Dilema da reclamação faz STJ abrir mão do controle das teses que fixa

Na busca por se estabelecer na função que a Constituição Federal de 1988 lhe reservou, de corte de uniformização da interpretação do Direito Federal, o Superior Tribunal de Justiça vive um dilema em relação ao uso da reclamação constitucional.

Previsto no artigo 102, inciso I, alínea “l”, da Constituição, o instrumento permite a preservação da competência e da autoridade das decisões dos tribunais, sempre que forem informados pelas partes de algum desrespeito ou descumprimento.

Dilema foi abordado pelo ministro Ribeiro Dantas em sua palestra no Congresso
Emerson Leal/STJ

O dilema reside na possibilidade de admissão do uso da reclamação contra o descumprimento das teses vinculantes que o STJ fixa, por meio dos julgamentos de recursos repetitivos. O entendimento atual, estabelecido pela Corte Especial, é de que isso não é possível, seja para discutir a aplicação errada ou mesmo a não aplicação das teses.

Por um lado, isso evita que o STJ tenha de analisar cada caso concreto em que uma tese é aplicada nas instâncias ordinárias. O potencial aqui é numérico, já que os repetitivos resolvem temas que afetam uma multiplicidade de casos.

Os ministros da corte que defendem essa restrição dizem que, se o tribunal passar a admitir a reclamação contra descumprimento de repetitivos, de nada adiantará, pois o STJ passará a receber a mesma quantidade de recursos que a tese firmada tentou coibir.

Por outro lado, isso significa que o tribunal está abrindo mão de controlar a aplicação das teses que ele mesmo fixa. Isso, em um cenário de hiperjudicialização e amplo desrespeito das instâncias ordinárias aos precedentes, deixa o jurisdicionado desprotegido. E gera recursos.

O tema foi discutido no I Congresso Sistema Brasileiro de Precedentes, promovido na semana passada pelo STJ. A conclusão dos especialistas foi de que o tribunal tem encontro marcado com o assunto, especialmente porque está em vias de implementar o filtro da relevância recursal, que fechará ainda mais as portas para os recursos.

Veja também:  Distinções entre as assinaturas digitais e as eletrônicas ainda são pouco conhecidas
Para Cássio Scarpinella, sistema dos precedentes não vai fechar se o STJ não se dispuser a analisar a aplicação de suas teses
Rafael Luz/STJ

Viabilidade do sistema
Para o ministro Ribeiro Dantas, do STJ, ambas as posições têm seu mérito. Inclusive a adotada pela Corte Especial faz sentido, sob o ponto de vista de política judiciária. Para ele, se o tribunal julga um repetitivo, faria sentido permitir que os milhões de interessados nos processos sobrestados ajuízem reclamações para discutir a aplicação da tese?

“De fato, se você usar a reclamação individual para discutir uma tese geral, você pode inviabilizar um sistema de precedentes que ainda é nascente, que não se solidificou e que sofre tantas criticas de boa parte da doutrina, que acha que não é o verdadeiro sistema”, destacou o magistrado em sua palestra.

Ele fez ainda outra reflexão: se o STJ dá uma ordem e as instâncias ordinárias não a cumprem, quem é que garante que, por causa da reclamação, ela será cumprida? “O que o tribunal faz quando julga procedente uma reclamação? Ele manda cumprir de novo. E se não for cumprido?”, indagou o ministro.

Para o presidente do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), Cássio Scarpinella, o STJ precisa rever o cabimento da reclamação. Um exemplo citado é a polêmica revisão do Tema 677 dos repetitivos, feita porque a ministra Nancy Andrighi identificou que uma tese firmada estava causando dispersão jurisprudencial ao ser aplicada pelas instâncias ordinárias.

“O sistema não fecha se o STJ não se dispuser a analisar o seu precedente. Aqui não é common law. Se a autoridade baixa um precedente e se recusa a ver que está dando problemas interpretativos, é o fim do sistema”, afirmou ele em sua fala durante o Congresso.

Veja também:  Limites entre liberdade de organização religiosa e direito à intimidade
Segundo Fredie Didier Jr., admissão da reclamação pelo STJ será consentânea com evolução do recurso ao longo do tempo
Emerson Leal/STJ

Evolução histórica
A reclamação é um instituto criado pelo Supremo Tribunal Federal com base na doutrina dos poderes implícitos (implied powers), delineada na Suprema Corte dos Estados Unidos. Ela só apareceu no ordenamento jurídico brasileiro a partir da Constituição de 1988.

Seu uso, de fato, tem sido profundamente afetado pelo desrespeito reiterado ao sistema de precedentes que a Reforma do Judiciário de 2004 e o Código de Processo Civil de 2015 tentaram reforçar. Cada juiz que não aplica uma tese ou súmula vinculante abre as portas para o ajuizamento de uma reclamação.

Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídicoo STF tem vivido uma explosão desse incidente processual. Isso ocorre justamente porque, ao contrário do STJ, o Supremo permite seu uso para controlar a aplicação das teses que fixa. Em uma corte constitucional, isso é muito importante.

Para citar apenas alguns exemplos, a reclamação foi o que garantiu a luta contra a censura, o cumprimento da ordem de fazer audiência de custódia em todas as prisões do país e a preservação da competência da Justiça Eleitoral para julgar crimes conexos. E o próprio STF vem ampliando o uso da reclamação ao longo dos anos.

Ela é cabível quando for necessário adequar decisão de corte à orientação firmada pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade e também discutir a observância do regime da repercussão geral. E também para esclarecer a extensão do conteúdo da decisão paradigma, no que se chama de “função integrativa“.

Esse cenário é o que faz com que o STJ possa finalmente aceitá-la para reforçar ou até rever seu entendimento, na visão do professor Fredie Didier Jr. “Isso não estará em dissonância com a evolução histórica da reclamação. Ela, embora não tivesse esse papel, foi adquirindo esse papel, nesse exercício de criatividade pelos tribunais superiores e pelos operadores.”

Veja também:  Corretagem de seguros e comissão contingente

“O tribunal se eximir de controlar um comando que ele mesmo criou não me parece a solução correta”, disse o professor. Segundo o ministro Ribeiro Dantas, o país precisa construir uma solução porque o assunto não está inteiramente resolvido. “Algum tipo de reclamação relevante, algo que tenha uma titularidade especial”, sugeriu.

Fonte: Conjur

Leia também: