Direito à educação de qualidade precatorizado: lições do Fundef

Este artigo é a continuação do debate iniciado no último dia 25 de novembro aqui, quando foi explorado o regime jurídico do direito à educação de qualidade (artigo 206, VII da CF/1988) e sua evolução até o estabelecimento do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef).

O presente estudo foi subdividido em busca da reflexão dos desafios (primeira parte já publicada) e das lições (escopo desta segunda) trazidas pela judicialização acerca do dever de complementação federal ao valor de referência por aluno que, em tese, haveria de garantir o custeio do padrão mínimo nacional de qualidade da educação pública brasileira.

Após haver sido deferido judicialmente o multibilionário pleito de ressarcimento da União a diversos entes políticos, os precatórios do Fundef estiveram sujeitos ao risco de apropriação de parcela desses recursos por grupos de interesse, sem uma necessária aderência à sua finalidade constitucional vinculativa, de manutenção e desenvolvimento da educação e valorização do magistério.

Foi o caso dos escritórios de advocacia que buscaram firmar contratos com os municípios beneficiários, sem licitação, por uma suposta inexigibilidade de licitação, para a promoção de ações autônomas de cumprimento do provimento judicial obtido pelo Ministério Público Federal, estipulando honorários contratuais de até 30% dos valores sempre expressivos dos precatórios do Fundef. Isso ocorreu, a despeito da natureza ordinária da atuação demandada desses profissionais, restrita à execução de decisão judicial transitada em julgado contra a Fazenda Pública federal, para a qual inexiste risco de insolvência ou mesmo a necessidade de localizar bens passíveis de penhora. Injustificáveis, portanto, os valores cobrados e a própria contratação direta desses escritórios. [1]

Foi o caso, também, dos profissionais do magistério, que demandavam que lhes fosse direcionado 60% do valor dos precatórios, sob a forma de “bônus pecuniário” ou “abono”. Tal demanda era calcada na regra legal que prescrevia que, no mínimo, 60% dos valores do Fundef fossem destinados à remuneração dos profissionais do magistério em efetivo exercício de suas atividades no ensino fundamental público (artigo 7º da Lei nº 9.424/1996).

Há controvérsias, porém, sobre a real necessidade e até mesmo sobre a adequação da destinação de tais recursos a abonos remuneratórios para profissionais do magistério ativos e inativos (aposentados e pensionistas), a despeito do permissivo constitucionalizado no parágrafo único do artigo 5º da Emenda 114/2021.

Vale lembrar, por sinal, que o foco nuclear do Fundef é o educando e, conforme bem sintetiza Cristina Melo (2023, p. 41), “a maioria dos municípios acabam tendo que destinar a maior parte dos recursos do fundo educacional para pagamento da folha de salários, o que, na prática, muito mais que os 60% são revertidos para remuneração, o que impacta os recursos disponíveis para tantas outras ações necessárias para melhoria da educação, tais como construção ou reforma dos estabelecimentos escolares, aquisição de materiais e equipamentos a serem utilizados no dia a dia das escolas, entre outros. Então, não necessariamente os recursos da complementação da União que não chegaram na ponta seriam utilizados para aumentar a remuneração dos profissionais do magistério”.

Some-se a isso que, nos cinco primeiros anos dos nove em que vigeu o Fundef, a lei autorizava o uso do percentual vinculado à remuneração dos profissionais do magistério na capacitação de professores leigos, o que igualmente prejudica a certeza de que 60% dos valores que a União deixou de repassar teriam sido empregados na majoração de remunerações.

E por mais que a premissa dos professores possa ser, em alguns casos, total ou parcialmente verdadeira e que o trabalho desempenhado por esses profissionais seja indubitavelmente essencial para a concretização do direito fundamental à educação, há que se considerar que os recursos do Fundef eram constitucionalmente vinculados à manutenção e ao desenvolvimento do ensino fundamental, com o objetivo de assegurar a universalização de seu atendimento e a remuneração condigna do magistério. Tal liame inexiste no pagamento de bônus extraordinário aos professores, muitos deles já aposentados, ou aos seus pensionistas, pois não adere à remuneração da carreira docente, não a torna capaz de melhor atrair e reter profissionais qualificados, nem mesmo cria qualquer estímulo para o desempenho futuro dos profissionais da ativa.

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Lições de um precedente judicial tão paradigmático

Fazemos toda essa explanação de contexto para evidenciar como a reparação judicial intempestiva do subfinanciamento da educação pode ser débil. No caso dos precatórios do Fundef, o direito à educação, que está no cerne das regras constitucionais e legais de financiamento mínimo e vinculação de recursos e da própria atuação judicial do MPF, perdeu relevância no desfecho, tendo sido obliterado e preterido diante de direitos estritamente pecuniários, não só dos municípios, mas de professores e advogados.

