente ao preço do risco coberto. Já o segundo, além de ser a própria razão justificadora do contrato, delimita a sua abrangência. Os dois, em conjunto, orientam a técnica securitária, sendo o risco o parâmetro definidor da correspectividade entre o prêmio pago pelo segurado e a garantia assumida pelo segurador.
Consequentemente, a característica essencial do risco coberto por um contrato de seguro é a sua predeterminação no contrato. [1] A predeterminação encontra fundamento ainda no fato de o risco coberto por um contrato de seguro ser derivado de uma decisão, como não poderia deixar de ser, sob pena de impor um perigo para a mutualidade. Isto porque o prêmio pago pelo segurado corresponde à garantia ofertada pelo segurador que, por sua vez, reflete a apreciação pecuniária do risco ao qual está exposto [2].
Já a técnica securitária consiste precisamente na pulverização dos riscos entre o conjunto de segurados a partir da constituição do fundo comum. Isto porque o seguro só existe enquanto contrato comunitário, cuja técnica específica é baseada no mutualismo, ou seja, na cooperação implícita entre um conjunto de pessoas a partir da constituição e gestão de um fundo comum que congrega os prêmios de um universo de interesses sujeitos ao mesmo risco.
Como o seguro só existe enquanto contrato comunitário, a funcionalização desse contrato é peculiarmente caracterizada pela necessidade de compatibilização de três centros de interesses:
- do segurado e do segurador, em uma perspectiva individual;
- do conjunto de segurados e do fundo por eles constituído, em uma perspectiva coletiva interna;
- dos centros de interesses acima descritos com o da coletividade externa.
Significa dizer que, sendo o seguro um contrato comunitário, a relação estabelecida entre seguradora e segurado deve observar não apenas os objetivos perquiridos pelas partes em suas relações isoladas, mas sim o fim almejado pelo conjunto de relações que compõem a base mutuária do sistema, permitindo a sua própria existência e, além desses, os objetivos socialmente relevantes, na medida em que, além da sua função econômica própria, o contrato de seguro deve respeitar e cumprir a função social dos contratos.
Por esta razão é que a boa-fé no contrato de seguro deve ser qualificada, tendo em vista que o correto dimensionamento do risco depende sensivelmente das informações prestadas pelo segurado e toda omissão ou inverdade afeta a coletividade atrelada ao fundo constituído. Mais ainda, a boa-fé impõe a cooperação entre as partes durante toda a avença, inclusive no que tange ao não agravamento do risco.
Em sendo o seguro obrigatoriamente um contrato de trato sucessivo ou de execução continuada, é de se aviltar a possibilidade de, ao longo do seu curso, fatores externos romperem com o equilíbrio originalmente estabelecido, de sorte que é imperiosa a existência de mecanismos aptos a readequar o pacto.
Nessas hipóteses, além dos institutos genericamente previstos para obrigações que se protraem no tempo, o legislador previu a possibilidade de revisão contratual sempre que, em virtude de alterações no risco, seja quando ele diminui, seja quando é agravado, o contrato se tornar desequilibrado.
Certamente, não será toda e qualquer variação no risco que ensejará a revisão do contrato. Esta só será devida quando a prestação do segurado (prêmio) e a do segurador (garantia) se tornarem desproporcionais em virtude de fatores externos e supervenientes que alterem o risco, sob o qual as prestações foram calculadas [3].
Nesse contexto insere-se a temática do agravamento do risco que, especialmente em razão da consequência jurídica que gera — perda da garantia — é bastante sensível e que, desde a sua previsão no Código Civil de 2002, sempre gerou controvérsias doutrinárias, com reflexos nas decisões judiciais.
Não há dúvidas que muito se avançou, especialmente na delimitação de alguns requisitos para a configuração do agravamento do risco, tais como: conduta praticada pelo próprio segurado,[4] a essencialidade do agravamento com alteração do estado original do risco, nexo de causalidade entre a conduta agravadora e o sinistro.
Contudo, a interpretação da expressão “intencionalidade”, presente na redação original do artigo 768 e mantida no texto proposto pela comissão de especialistas, sempre gerou acirradas discussões, razão pela qual, pondera-se a conveniência da sua manutenção.
