Alcance da tese do STF sobre nova LIA gera debate e insegurança

Quando o Supremo Tribunal Federal diz que determinada regra da nova Lei de Improbidade Administrativa (Lei 14.230/2021) retroage para casos anteriores, desde que não haja condenação definitiva, é correto afirmar que todas as demais normas não podem retroagir?

Alcance da tese do STF sobre a retroação da nova LIA tem sido interpretada de maneiras diferentes no STJ e nas instâncias ordinárias

A singela dúvida tem causado insegurança jurídica na aplicação de diversas alterações promovidas em 2021 pelo legislador em pontos fundamentais da LIA (Lei 8.429/1992). Potencialmente, são milhares de ações afetadas em todo o país.

Uma resposta sobre a retroatividade da nova LIA foi dada pelo STF em agosto do ano passado, com a fixação de quatro teses para dizer que a revogação da modalidade culposa do ato de improbidade só se aplica a casos anteriores se não houver condenação transitada em julgado.

O Supremo também estabeleceu que o novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei. E como devem ser tratadas todas as demais disposições da nova LIA?

Interpretação restritiva
Responsável pela última palavra na interpretação de lei federal, o Superior Tribunal de Justiça, até agora, indicou que vai adotar uma visão restritiva: retroação apenas nos casos de atos ímprobos culposos não transitados em julgado. Esse entendimento foi inaugurado pela 1ª Turma, em maio deste ano.

Por maioria de votos, o colegiado recusou a aplicação do atual artigo 21 da Lei de Improbidade, que prevê que o juiz considere a aprovação ou a rejeição das contas pelo órgão de controle interno ou pelo Tribunal ou Conselho de Contas, quando tiverem servido de fundamento para a conduta do agente público.

O uso desses elementos para analisar o caso concreto teria impacto, inclusive, na existência ou não de dolo na conduta do prefeito processado naquele caso. A interpretação restritiva foi depois replicada em outro julgamento, no qual a 1ª Turma recusou-se a usar o novo e mais restrito regramento que autoriza a indisponibilidade de bens dos acusados de improbidade.

É a regra dos parágrafos 3º e 4º do artigo 16 da LIA, que inseriram a exigência da demonstração de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo para o deferimento da medida patrimonial. Como já mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, ela vem sendo consistentemente usada para derrubar bloqueios de bens por todo o país.

Outro julgado na mesma linha é da Corte Especial, em embargos de declaração contra decisão de admissibilidade de recurso extraordinário no AREsp 1.564.776. O embargante pediu para ser aplicada a regra do artigo 17, parágrafo 10-F, inciso II, segundo a qual é nula a decisão de mérito que condena sem a produção das provas tempestivamente especificadas.

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Relator, o ministro Og Fernandes pontuou que o caso não trata de condenação por ato culposo de improbidade administrativa. Portanto, não é hipótese de retroação. “Não há qualquer determinação do STF para aplicação retroativa do artigo 17, parágrafo 10-F, II, da LIA”, resumiu ele.

STJ tem adotado interpretação restritiva das variadas hipóteses de retroação da nova LIA
Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Insegurança
Advogados consultados pela ConJur elencaram diversos outros artigos não discutidos no leading case julgado pelo STF e que devem gerar discussão judicial. O principal deles é o artigo 11, que estabeleceu um rol taxativo dos atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública.

Ao enfrentar esse caso no AREsp 2.184.285, a 1ª Turma do STJ afirmou que o Supremo não determinou a aplicação retroativa do novo rol taxativo das condutas descritas no artigo 11 da LIA. “Logo, não é cabível a devolução dos autos ao juízo de origem para eventual juízo de conformação.” Assim, o processo não volta às instâncias ordinárias, nem é alterado na instância especial.

Nesse ponto, chama a atenção a decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, do STF, no ARE 1.346.594. Ele aplicou retroativamente o mesmo artigo 11, dando provimento ao recurso extraordinário para julgar improcedente a ação civil pública por ato de improbidade administrativa.

O ministro destacou que “a diretriz fixada no julgamento quanto à incidência imediata das novas disposições da Lei 8.429/1992 aos processos em que ainda não tenha ocorrido o trânsito em julgado é plenamente aplicável a casos em que não necessariamente esteja em discussão o elemento subjetivo da imputação, haja vista não ter sido essa a única alteração promovida pela Lei 14.230/2021”.

Articulistas da ConJur usaram a decisão monocrática para apontar que, na verdade, o STF não taxou a retroatividade da nova LIA, apenas teceu contornos sobre como o tema deve ser tratado. O procurador federal Francisco Vieira Lima Neto escreveu que o acórdão do Tema 1.199, em tese, aplica-se a qualquer caso em que a acusação se sustente em um tipo revogado.

Também com base na decisão do ministro Gilmar, Bernardo Strobel GuimarãesCaio Augusto Nazário de Souza e Luis Henrique Braga Madalena classificaram como perigosa a interpretação restritiva promovida pelo STJ e defenderam que os fundamentos utilizados para negar a retroatividade às inovações em matéria de prescrição podem e devem servir de norte para a interpretação das demais disposições da Lei 14.230/2021.

