Há um par de semanas, nesta Direto de Carf, foi publicada outra coluna (aqui) abordando temática de que tratamos no derradeiro do mês de outubro (aqui): a recém-aprovada Súmula Carf nº 210.
Além do respeitoso debate de ideias ser salutar, impossível deixar de destacar ter sido para este espaço convocado nome de peso para advogar contra o verbete sumular chancelado pela 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF): ao lado do meu estimado colega colunista, a professora Livre Docente coloca a termo todas as interessantíssimas ponderações declinadas no X Seminário Carf. A leitura instigou novas reflexões [1], razão pela qual o elejo (mais uma vez) como objeto do ensaio desta semana.
Passos para trás: a solidariedade no CTN
Curioso pensar como nosso CTN, editado em atroz regime, não só veio a ser materialmente recepcionado pela pródiga Carta de 1988, como mantém sua higidez, malgrado as alterações sofridas nestes seus quase 60 anos.
São dois os incisos do artigo 124 que arrolam aqueles solidariamente obrigados ao recolhimento do tributo:
– o inciso I que menciona “as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal”; e,
– o inciso II que indica “as pessoas expressamente designadas em lei”.
Como bem esclarece a ex-conselheira do Carf Junia Sampaio,
“[a] doutrina majoritária classifica as hipóteses acima mencionadas de solidariedade de fato (inciso I) e solidariedade jurídica (inciso II). No entanto, (…), embora o CTN tenha utilizado a expressão “designadas por lei” apenas na hipótese do inciso II, não é possível admitir que a situação prevista no inciso I estivesse fora de uma previsão legal, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade estrita (artigo 150, I, CF/88)” [2].
O inciso IX do artigo 30 da Lei nº 8.212/91, que não foi afastado por ilegalidade ou inconstitucionalidade pelo Poder Judiciário, determina que “as empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza respondem entre si, solidariamente, pelas obrigações decorrentes desta lei”. O que pretende aclarar o verbete sumular Carf de nº 210 é que a hipótese de solidariedade trazida no inciso IX do artigo 30 da Lei nº 8.212/91 vincula-se ao inciso II do artigo 124 do CTN (pessoa expressamente designada em lei) – e não ao inciso I do artigo 124 do CTN (interesse comum no fato gerador). Esta é a primeira premissa que há de ser repisada.
Caracterização de grupo econômico: a súmula como um cheque em branco à fiscalização?
Da doutrina e da jurisprudência colhem-se outros valiosos ensinamentos para a interpretação do disposto no inciso II do artigo 124 do CTN: o primeiro é que, como bem ensina a professora Misabel Derzi, em suas notas de atualização à obra de Baleeiro, solidariedade “não é forma de inclusão de um terceiro no polo passivo da obrigação tributária, apenas forma de graduar a responsabilidade daqueles sujeitos que já compõem o polo passivo” [3]. O segundo é que não poderia o legislador ordinário imputar solidariedade a devedores que, por disposição do Digesto Tributário, devam responder subsidiariamente. O terceiro é que “[o] art. 124, II, do CTN não autoriza o legislador a criar, a título de solidariedade, novos casos de responsabilidade tributária sem a observância dos requisitos exigidos pelo art. 128 do CTN” [4].
Este terceiro ponto que pretendemos melhor abordar na tentativa de agregar às considerações trazidas na coluna publicada mais recentemente (aqui).
Valendo-me novamente das palavras da caríssima Junia Sampaio, “a imputação do vínculo de solidariedade pressupõe que o sujeito mantenha relação, ainda que indireta, com o fato gerador tributário ou com a pessoa que o realizou (art. 128 do CTN)” [5]. O artigo 128 do CTN não aborda a necessidade de demonstração de “interesse comum no fato gerador” – ex vi do inciso I do artigo 124 do CTN –, e sim apenas uma vinculação, ainda que singela, do responsável ao fato gerador da obrigação tributária.