Especialmente porque, não obstante as divergências, doutrina e jurisprudência caminharam para a construção do entendimento prevalente de que a intencionalidade diria respeito a adoção da conduta agravadora, independentemente da intenção quanto ao seu resultado, ou seja, independentemente da intenção de que com a conduta adotada ocorresse o sinistro.
Portanto, se configura como agravadora a conduta deliberada e consciente do segurado, independentemente da intenção de prejudicar o segurador, que aumenta a probabilidade de ocorrência do sinistro. Se “é um agir ex ante de agravamento que se confirma, ex post, pela conversão do risco em sinistro, que, assim, necessariamente guarda relação causal com a conduta do agravamento”[5], melhor seria se a expressão “intencionalmente” não tivesse sido incluída no dispositivo.
A rigor, a ratio da norma é a proteção do equilíbrio do contrato, assegurando a “manutenção dos pressupostos técnicos e econômicos associados ao risco” [6], além de reforçar os deveres da boa-fé contratual. Nesse sentido e em conformidade com a ratio do instituto, a análise deve ser objetiva e da conduta, não da intenção. Significa dizer que a conduta será agravadora se aumentar a probabilidade do sinistro, desequilibrando a equação econômica do contrato.
Sendo a conduta agravadora, a perda da garantia é efeito o jurídico necessário e justificável pelo simples fato de que é do risco e do cálculo atuarial em torno da probabilidade de sua concretização que derivam as prestações do contrato — prêmio e garantia. E, sendo assim, o agravamento do risco importa em desequilíbrio do contrato, afetando negativamente não só os interesses do segurador, estabelecidos em torno daquele contrato específico, mas também os interesses do conjunto de segurados e do fundo por eles constituído.
Por derradeiro, considerando que a perda da garantia em razão agravamento do risco é instrumento de proteção do equilíbrio econômico e atuarial do contrato de seguro, sugere-se a substituição da expressão “intencionalmente” por culpa grave ou dolo, da seguinte forma: “o segurado perderá o direito à garantia se, por culpa grave ou dolo, agravar de forma relevante o risco objeto do contrato”. Com isso, o parágrafo segundo torna-se desnecessário, podendo ser suprimido e, no caso, seguindo a boa técnica legislativa, o parágrafo primeiro se converteria em parágrafo único.
A alteração sugerida tem a vantagem de evitar que sejam reacendidas as discussões acerca da intenção, além de ir ao encontro da ratio da norma — preservação do equilíbrio econômico-atuarial do contrato e da base mutual que o garante e viabiliza. Soma-se ainda a necessidade de harmonia na regulação jurídica, especialmente e a título ilustrativo, cabe analisar o artigo 762, específico do contrato de seguro, mas também o artigo 392 que trata do inadimplemento das obrigações
O artigo 762, em sua redação original, dispõe que “nulo será o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário, ou de representante de um ou de outro”. Essa redação foi mantida na proposta de atualização, sendo acrescido um parágrafo único, determinando que nos contratos simétricos e paritários, a culpa grave se equipara ao dolo.
Trata-se de dispositivo regulador da formação do contrato, atuando no plano da validade e que não se confunde com o artigo 768, que trata da eficácia. No entanto, é forçoso concluir que, tanto na situação contemplada no artigo 762 quanto na contemplada no artigo 768, a justa medida da aleatoriedade deixaria de se fazer presente e o equilíbrio econômico do contrato restaria afetado. Contudo, a culpa grave, e não só do dolo, como qualificadora da conduta agravadora se justifica pelo fato de que o contrato já vinha produzindo os seus efeitos e que a prestação de garantia vinha sendo cumprida desde a sua formação.
Já o artigo 392, cuja redação foi mantida, diz respeito ao inadimplemento e deve ser aqui cotejado, pois essa é a qualificação do agravamento do risco. Vejamos: a conduta agravadora traduz-se em violação dos deveres derivados da boa-fé. Tal violação já é, há muito, reconhecida pela doutrina e jurisprudência, como configuradora de inadimplemento contratual. Na proposta de atualização do Código Civil, é expressamente previsto que a violação do princípio da boa-fé constitui inadimplemento.