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Em decisão monocrática, ministro
Gilmar Mendes indicou que há outras hipóteses de retroação da nova LIA
Carlos Moura/SCO/STF

O que decidiu o STF?
Entre os advogados consultados pela ConJur não há consenso. Na opinião de Matteus Macedo, a tese firmada pelo STF sobre a retroatividade da nova LIA não é exauriente sobre todos os dispositivos da norma. Entender assim, como tem feito o STJ, pode levar a decisões conflitantes. “Contraria a posição do STF e gera insegurança jurídica”, resumiu ele.

Bruna de Freitas Amaral, do escritório Cittadino, Campos e Antonioli Advogados Associados, concorda. Ela afirma que o STF fixou tese sobre apenas dois dos aspectos importantes da nova LIA. Assim, existe margem para discussão sobre a retroatividade de outras normas, já que o entendimento assentado é sobre questões pontuais, não constituindo um comando geral.

Para ela, a interpretação restritiva do STJ acabou por afastar a aplicação imediata de normas de cunho eminentemente processual, que não discutem especificamente o direito material previsto na nova LIA. “O risco é que ocorra uma dualidade processual por tempo indeterminado, aplicando-se, concomitantemente, normas da antiga lei e normas da nova lei, tudo a ocasionar grave insegurança jurídica.”

Já a constitucionalista Vera Chemim interpreta a redação das teses pelo STF como taxativa no sentido de delimitar as condições em que os agentes públicos podem usufruir das mudanças correspondentes à nova LIA, quando os atos são de natureza culposa. Ela vê a necessidade de se garantir a efetividade da lei, priorizando sua interpretação restritiva, sob o risco de aumentar ainda mais o leque de impunidade.

“O perigo de uma interpretação extensiva é isentar agentes públicos que tenham cometido atos culposos que tenham causado prejuízo ao erário. Portanto, flexibilizar as suas normas para além da tese proposta pelo STF equivale a fechar os olhos para uma irresponsabilidade do agente público que cometeu um ato culposo de improbidade administrativa e invalidar a eficácia daquele diploma legal.”

Lei mais benéfica
Fernando Augusto Fernandes
, sócio da banca Zockun & Fernandes Advogados, chama a atenção para o fato de que o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal têm princípios semelhantes. Por isso, ele entende que as garantias ao réu nos casos penais devem ser estendidas tanto quanto possível aos acusados de improbidade.

Essa aproximação é reconhecida pelo ministro Gilmar Mendes, que afirma que não concorda com os que posicionam os atos de improbidade administrativa exclusivamente no âmbito do Direito Civil, negligenciando o seu inequívoco caráter sancionador.

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“A meu ver, não há como cindir de forma absoluta o tratamento conferido aos atos de improbidade administrativa daquele próprio à seara criminal, sobretudo quando em jogo as garantias processuais”, argumentou o decano do Supremo na decisão monocrática do ARE 1.346.594.

Para Fernandes, o Direito Administrativo Sancionador é um microssistema e a lógica da interpretação judicial da Lei de Improbidade deve acabar influenciada. “O Judiciário não pode restringir, mudar e adiar a aplicação de uma norma que limita a punição do Estado. O Legislativo visou a colocar um freio nos abusos e permitir mais segurança aos agentes públicos.”

Eduardo Alexandre Guimarães, do Gerber e Guimarães Advogados Associados, suscita a mesma discussão ao afirmar que vê similitude e proximidade tão grandes entre as normas do Direito Penal e as do Direito Administrativo Sancionador a ponto de existir o dever de retroagir a lei mais benéfica. “Segundo a Constituição Federal, é um direito do réu, não sendo possível fazer interpretação restritiva quando se fala em asseguração de direitos.”

Ainda assim, ele entende que a interpretação restará mesmo restritiva para a nova LIA. Para processos anteriores, o juiz de cada caso deve analisar se as condutas descritas na peça inicial foram dolosas ou culposas, de modo que, sendo culposas, o novo regramento legal deve retroagir.

Outras regras da LIA que podem, em tese, suscitar discussão sobre retroação:

  • Artigo 8: Limita os efeitos da condenação por improbidade administrativa sobre obrigar o sucessor ou o herdeiro daquele que causar dano ao erário ou que enriquecer ilicitamente;
  • Artigo 12, inciso III (revogado pela nova LIA): Revogação da pena de suspensão dos direitos políticos para atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da Administração Pública;
  • Artigo 12, parágrafo 6º: Norma que diz que, na hipótese de lesão ao patrimônio público, a reparação deve deduzir o ressarcimento ocorrido nas instâncias criminal, civil e administrativa que tiver por objeto os mesmos fatos;
  • Artigo 17, parágrafo 19, incisos II e IV: Afastam a imposição de ônus da prova ao réu e o reexame obrigatório da sentença de improcedência da ação;
  • Artigo 17-B: Prevê o acordo de não persecução civil;
  • Artigo 17-C, parágrafo 2º: Regra que afasta a solidariedade na condenação por improbidade, impondo que a sentença explicite o limite da participação e dos benefícios de cada acusado;

ARE 1.346.594 (STF)
AREsp 2.031.414 (STJ)
AREsp 1.877.917 (STJ)
AREsp 1.564.776 (STJ)

Fonte: Conjur

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