A segunda premissa importante a ser frisada é a de que não tem a Súmula Carf nº 210 a pretensão de definir qual grupo econômico é passível de responsabilização solidária, como insistimos noutra oportunidade (aqui). Tanto é assim que, na data de ontem [6], a CSRF houve por bem não conhecer de recursos especiais versando sobre o tema, justamente por dissidência na caracterização dos grupos, deixando de aplicar o verbete sumular. Ora, se estivéssemos diante de uma “responsabilidade objetiva”, por qual motivo atentar-se para os fatos caracterizadores do grupo econômico? E, não menos salutar é pontuar não ser o verbete de observância obrigatória à fiscalização fazendária – ex vi do §13 no artigo 25 do Decreto nº 70.235/73.
Tampouco trouxe a Lei nº 8.212/91 quaisquer contornos para melhor delimitar a responsabilidade solidária das empresas que integram o grupo econômico de qualquer natureza. No âmbito da Receita Federal tal lacuna é suprida pela Instrução Normativa RFB nº 2.110/2022, que inclusive replica, no inciso I do seu artigo 136, a hipótese de responsabilidade ora abordada.
O § 2º do seu artigo 275, curvando-se às alterações inseridas na CLT pela reforma trabalhista de 2017, determina que
“[n]ão caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, sendo necessárias, para a configuração do grupo, a demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes” (CLT, artigo 2º, § 3º).
Em que pese ser despicienda a demonstração do “interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal” (inciso I do artigo 124 do CTN), a leitura do dispositivo denota ser essencial a comprovação de um plus, de algo além do mero fato de ostentarem idêntico quadro societário para fazer atrair a responsabilidade.
Esclareço que, embora mencionado (aqui) que a Súmula Carf nº 210 afrontaria o Parecer Normativo Cosit/RFB nº 4/18, seu escopo é a responsabilidade solidária fundada no inciso I do artigo 124 do CTN [7] – e não na do inciso II do artigo 124 do CTN, como a prevista no inciso IX do artigo 30 da Lei nº 8.212/91. Apesar de o parecer não se prestar interpretar quaisquer dos dispositivos indicados no verbete sumular, podemos dele coletar importante conclusão:
“[A] terminologia ‘grupo econômico’ deve ser lida com cuidado, pois é plurívoca. (…). Pode ocorrer de em uma determinada situação os requisitos para a configuração do que se denomina ‘grupo econômico’ sejam mais restritos, ou mesmo distintos, do que em outra.”
O “interesse comum”, na forma exigida no inciso I do artigo 124 do CTN é inaplicável para a configuração da responsabilidade prevista no inciso IX do artigo 30 da Lei nº 8.212/91; contudo, reconhece a própria Receita Federal que, para a configuração do grupo econômico pode haver requisitos “mais restritos, ou mesmo distintos” a depender da situação configurada.
Essas constatações me parecem sinalizar para a insubsistência do receio de que autos de infração sejam lavrados contra todo e qualquer integrante de grupo econômico. Não deu a súmula um “cheque em branco” às auditoras e auditores fiscais: a uma, pelo enunciado não definir os elementos caracterizadores do grupo econômico sobre o qual recairá a responsabilidade; a duas porque os auditores sequer são obrigados a observar súmula do Carf, diferentemente do que ocorre com os pareceres e instruções exarados pela própria RFB – vide inciso I do artigo 100 do CTN e inciso I do artigo 33 da IN RFB nº 2.058/21. Ressalve-se que a força vinculante existe apenas em situações idênticas: ao lavrar uma autuação com base no inciso IX do artigo 30 da Lei nº 8.212/91 c/c o inciso II do artigo 124 do CTN não devem obediência ao Parecer Normativo Cosit/RFB nº 4/18 que, como esperamos ter demonstrado, trata exclusivamente do inciso I do artigo 124 do CTN.