Assim, imperioso observar as regras gerais sobre o inadimplemento. Como cediço, nos contratos onerosos, o não cumprimento da obrigação já configura o inadimplemento e enseja as consequências jurídicas próprias (artigo 389, CC). Nos gratuitos (artigo 392, CC), aquele a quem o contrato não beneficia, responde por dolo. Significa dizer que, o inadimplemento gera consequências e que o legislador só determina a análise subjetiva, no caso, do dolo, para deflagrar a responsabilidade para aquele que não se beneficia de um contrato gratuito.
Diante dessa regra geral, mostra-se adequado e proporcional que no contrato de seguro, oneroso e que cujos efeitos afetam não só as partes contratantes, mas a coletividade, o agravamento do risco, inadimplemento, gere a consequência da perda da garantia, quando praticado por culpa grave ou dolo.
Em suma, considerando todas as razões apresentadas, e manifestando todo o respeito e admiração pelo trabalho realizado pela Comissão de especialistas, seria preferível que o artigo 768 recebesse uma redação alternativa, tal como sugerimos a seguir:
“Art. 768. O segurado perderá o direito à garantia se, por culpa grave ou dolo, agravar de forma relevante o risco objeto do contrato.
Parágrafo único: Será relevante o agravamento que aumente de forma significativa a probabilidade de realização do risco ou a severidade de seus efeitos.”
[1] “Não há contrato de seguro sem que exista risco definido. É da sua própria natureza que o risco seja identificado para que possa haver levantamento do grau de possibilidade do seu acontecimento. O contrato de seguro não pode ser celebrado para garantir ocorrência de risco indefinido” (DELGADO, José Augusto. Comentários ao novo Código Civil: das várias espécies de contrato. Do seguro (arts. 757 a 802), vol. XI. tomo I. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 181).
[2] Neste sentido: “Não se ignora, portanto, que o contrato de seguro se assenta sobre a de seleção de riscos, pois é inviável que um grupo de pessoas pretenda segurar-se contra todo e qualquer risco e, por outro lado, é inútil proteger-se contra nenhum risco. É no processo de seleção de riscos que se revela o entrechoque de interesses que, em última instância, leva à celebração do contrato. O segurador busca maximizar as receitas que aufere para administrar o fundo comum que irá cobrir riscos bem delimitados, enquanto o segurado quer se proteger contra o maior número de riscos pelo menor custo possível”. (STJ, 3T. REsp. 763.648/PR. Rel. Min. Nancy Andrigui, Julg.: 14/06/2007. DJ: 01/12/2007, p.272.
[3] Inclusive, essa racionalidade foi incluída de forma precisa no parágrafo primeiro do artigo 768, proposto pela Comissão de Atualização: “Será relevante o agravamento que aumente de forma significativa a probabilidade de realização do risco ou a severidade de seus efeitos”.
[4] Esse requisito é, por vez, acertadamente relativizado, conforme o caso de disputa de racha de um automóvel que foi emprestado a um terceiro condutor: “Com efeito, a meu ver, o segurado que entrega veículo a terceiro que tem 21 (vinte e um) anos de idade, sabendo que inexistia a cobertura para a hipótese, age de forma imprudente, temerária e em descompasso com as cláusulas do contrato de seguro, assumindo o risco de perder a indenização securitária caso ocorra o sinistro”. STJ, Resp 1.368.766 – RS, 4ª turma, j. 01/03/2016.
[5] PELUSO, Cezar. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. Editora Manole, 2022. E-book. ISBN 9786555766134. Disponível em: ttps://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555766134/. Acesso em: 22 out. 2023.
[6] MONTEIRO FILHO, Carlos Edson do Rêgo.; TÁVORA, Rodrigo de Almeida. Comentários ao art.768 do Código Civil. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. (Org.). Direito dos Seguros: comentários ao Código Civil. 1ed.RIO DE JANEIRO: Gen/Forense, 2023, v. 1, p. 277-286.
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