Direito fundamental à segurança jurídica na Constituição

O princípio da segurança jurídica constitui elemento essencial e princípio estruturante da noção de Estado de Direito, visto que a segurança jurídica coincide com uma das mais profundas aspirações do ser humano [1], viabilizando, mediante a garantia de uma certa estabilidade das relações jurídicas e da própria ordem jurídica como tal, tanto a elaboração de projetos de vida, bem como a sua realização [2].

No caso da ordem jurídica brasileira, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF), após mencionar a segurança como valor fundamental no seu Preâmbulo, a incluiu no seleto elenco dos direitos “invioláveis” arrolados no caput do artigo 5º, ao lado dos direitos à vida, liberdade, igualdade e propriedade.

Muito embora em nenhum momento tenha o nosso constituinte referido expressamente um direito à segurança jurídica, este (em algumas de suas manifestações mais relevantes) acabou sendo contemplado em diversos dispositivos da Constituição, como é o caso, dentre outros (e limitamo-nos aqui a exemplos extraídos do artigo 5º, da CF, do princípio da legalidade e do correspondente direito a não ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5º, inciso II), da expressa proteção do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito (artigo 5º, inciso XXXVI), da irretroatividade da lei penal desfavorável (artigo 5º, inciso XL [3].

Igualmente, é possível reconhecer o princípio da segurança jurídica como implicitamente consagrado no artigo 37 da CF, ao dispor sobre os princípios regentes da administração pública, como é o caso da legalidade. Da mesma forma, existem manifestações importantes da segurança jurídica no campo das limitações constitucionais ao poder de tributar, em especial no artigo 150, inciso I (é vedado aos entes federativos exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça), inciso II (vedação de tratamento desigual entre os contribuintes), inciso III, letras “a”, “b” e “c” (todos relativos à irretroatividade em matéria tributária).

Além disso, de há muito resulta incontroverso, em sede doutrinária e jurisprudencial (destaque para a prática decisória do STF e do STJ) que a CF consagra um princípio geral e fundamental da segurança jurídica e um correspondente direito fundamental, ambos implicitamente positivados no texto constitucional, cujos conteúdos e alcance serão devidamente desenvolvidos logo a seguir.

Quanto ao conteúdo do princípio da segurança jurídica, como bem destaca Gomes Canotilho, em lição que recolhemos como pressuposto da nossa análise, o princípio da segurança jurídica (aqui também tomado em sentido amplo como abrangendo a proteção da confiança) exige tanto a confiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos do poder público, quanto a segurança do cidadão no que diz com as suas disposições pessoais e efeitos jurídicos de seus próprios atos, de tal sorte que tanto a segurança jurídica quanto a proteção da confiança incidem em face de qualquer ato de qualquer órgão estatal [4].

A segurança jurídica, na sua dimensão objetiva, exige um patamar mínimo de continuidade do (e, no nosso sentir, também no) Direito, ao passo que, na perspectiva subjetiva, significa a proteção da confiança do cidadão nesta continuidade da ordem jurídica no sentido de uma segurança individual das suas próprias posições jurídicas [5].

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De acordo com a lição de Hartmut Maurer, a segurança jurídica pode ser compreendida em sentido dúplice, pois, se por um lado, ela se refere à função do direito, visando assegurar segurança por meio do direito, no sentido de que o direito deve criar uma ordem consistente e segura, por outro, ela forma um princípio estruturante, que diz com a clareza e determinação do próprio conteúdo das normas, de modo a assegurar a segurança do direito [6].

De modo complementar, Virgílio Afonso da Silva assinala que os objetivos primordiais da segurança jurídica são “a garantia de certa estabilidade em relação a fatos jurídicos ocorridos no passado, de clareza em relação ao direito vigente no presente, e de alguma forma de previsibilidade para as relações jurídicas futuras” [7].