As distintas nuances do Tema nº 13 do STF
Indagado (aqui) “o que distingu[iria] o artigo 13 da Lei 8.620/1993, julgado pelo STF sob regime de recursos repetitivos, do caso concreto?” com a conclusão de que “[a]penas os termos “sócios” e ‘grupo econômico’, uma vez que todo fundamento de decidir (ratio decidendi) é exatamente o mesmo”. Com todo o respeito, entendo de modo diverso.
A constitucionalidade da norma veio a ser desafiada por extrapolação do disposto no inciso III do artigo 135 do CTN, que versa sobre responsabilidade pessoal, com consequente afronta à alínea “b” do inciso III do artigo 146 da CRFB/88 (matérias reservadas à lei complementar). O debate, com a devida vênia, não guarda relação com o objeto da Súmula Carf nº 210. Peço licença para transcrever, a meu aviso, o ponto nodal do desate do Tema de nº 13 do STF, colhido da ementa de seu leading case:
“O art. 13 da Lei 8.620/93 não se limitou a repetir ou detalhar a regra de responsabilidade constante do art. 135 do CTN, tampouco cuidou de uma nova hipótese específica e distinta. Ao vincular à simples condição de sócio a obrigação de responder solidariamente pelos débitos da sociedade limitada perante a Seguridade Social, tratou a mesma situação genérica regulada pelo artigo 135, III, do CTN, mas de modo diverso, incorrendo em inconstitucionalidade por violação ao artigo 146, III, da CF”.
Diferentemente do artigo 13 da Lei nº 8.620/93, que imputava responsabilidade às pessoas físicas extrapolando as balizadas do artigo 135 do CTN, o inciso IX do artigo 30 da Lei nº 8.212/91 traz a responsabilidade solidária de pessoas jurídicas. A ratio decidendi do Tema de nº 13 é outra, eis que “as normas previstas nos artigos 134 e 135 não se referem a responsabilidade tributária das pessoas jurídicas” [8], como há muito alertou Junia Sampaio.
O apelo às (supostas) consequências e ao terror
Por derradeiro, muitos dos opositores da Súmula Carf nº 210 filiam-se ao entendimento de que, “(…) infelizmente a [sua] aplicação (…) acabará por contribuir para o desnecessário aumento de litigiosidade, e não nos parece haver qualquer possibilidade de manutenção da responsabilidade tributária objetiva no Judiciário” (aqui).
A preocupação parece flertar com o argumentum ad consequentiam (apelo às consequências) e, em certa medida, com o argumentum in terrorem (apelo ao terror). Este diz respeito ao uso de um temor, não baseado em evidências, como motivador para que uma ideia ou uma proposição seja aceita; ao passo que o primeiro se atrela à conclusão de que uma ideia seria verdadeira ou falsa porque as consequências de sua verdade ou falsidade seriam desejáveis ou indesejáveis [9].
Concordo que “[p]onderações críticas acerca do modelo da ‘sumularização’ do Direito” (aqui) são imprescindíveis; entretanto, exercícios de previsão de catastrófico futuro não escorado em dados pode acabar por precipitar desconfortos com algo que pode sequer vir a se materializar. Não detenho a certeza de qual postura será tomada pelo Poder Judiciário, caso provocado a se manifestar sobre controvérsias envolvendo o enunciado da Súmula Carf nº 210.
Isso porque, parcos são os recursos especiais, que versam especificamente sobre a responsabilidade atribuída ao grupo econômico pela Lei nº 8.212/91, apreciados pelo colendo STJ. Transcrevo, no que importa, excertos de precedentes daquela corte que, a meu ver, chancelam o que dispõe a legislação – e a súmula editada:
“Quando se sabe que a solidariedade fixada na legislação previdenciária é bastante ampla, a ponto de bastar que uma das componentes do grupo não cumpra suas obrigações fiscais, para que outra as assuma, é de extrema importância que o acórdão estabeleça se, no caso concreto, ficou configurado a existência de grupo empresarial.[10]
[O] caso em apreço versa sobre a solidariedade estipulada no inc. II do art. 124 do CTN (…). A lei invocada pela origem para a aplicação dessa regra foi o art. 30, inc. IX, da Lei n. 8.212/91 (…).
