Cobrança pelo uso da faixa de domínio: plenário do STF encerra a controvérsia

Dois julgamentos realizados pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal encerraram uma disputa que se repete em centenas de processos nos tribunais estaduais. De um lado, concessionárias de rodovias responsáveis pela gestão de malhas rodoviárias insistiam em cobrar pelo uso da faixa de domínio, local onde as concessionárias de energia instalam seus equipamentos como postes e linhas de transmissão. De outro lado, as concessionárias de energia, que se opõem à cobrança, colocando como pontos principais de objeção a violação às regras de repartição de competências e poderes estabelecidos na Constituição e, notadamente, os inevitáveis impactos sobre as tarifas dos seus serviços.

Apesar da clareza das normas que fundamentam a pretensão das concessionárias de energia pelo uso gratuito das faixas de domínio das rodovias concedidas, a questão controvertida nunca foi de fácil resolução, ao menos sob a ótica da jurisprudência.

Em acórdão publicado no dia 6 de fevereiro de 2025, o Plenário do STF, no julgamento dos embargos de divergência no Recurso Extraordinário n° 1.181.353/SP, acabou com qualquer dúvida em relação à (in)constitucionalidade da cobrança. Em seu voto, o ministro Nunes Marques, relator para o acórdão, trazendo à luz a exceção normativa prevista em favor das concessionárias de energia (Decreto 84.398/80), salientou que “é possível que as empresas concessionárias aufiram receitas adicionais, mediante a exploração de atividade secundária, isto é, distinta do objeto principal da concessão, salvo quando no contexto da implantação dos equipamentos das empresas de energia elétrica em faixas de domínio”. Ao final definiu-se a seguinte tese:

(i) a controvérsia ostenta estatura constitucional e (ii) a cobrança de preço público ou tarifa pela ocupação de bens públicos por concessionárias de serviço de energia elétrica é ilegítima, pois (ii.a) a norma estadual que ampara a exação se imiscuiu na competência privativa da União para legislar sobre energia elétrica, (ii.b) o Decreto federal n. 84.398/1980, recepcionado pela Constituição de 1988, assegura a não onerosidade da ocupação de faixas de domínio de rodovias, ferrovias e de terrenos de domínio público para instalação de linhas de transmissão de energia elétrica e (ii.c) a previsão do art. 11 da Lei n. 8.987/1995 não se mostra aplicável à espécie.

Esse entendimento foi acompanhado integralmente por cinco ministros (Carmen Lúcia, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Edson Fachin e André Mendonça). Outros três ministros (Alexandre de Morais, Flávio Dino, Cristino Zanin) sequer reconheceram a divergência havida entre as turmas do Supremo, por compreender que a questão já estaria pacificada no âmbito daquela Corte em desfavor da cobrança pelo uso das faixas de domínio. Já o ministro Roberto Barroso apresentou divergência, acompanhada pelo ministro Luiz Fux, por compreender que a discussão teria índole infraconstitucional.

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De forma resumida, 9 dos 11 ministros se manifestaram no sentido de que a pretensão das concessionárias de rodovia é, de fato, inconstitucional.

Não é caso de redução de custos

Já nos embargos de divergência no Recurso Extraordinário 889.095/RJ, finalizado no dia 21 de fevereiro de 2025, o relator do caso, ministro André Mendonça, acrescentando valiosas contribuições sobre a matéria, além de novamente reconhecer a compatibilidade do supramencionado Decreto 84.398/80 com a Constituição, salientou que o objetivo da não onerosidade é reduzir os custos da implantação da infraestrutura de postes e de cabos para transmissão de energia elétrica, “sem que os prestadores do serviço público tenham de, ainda, arcar com uma espécie de ‘aluguel’ das faixas marginais”. Apresentou inclusive importantes reflexões sobre os impactos que a cobrança pretendida pelas concessionárias de rodovias poderia ocasionar nas tarifas de energia elétrica:

Embora os serviços de manutenção das rodovias e do fornecimento de energia elétrica visem ao bem-estar da coletividade, com importância equivalente, o interesse público primário teria, com efeito, saldo negativo se equacionados os quocientes das concessionárias – de rodovia de um lado, e de energia elétrica de outro.

Não o bastasse, poderiam as concessionárias de energia elétrica demandar o reequilíbrio de seu contrato em face da União (pela superveniência de fato do príncipe), de forma a onerar os cofres públicos.

Concluiu ainda o ministro relator que “é inarredável a conclusão pela inviabilidade de que um mesmo serviço público seja cobrado (tributado ou tarifado) de maneira distinta, ao exclusivo talante de cada ente político estadual ou municipal, de suas autarquias ou, até mesmo, de concessionárias privadas”.

Esse entendimento foi acompanhado por nove dos dez ministros votantes, considerando o impedimento declarado pelo ministro Luiz Fux. O ministro Luis Roberto Barroso apresentou divergência no mesmo sentido daquela anteriormente manifestada: considerar a discussão de índole infraconstitucional.

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Entendimento do STJ

Este caso (RE 889.095/RJ), em específico, apresenta especial relevância, na medida em que modifica o entendimento diverso da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça nos autos dos embargos de divergência no Recurso Especial 985.695/RJ. Referido julgado que uniformizou a jurisprudência no âmbito do STJ, e que vinha sendo aplicada por alguns tribunais estaduais, consagrou compreensão pela viabilidade da cobrança.

Em outras palavras, o Supremo, em dois julgamentos muito recentes realizados pelo Plenário, reconheceu a amplitude constitucional da controvérsia e aplicou aos casos envolvendo concessionárias de serviços públicos (rodovias e energia), a mesma premissa já reconhecida por aquela corte em julgamentos de controle concentrado de constitucionalidade: estados e municípios não podem onerar um serviço público federal, sob pena de violar a repartição de competências e poderes estabelecidos na Constituição.

O Supremo reconhece, igualmente, que o artigo 11 da Lei de Concessões (Lei 8.987/90), apesar de garantir a possibilidade de as concessionárias aferirem receitas extraordinárias, não derrogou o artigo 2º do Decreto nº 84.398/80, que contém expressa previsão para a implantação dos equipamentos das concessionárias de energia elétrica em faixas de domínio sem custos para sua alocação. Confere, ainda, especial atenção à modicidade tarifária, ao compreender, corretamente, que a cobrança pretendida pelas concessionárias de rodovias geraria a chamada “distorção alocativa”, na medida em que os usuários das rodovias não seriam beneficiários diretos do repasse feito pelas concessionárias de energia às empresas administradoras da malha rodoviária. Lado outro, o repasse de tal cobrança teria impacto nas tarifas de energia, onerando diretamente os consumidores finais.

Esse entendimento já vinha sendo adotado de forma isolada por ambas as turmas, mas, ao julgar a matéria em Plenário, o Supremo Tribunal Federal dá contornos finais a eventuais controvérsias e referenda tese pela impossibilidade da cobrança pelo uso das faixas de domínio pelas concessionárias de rodovias em desfavor das concessionárias de energia, seja por seu aspecto ilegal e inconstitucional, seja em razão dos impactos econômicos da exação.

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