A despeito de decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça dando certo contorno à possibilidade de citação por aplicativos de mensagens instantâneas — em especial o popular WhatsApp —, o informe de ato processual por esse tipo de meio de comunicação tem gerado desconforto em advogados e outros profissionais do Direito. A aflição é de que, ao invés de gerar celeridade aos trâmites processuais, a prática acabe por criar insegurança jurídica e impulsionar nulidades.
Na decisão mais recente sobre o tema, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em processo relatado pela ministra Nancy Andrighi, indicou possíveis balizas a serem adotadas pelo Judiciário no uso de aplicativos para informe de atos processuais. A prática, no entanto, não está prevista em lei, e apenas alguns tribunais têm regulamentações nesse sentido, a maior parte resquício do período de pandemia.
O tema é espinhoso porque envolve uma das principais críticas ao Judiciário (a suposta morosidade das sentenças e do próprio andamento processual) e, concomitantemente, coloca em xeque as garantias individuais, já que a citação é, como repete o clichê em latim, o “fundamento de todo direito”.
A tese formulada por Andrighi e aprovada pela Turma é fundamentada com base no objetivo final da citação; se a mensagem instantânea cumpriu seu objetivo, ou seja, se houve certeza de ciência, ela é válida. Para a ministra, a “forma [da citação] não poderá se sobrepor à efetiva cientificação que indiscutivelmente ocorreu”.
O colegiado, no final do julgamento, acabou anulando as sentenças anteriores (em que uma mãe fora destituída do poder familiar sem saber que estava respondendo ao processo) porque não ficou comprovada a ciência da mulher intimada. O tema, no entanto, foi alçado ao debate.
Os argumentos genéricos da tese encontram pouco respaldo na complexidade e na liquidez da comunicação instantânea. A crítica mais contundente dos opositores da medida é sobre impossibilidade de o Judiciário conseguir comprovar que a mensagem foi efetivamente lida, em uma espécie de responsabilização excessiva dos “tiques azuis”.
Uma alternativa seria a confirmação de recebimento, mas ainda assim seria impraticável provar que a mensagem fora enviada pela pessoa citada.
Hoje, a citação pode ser feita pelo correio, por meio de carta precatória ou rogatória, por oficial de Justiça, em cartório judicial ou por publicação de edital (quando o paradeiro do citando é desconhecido). Em 2015, foi acoplada ao Código de Processo Civil a hipótese de citação por meio eletrônico (e-mail), mas não existe obrigatoriedade e há uma série de regulamentações que têm de ser cumpridas
“A citação por WhatsApp é uma possibilidade desastrosa. Isso vai gerar muita insegurança jurídica, muitos processos serão anulados, com maior frequência do que vemos hoje. Essas tecnologias não têm condições de confirmar a identidade de uma pessoa. Isso vai destruir a credibilidade do processo. Ainda não temos maturidade para lidar com isso” diz a advogada Tarsila Machado Alves, sócia do VRMA Advogados.
Ela afirma que o instituto da citação por e-mail, relativamente novo, funciona bem para grandes corporações, mas faz pouco sentido para a maioria dos litigantes (pessoas físicas e pessoas jurídicas de médio e pequeno porte). Ou seja, é difícil estabelecer parâmetros sobre a real efetividade das tecnologias em relação aos atos processuais.
Uma única possibilidade em que a citação por mensagem de aplicativo poderia ser aceita, diz Alves, seria se houvesse uma confirmação por meio do aplicativo de que se trata realmente da pessoa intimada. Ainda assim, seria um instrumento com pouca segurança. “O chip é vendido na banca, colocar isso como ferramenta permanente de atos jurídicos chega a ser surreal.”
Uma espécie de mito sobre a celeridade processual em casos de execução — talvez o principal gargalo do Judiciário brasileiro — ganhou força a partir das decisões do STJ. A citação por WhatsApp poderia acelerar o trâmite e saciar mais rapidamente dívidas e congêneres.
Mas a própria insegurança causada pela forma de citação poderia gerar um efeito rebote.
“Para os credores, à primeira vista, os precedentes e a matéria podem soar como óbices à tão desejada agilidade, mas parecem atuar exatamente em sentido oposto, na medida em que afastam eventuais lacunas que poderiam fazer com que tudo demorasse mais tempo, desafiando eventuais pretensões em sede de ação rescisória”, escreveu o defensor público do Rio de Janeiro Rogério Devisate em recente artigo publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico.
Exclusão digital
Um ponto uníssono citado pelos entrevistados pela ConJur é a desigualdade digital no país, que corrói o próprio debate em questão. O smartphone faz parte da vida da maioria dos brasileiros, mas o acesso às redes móveis (4G, 5G, etc) é escasso em determinados territórios e há um contingente considerável de pessoas que não acessam a rede.