A segurança jurídica pode ser compreendida, em certa medida, como uma “ponte normativa intertemporal” a (inter)ligar o passado, o presente e o futuro, no tocante aos atos e fatos jurídicos (legislativos, administrativos e jurisprudenciais). Na feliz síntese de Gomes Canotilho, a segurança jurídica, na sua dimensão objetiva (do direito objetivo), aponta para a garantia da estabilidade de ordem jurídica, ao passo que, do ponto de vista subjetivo, exige que o cidadão (indivíduo) possa confiar nos atos do Poder Público, no sentido da calculabilidade e previsibilidade dos seus (dos atos do Poder Público) respectivos efeitos jurídicos [8], o que, por sua vez, remete à noção de proteção da confiança legítima como expressão essencial da segurança jurídica no Estado de Direito [9]. A proteção da confiança, como corolário do princípio da (e direito fundamental à) segurança jurídica, de há muito encontra guarida e aplicação na jurisprudência do STF [10] e do STJ [11].

Note-se, também nessa quadra, que a estabilidade e previsibilidade em termos institucionais (incluindo a estabilidade e previsibilidade jurídica) é fundamental para o exercício dos direitos fundamentais do cidadão, particularmente nas relações jurídicas travadas em face do Estado, na medida em que a dignidade humana não restará suficientemente respeitada e protegida onde as pessoas estejam expostas a tal nível de instabilidade jurídica que não estejam mais em condições de, com um mínimo de segurança e tranquilidade, confiar nas instituições sociais e estatais (incluindo o Direito) e numa certa estabilidade das suas próprias posições jurídicas [12].

Aspecto que há de ser repisado e enfatizado, é que a segurança jurídica, portanto, para além da sua conformação normativa como princípio da nossa ordem constitucional (com as funções, manifestações e exigências já sumariamente apresentadas), assume também o status de direito e garantia fundamental, o que reforça a sua dupla dimensão objetiva e subjetiva [13].

Todavia, aquilo que se pode designar de um direito fundamental à segurança jurídica, na condição de direito fundamental em sentido amplo, veiculado e garantido por uma norma de natureza principiológica, somente pode ser compreendido e concretizado mediante o reconhecimento de sua multidimensionalidade e das posições jurídicas nas quais se decodifica, incluindo direitos fundamentais especiais de segurança jurídica, mas também a sua articulação com outros princípios e direitos fundamentais.

O princípio (e direito fundamental) da segurança jurídica, nesse cenário, opera, em primeira linha, como uma garantia de proteção dos direitos fundamentais em face da atuação do legislador e do administrador, tanto no âmbito constitucional quanto — e de modo especial — infraconstitucional, frente a medidas legislativas e administrativas que impliquem supressão ou restrição nos níveis ou patamares de proteção dos direitos já existentes, muito embora tal proteção também se dê relativamente em face do Estado-Juiz.

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Os atos legislativos e administrativos — mas também as decisões judiciais —, por meio dos efeitos e consequências jurídicas concretas que operacionalizam, para além de impactarem direitos e garantias desde a sua vigência, igualmente criam expectativas legítimas para os titulares de posições jurídicas asseguradas por tais atos estatais, notadamente em vista da confiança (no Estado) de que o seu exercício será respeitado e assegurado hoje e no futuro [14].

Nesse sentido, é exemplar decisão do STF, da relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, reconhecendo as perspectivas objetiva e subjetiva derivadas do regime jurídico-constitucional de proteção da segurança jurídica: 

“O princípio da segurança jurídica, em um enfoque objetivo, veda a retroação da lei, tutelando o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Em sua perspectiva subjetiva, a segurança jurídica protege a confiança legítima, procurando preservar fatos pretéritos de eventuais modificações na interpretação jurídica, bem como resguardando efeitos jurídicos de atos considerados inválidos por qualquer razão. Em última análise, o princípio da confiança legítima destina-se precipuamente a proteger expectativas legitimamente criadas em indivíduos por atos estatais.” [15]

É pertinente, nesse contexto, sublinhar que a tese de que restrições de direitos — para além da observância das exigências da reserva legal, da proporcionalidade e da proteção do núcleo essencial — não devem ser retroativas implica a vedação de intervenções restritivas arbitrárias e excessivas por parte dos poderes estatais no âmbito de proteção de direitos e garantias fundamentais, inclusive pelo fato de que a retroatividade de medidas restritivas representa ofensa ao direito fundamental à e princípio da segurança jurídica. Nesse sentido, a segurança jurídica, dotada de status e regime jurídico de direito fundamental, implica posições jurídicas subjetivas de natureza defensiva ou negativa, que blindam restrições retroativas, a fim de assegurar a integridade, estabilidade, certeza e previsibilidade na aplicação do direito a fatos jurídicos pretéritos e que já produziram efeitos (tanto no mundo jurídico quanto no mundo fático).