[N]ão se aplica no caso concreto a jurisprudência desta Corte de que inexiste solidariedade passiva em execução fiscal apenas por pertencerem as empresas ao mesmo grupo econômico, já que tal fato, por si só, não justifica a presença do “interesse comum”, tendo em vista que essa locução – interesse comum – é oriunda no inc. I do art. 124 do CTN e não do inc. II, sob análise” [11].
Os limites do contencioso administrativo fiscal
Para a pergunta de “se existe sequer um argumento capaz de afastar a inconstitucionalidade e a ilegalidade do artigo 30, IX, da Lei nº 8.212/91” (aqui) – caberá ao Poder Judiciário responder, caso venha futuramente a ser provocado.
No atual estado da arte, permanece no ordenamento o inciso IX do artigo 30 da Lei nº 8.212/91, razão pela qual são as conselheiras e os conselheiros do Carf, no estrito exercício do controle de legalidade do lançamento, obrigados a observá-lo. Inexiste precedente vinculante apto a afastar a aplicação da norma de responsabilidade prevista na Lei nº 8.212/91, de modo a autorizar a invocação do parágrafo único do artigo 98 do RICarf.
Não se nega que os desafios são muitos e a realidade constantemente cambiante é assaz complexa; contudo, nem todas as situações são complicadas como a priori parecem ser. Como bem aclara o ministro Mauro Campbell Marques,
“à luz do art. 124, inc. II, do CTN e do art. 30, inc. IX, da Lei nº 8.212/91, basta aferir se, a partir do contexto fático-probatório dos autos, há elementos suficientes para caracterizar a existência de ’empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza’, para, em caso positivo, concluir pela existência de solidariedade” [12].
O fato de a súmula, editada com respaldo em norma ainda vigente, desagradar não significa estar eivada de inconstitucionalidade e/ou ilegalidade. E, ainda que esteja, só ao Poder Judiciário compete expurgar do ordenamento jurídico a norma que a ampara, caso vislumbre as indigitadas afrontas à Carta Constitucional e/ou ao Digesto Tributário. Agradando ou não há de ser a Súmula Carf nº 210, no âmbito do contencioso administrativo fiscal federal, observada.
[1] Por falar em reflexões, não posso deixar de agradecer aos meus eternos – e queridíssimos – Presidentes da 2202, MÁRIO HERMES S. CAMPOS, RONNIE S. ANDERSON e SONIA ACCIOLY pelas considerações que contribuíram para a redação do texto final. Neste mês, em que completo seis anos junto ao Carf, registro toda minha gratidão por, com eles, e com tantos outros, ter aprendido e aprender tanto.
[2] SAMPAIO, Junia R. G. A Responsabilidade Tributária nos Grupos Econômicos. In: MACHADO SEGUNDO, Hugo de B.; MURICI, Gustavo L.; RODRIGUES, Raphael S.. O Cinquentenário do Código Tributário Nacional, V. 1. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 581/598.
[3] Cf. BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense,2007, p. 729.
[4] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. São Paulo: Saraiva Educação, 2020 [e-book].
[5] SAMPAIO… Idem.
[6] Cf. processos nºs 10166.724557/2014-12, 10166.724560/2014-28 e 10166.724917/2014-78.
[7] Cf. o objeto do parecer: “A consulente informa que se trata da ‘possibilidade de atribuição de responsabilidade ao terceiro que praticou atos ilícitos em conjunto com o contribuinte, com fundamento no art. 124, I, do Código Tributário Nacional (CTN)”.
[8] Cf. SAMPAIO … Idem.
[9] Cf. BENNETT, Bo. Logically Fallacious: The Ultimate Collection of Over 300 Logical Fallacies. Sudbury: eBookIt, 2012 [e-book].
[10] STJ. AgRg no REsp nº 1.097.173/RS, julgado em 23/4/2009.
[11]STJ. REsp nº 1.144.884/SC, julgado em 7/12/2010.
[12] Idem.
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