Dados da pesquisa TIC Domicílios 2022, lançada em maio, mostram que 36 milhões de brasileiros não utilizam a internet. O número está concentrado em áreas urbanas (29 milhões). A maior parte dessas pessoas tem grau de instrução até o Ensino Fundamental (29 milhões), são pretos e pardos (21 milhões) e das classes “D” e “E” (19 milhões).
“Há também um alto índice de desconhecimento dos próprios direitos fundamentais, as pessoas não sabem como lidar com um processo judicial”, pondera Alves.
Outro ponto levantado pela advogada é a proliferação de golpes por meio de aplicativos, o que evidencia mais uma desproporcionalidade do instrumento. “Temos uma gama muito grande, uma alta taxa de fraudes que vêm sendo praticadas por aplicativos de mensagens. Como é possível garantir a segurança de que aquela citação é verdadeira?”
À ConJur, o defensor público Rogério Devisate, que também é crítico da medida, mas enxerga com relativos bons olhos a discussão que avança no Congresso Nacional por meio de Projeto de Lei (leia mais abaixo), concorda que a desigualdade é o principal fator negativo das “novas formas” de citação.
“Existe uma massa de pessoas com dificuldade de acesso, embora haja associações de moradores com disponibilização de equipamentos. Não é algo impossível ou absurdo que todos de alguma forma consigam acesso. Só que ninguém é obrigado, por lei, a ter um computador ou um celular com internet. E mesmo que a lei crie uma regularização de citação por WhatsApp, isso não gera obrigação para que todos tenham aplicativo desse tipo.”
O problema, dizem os especialistas consultados pela reportagem, é ainda mais complexo em casos de processo penal — ponto que também já foi discutido no STJ, mas igualmente em sede especulativa. Os prejuízos da falta de ciência de atos processuais, em casos que poderiam envolver réus privados de liberdade, seriam incalculáveis.
Até por isso, a Corte já fixou tese afirmando que a autenticação do réu nas citações em casos de processo penal só pode ocorrer por três meios: número de telefone, confirmação por escrito e fotografia do citando. No caso em questão (HC 641.877), que envolve uma acusação de violência doméstica contra a mulher, a citação foi cumprida por meio de ligação telefônica e a contrafé enviada pelo aplicativo WhatsApp — ato que foi anulado posteriormente e gerou concessão do HC ao réu.
“Agilidade e pressa nem sempre se convertem em segurança. Por vezes, quanto mais se flexibilizar o sistema, mais vulnerável ele fica”, diz Devisate.
Nas mãos do Legislativo
Gestado em 2018, o Projeto de Lei do Senado n° 176, de 2018, convertido posteriormente em PL 1595/ 2020, assinado pelo então senador Tasso Jereissati (PSDB), é mais um ingrediente no debate sobre a citação por aplicativo. O texto altera o CPC para dar a opção de intimação por mensagem.
Pela lei proposta, a citação deve ser respondida em até 24 horas com termos como “recebido” ou “confirmo recebimento”. A possibilidade seria semelhante ao uso do e-mail: as partes poderiam se cadastrar para receber as informações por meio de aplicativo, e a falta de resposta por três vezes consecutivas geraria a exclusão desse cadastro. O PL está parado na Mesa Diretora da Câmara desde julho de 2021.
“Nós não temos, nos termos legais previstos ou no projeto de lei, uma forma muito clara de se garantir que a pessoa vai ser devidamente notificada da ocorrência da intimação. Preciamos pensar em alguma forma para fazer um regramento que efetivamente ofereça para a pessoa pelo menos uma previsão”, diz Dierle Nunes, advogado e professor de Direito Processual da UFMG e da PUC-Minas.
Para Nunes, que vê pontos positivos e negativos da prática, o debate em torno do PL é importante para delinear os detalhes em que se daria esse tipo de citação.
“Se eu tenho acesso a essa via, eu tenho a possibilidade de otimizar em muito a prática dos atos processuais de cientificação. No entanto, existe um risco. E para esse risco ser dimensionado eu preciso ter critérios legislados muito claros que garantam efetivamente que o réu foi informado daquele processo.”
A advogada Tarsila Machado Alves é mais cética: “Um ponto positivo óbvio é uma aceleração na resolução dos casos. Têm casos que demora de dois a três anos só para citar. Mas meu papel, como advogada, é questionar a legalidade e a constitucionalidade dessas normas, e a citação é o principal ato de todo processo judicial. No fim, a PL pode até ser boa para discussão, mas pode não ser nem aprovada.”
REsp 2.045.63
HC 641.877
Fonte: Conjur