No que diz respeito à dimensão objetiva do princípio e do direito fundamental da segurança jurídica, todos os atores estatais encontram-se vinculados (a exemplo do que ocorre com os direitos fundamentais em geral) por deveres de proteção que implicam a adoção de medidas positivas e eficazes para assegurar níveis satisfatórios de segurança jurídica [16]. Note-se, nesse contexto, que eventual omissão ou mesmo ação que não assegure níveis satisfatórios de eficácia aos deveres de proteção, representa uma violação da assim chamada proibição de proteção insuficiente e, portanto, consiste em violação do(s) direito(s) fundamental(ais) em causa [17].

Tendo aqui apresentando, em linhas gerais e numa perspectiva introdutória, o conteúdo e o significado do princípio da segurança jurídica e do correlato direito fundamental à segurança jurídica na CF, remetemos o leitor à próxima coluna, onde teremos a ocasião de desenvolver um pouco mais o tema.

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[1] Cf. bem lembra MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32 ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 113.

[2] Na doutrina, v. SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 13. ed., Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2018, pp. 451 e ss. No mesmo sentido, v. Cf. ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 206 e ss.

[3] STF, RE 637485, Tribunal Pleno, relator ministro Gilmar Mendes, julgado em 01.08.2012.

[4] CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Coimbra, 2003. p. 252.

[5] Este o ensinamento de SCHULZE-FIELITZ, Helmuth. Kernelemente des Rechtstaatsprinzips. In. DREIER, Horst (Org.). Grundgesetz Kommentar. v. II. Tübingen: Mohr Siebeck, 1998. p. 184.

[6] Cf. MAURER, Hartmut, Staatsrecht I, 5. ed., München: C.H. Beck, 2007, p. 220.

[7] SILVA, Virgílio Afonso da. Direito constitucional brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2021, p. 240.

[8] Cf. a síntese de Canotilho, J. J. Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituição, op. cit., p. 257.

[9] Sobre a proteção da confiança no direito público, v., na literatura brasileira e limitando-nos à produção monográfica, especialmente Maffini, Rafael. Princípio da proteção substancial da confiança no direito administrativo brasileiro, Porto Alegre, Verbo Jurídico, 2006, bem como Ávila, Humberto. Segurança Jurídica, op. cit., p. 360 e ss.

[10] Na jurisprudência do STF, vide, em caráter meramente exemplificativo, a ADI 4545/PR, relator ministro Rosa Weber, j. em 05.12.2019 e o RE 636553, relator ministro Gilmar Mendes, j. em 19.02.2020, leading case do Tema de Repercussão Geral 445.

[11] STJ, EREsp 1.517.492/PR, 1ª Seção, relator ministro Og Fernandes, julgado 08.11.2017; STJ, REsp. 1.813.684/SP, Corte Especial, relator para acórdão ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 02.10.2019; e STJ, REsp 1.928.635/SP, 1ª Turma, relator ministro  Regina Helena Costa, julgado em 10.08.2021.

[12] SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais…, pp. 451 e ss. No mesmo sentido, v. cf. ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica…. p. 206 e ss.

[13] No sentido de reconhecer a dupla dimensão da segurança jurídica, como princípio e direito fundamental, v. SARLET, Ingo W. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Revista Trimestral de Direito Público, v. 39, São Paulo, Malheiros, 2002, p. 53-86.

[14] Na doutrina, sobre a expectativa legítima de direitos, v. BARROSO, Luís Roberto. Constitucionalidade e legitimidade da Reforma da Previdência: ascensão e queda de um regime de erros e privilégios. Revista de Direito da Procuradoria -Geral do Estado do Rio de Janeiro, vol. 58, 2004, p. 145.

[15] STF, ARE 861.595, 1ª Turma, relator ministro Roberto Barroso, julgado 27.04.2018.

[16] SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais…, p. 148 e ss.

[17] Apenas para ilustrar com exemplos da jurisprudência do STF, v. ADI 861, Tribunal Pleno, relator ministro Rosa Weber, j. em 06.03.2020), ADI 5312, Tribunal Pleno, relator ministro Alexandre de Moraes, j. em 25.10.2018.

Fonte: Conjur

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