É claro que a resistência da União à pretensão exercida pelo MPF, inclusive por meio da interposição de diversos recursos, teve papel relevante na demora do provimento judicial e no desfecho observado. Não há dúvida, também, de que é direito das partes, mesmo das pessoas jurídicas de direito público, exercitar a sua ampla defesa, “com os meios e recursos a ela inerentes”, conforme explicita o artigo 5º, inciso LV, da Constituição. Por outro lado, o risco de sucumbência futura e os custos da protelação precisam ser considerados. Inclusive custos de movimentação da máquina judiciária federal, cujo financiamento igualmente recai sobre a União. E não apenas prejuízos estritamente econômicos, mas também para a concretização da política pública, em se tratando a parte ré de pessoa jurídica de direito público, cuja atuação, em qualquer esfera, há que se pautar primeiro pelo interesse público.

Não se pode ignorar, também, a possibilidade de a resistência da União se motivar na própria protelação do gasto, seja para cumprir determinada meta fiscal, seja para criar espaço fiscal-orçamentário no curto prazo para outra despesa politicamente preferida, mesmo antevendo o risco de, mais dia, menos dia, a despesa postergada retornar sob a forma de precatório, acrescida de expressivos juros moratórios. Isso ocorrerá, porém, muito provavelmente, não na gestão do incumbente protelador, mas de algum de seus sucessores. Não à toa vemos os precatórios federais se avolumarem em ritmo preocupante.

É desejável que o arcabouço fiscal mitigue esse tipo de incentivo perverso, inclusive como forma de preservar o espaço fiscal futuro e a sustentabilidade das contas públicas desse processo de “precatorização de direitos”, de postergação de despesas imperativas e da própria concretização de direitos nos níveis já assegurados pelo ordenamento jurídico. Talvez pela exigência de alguma espécie de provisionamento, conforme análise isenta e confiável de prognóstico judicial, e pela introdução de mecanismos legais que incentivem uma gestão mais inteligente de processos judiciais, pautada não pelo exaurimento das instâncias recursais, mas por uma adequada gestão de riscos e pela busca de soluções negociais sempre que possível. Evitar-se-ia, assim, a sobrecarga do sistema de justiça, que também absorve recursos fiscais importantes e estimular-se-ia a construção dialogada de soluções de conflito, capazes, inclusive, de melhor atender as preocupações do poder público réu.

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Mas, para além disso, em causas como a do Fundef, caracterizadas por conflitos federativos relativos a transferências obrigatórias vinculadas a finalidade específica, mesmo à falta de soluções consensuais, nos parece necessário cogitar alternativas de provimento judicial que não se restrinjam a imputar a obrigação de pagar quantia ao ente devedor, mas que busquem preservar o liame entre os recursos financeiros e os fins jurídico-constitucionais a que se vinculam, sob uma perspectiva mais estrutural do conflito.

Impõe-se reconhecer a natureza estrutural do problema, que não se restringe à sua dimensão econômica, nem aos entes federativos envolvidos. Sob a perspectiva do direito à educação — motivo, mas também objetivo mediato da pretensão pecuniária exercida em face da União —, não se pode ignorar o interesse direto da comunidade escolar, composta por pais e alunos, bem assim por professores e demais profissionais da educação.

Trata-se de aspectos que agregam complexidade à causa e impedem que se entenda reparados os bens jurídicos afetados pela mera reparação pecuniária, em face dos pagamentos feitos a menor no passado.

Nesse sentido, em casos como esse, parece não se mostrar satisfatória a resposta oferecida pelo processo tradicional, em que se busca a resolução de controvérsias “com uma única sentença sobre o mérito, capaz de resolver todo o conflito e permitir o início da fase de efetivação” (Arenhart, Sérgio Cruz. Osna, Gustavo. Jobim, Marco Félix. Curso de Processo Estrutural. 2 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Ed. RT, 2022, p. 216)

É certo que se tem mais comumente tratado como processos estruturais causas que demandam obrigações de fazer do poder público, como a ampliação da disponibilidade de um serviço público ou a sua prestação em padrões mais adequados de qualidade e presteza. Porém, em casos como o do Fundef, em que os valores postulados não se encerram neles mesmos, mas se vinculam a determinada finalidade constitucional, à concretização incremental de um direito fundamental, tal obrigação de resultado não pode ser ignorada, bem assim a peculiaridade de ela recair não sobre o devedor, mas sobre o credor da obrigação pecuniária (responsável que é pela efetiva alocação dos recursos).

Isso justifica, a nosso ver, o questionamento à efetividade de se determinar o pagamento de valores retroativos correspondentes a muitos anos de uma única vez, sem nenhuma garantia de que eles possam beneficiar o serviço público de forma consistente e duradoura.

Sob a premissa de que incumbe ao Estado-juiz buscar a efetiva tutela de direitos, particularmente dos direitos fundamentais, Arenhart, Osna e Jobim (2022, p. 41) bem apontam a “necessidade de que se pense em ritos e em meios de atuação mais flexíveis — percebendo-se que a realidade concreta não pode ser resumida em qualquer tipo de previsão legal” — ou, acrescentamos, em categorias estritas ou estanques de provimento judicial. Nesse mesmo sentido, os autores reforçam “a importância das técnicas processuais abertas, capazes de se amoldar às exigências do caso concreto”.

No caso dos precatórios do Fundef, como em eventuais casos semelhantes, se mostraria salutar um provimento judicial que condicionasse a obrigação de pagamento da União à apresentação de um plano de aplicação vinculativo pelo ente beneficiário, com um cronograma claro e factível, que inclusive autorizasse o fracionamento do precatório, conforme a necessidade de financiamento das etapas e ações do plano, e mesmo o monitoramento da efetivação do plano, tanto pela Fazenda Pública executada quanto pelo juízo da execução, de modo que a efetivação de cada etapa do plano também pudesse condicionar a liberação dos recursos restantes.

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Conforme já exposto aqui, um tal plano foi considerado indispensável pelo Tribunal de Contas da União no Acórdão 1.518/2018-TCU-Plenário e há esforços do MPF para exigi-lo dos municípios beneficiários dos precatórios do Fundef, mas seria mais efetivo que a própria liberação dos valores dependesse da construção e apresentação do documento. E a União, como parte executada, poderia, de forma colaborativa e no exercício de seu múnus constitucional de coordenação federativa, por intermédio do Ministério da Educação, auxiliar os municípios na elaboração desse plano e mesmo celebrar convênios com esses entes para lhes oferecer, mediante sua participação financeira, opções de qualificação dos profissionais da educação, em conformidade com as diretrizes do Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2024) e da Política Nacional de Formação dos Profissionais da Educação Básica (Decreto nº 8.752, de 9 de maio de 2016).

Não se cogita aqui de um provimento judicial condicionado a evento futuro e incerto, o que é proscrito pela regra do artigo 492, parágrafo único, do CPC, mas de provimento judicial certo, cuja plena execução dependa de providências do exequente, como comumente ocorre nos casos dependentes de liquidação. Trata-se de providências voltadas a assegurar o cumprimento do dispositivo constitucional violado (artigo 60 do ADCT em sua redação original, dada pela EC nº 14/1996), tanto quanto a reparação pecuniária exigida da União.

Ainda que uma tal nova abordagem talvez não seja mais uma opção no que tange ao grosso dos precatórios do Fundef, a discussão que aqui se propõe visa a incorporar aprendizados, sobretudo em face do atual processo de implementação do novo Fundeb, fruto da EC nº 108, de 26 de agosto de 2020, cujos novos mecanismos redistributivos de complementação federal agregam complexidade à sua operacionalização e podem ser fonte de futuras demandas judiciais.

Nesse contexto, há de haver a compreensão de que a pretensão indenizatória de municípios que se julguem prejudicados, por mais pertinente que se mostre, sozinha não garante a maximização dos resultados do fundo, podendo, ao contrário, corroer a eficiência na aplicação de recursos da educação. Recomenda-se, assim, que se cogite o tratamento de forma centralizada e estrutural de demandas judiciais coletivas ou repetitivas envolvendo os valores do novo Fundeb, de forma a se buscar soluções — idealmente autocompositivas, mas também heterocompositivas — que não se atenham a discussões estritamente pecuniárias, buscando dar efetividade, em melhor medida, ao financiamento da manutenção e desenvolvimento da educação básica, de forma imediata, e ao direito fundamental à educação, de forma mediata.

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[1] Nesse sentido manifestou-se a Controladoria-Geral da União, em nota técnica: “Não há fundamento para a contratação dos escritórios por inexigibilidade de licitação, uma vez que há possibilidade de competição e que os serviços (cumprimento de sentença) não são de natureza singular, mas rotineiros para escritórios de advocacia. Quanto aos cálculos dos valores, como ficou devidamente explicado nesta Nota Técnica, não são de alta complexidade e exigem apenas os dados disponibilizados pelo FNDE.” (grifos nossos) (MELO, Cristina Andrade. Em busca dos recursos perdidos: a saga dos precatórios do Fundef. Revista do Ministério Público de Contas do Estado do Pará. v. 1, 2023. p. 34).

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