A Constituição Federal brasileira atingiu em setembro a marca de 134 emendas desde 1988, ano de sua promulgação. É um número excessivo e indesejável. A culpa, porém, é da irresponsabilidade do Congresso, e não do procedimento de reforma da Carta Magna, que não deve ser alterado.
Nos últimos dois meses, o Congresso promulgou duas novas emendas constitucionais. A EC 133/2024 “impõe aos partidos políticos a obrigatoriedade da aplicação de recursos financeiros para candidaturas de pessoas pretas e pardas; estabelece parâmetros e condições para regularização e refinanciamento de débitos de partidos políticos; e reforça a imunidade tributária dos partidos políticos conforme prevista na Constituição Federal”.
Já a EC 134/2024 permite a reeleição para cargos de direção — como as respectivas presidências — dos Tribunais de Justiça com mais de 170 desembargadores, o que enquadra atualmente apenas as cortes de Rio de Janeiro e São Paulo.
Com isso, a Constituição de 1988 chegou à média de 3,7 emendas por ano. O número total chega a 144 caso sejam contadas as seis emendas constitucionais de revisão e os quatro tratados internacionais que têm equivalência ao texto da Carta Magna.
A atual é a Constituição brasileira que mais foi alterada. Em segundo lugar, vem a Constituição de 1946, que recebeu 27 emendas em 21 anos de vigência (média de 1,3 por ano). Completa o pódio a Emenda Constitucional 1/1969, outorgada pela Junta Militar e considerada por juristas uma nova Constituição, já que alterou completamente a Carta de 1967. A norma foi modificada 26 vezes em 19 anos (média de 1,4 por ano).
As Constituições do Império, da República e de 1930 receberam apenas uma emenda cada, em 65, 40 e três anos de vigência, respectivamente. Já a Constituição de 1967, a primeira da ditadura militar, não foi reformada nos dois anos em que vigorou.
Anos eleitorais
Anos de eleições nacionais estimulam alterações na Constituição. O recorde ocorreu em 2022, com a promulgação de 14 emendas constitucionais. A principal foi a EC 123/2022, que reconheceu o estado de emergência em função dos preços dos combustíveis e abriu caminho para o governo de Jair Bolsonaro (PL) promover despesas excepcionais para tentar a reeleição. Mas não deu certo, e ele foi derrotado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O segundo ano com mais emendas foi 2014, com oito. Nenhuma delas foi tão explicitamente favorável à campanha de reeleição da então presidente Dilma Rousseff, da qual ela saiu vitoriosa — porém, sofreu impeachment após um ano e meio de segundo mandato.
O ano 2000 teve sete alterações na Carta Magna. E outros quatro anos tiveram pelo menos seis emendas constitucionais (2021, 2019, 2015 e 1996) — desde 1992, a Constituição não passa um ano sem ser modificada.
Emendas demais
A Constituição Federal é muito detalhista. Portanto, é de esperar que tenha emendas com mais frequência do que a dos Estados Unidos, por exemplo, que é mais principiológica. Ainda assim, 134 emendas em 36 anos é um número excessivo, de acordo com os constitucionalistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
O jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, avalia que a proliferação de emendas pode banalizar o sentido de “matéria constitucional”.
“Há uma falsa ideia de que tem de colocar tudo na Constituição Federal, como uma espécie de garantia de efetividade. Se no processo constituinte isso fazia sentido, afinal o passado não recomendava muito por causa da ditadura militar e da inefetividade de direitos, agora essa ‘constitucionalização da banalidade’ aponta para uma perigosa desmoralização daquilo que seja o sentido de ‘matéria constitucional’. Do jeito que vai, logo teremos uma emenda dizendo que ‘somente é matéria constitucional aquilo que…’, como já constava na Constituição de 1824.”
A média global é de uma emenda constitucional por ano, enquanto no Brasil há a promulgação de quase quatro alterações, um número elevado, conforme destaca Daniel Sarmento, professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
“Mas como a Constituição é muito detalhista, e a realidade, muito dinâmica, seria impossível que o sistema funcionasse aqui como o norte-americano, que, nesse particular, inclusive, é bastante disfuncional. No Brasil, o que acaba protegendo o núcleo fundamental da Constituição são as cláusulas pétreas e o entendimento — que não é frequente no Direito Comparado — de que o STF pode controlar a constitucionalidade das próprias emendas, como já fez diversas vezes.”
É uma particularidade brasileira que uma emenda constitucional, aprovada por três quintos dos parlamentares, possa ser suspensa por decisão monocrática de um ministro do STF, que não foi eleito pelo voto popular, ressalta Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ele também considera elevado o número de emendas à Constituição de 1988, embora diga ser natural que cartas analíticas sofram mais modificações do que as sintéticas.
“Pouquíssimos países permitem controle de constitucionalidade, pelo Judiciário, de emenda à Constituição. E creio que só o Brasil permite que um ministro isolado suspenda os efeitos de emenda. Isso e o excessivo número de reformas banaliza a edição de emendas constitucionais.”
A culpa (não) é do sistema
Apesar disso, os constitucionalistas ouvidos pela ConJur entendem que não é necessário alterar o sistema de aprovação de propostas de emenda à Constituição.
As PECs podem ser apresentadas pelo presidente da República, por pelo menos 171 deputados ou 27 senadores (um terço do total) ou por mais da metade das Assembleias Legislativas.
A tramitação começa na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da casa legislativa, que é responsável pela análise da admissibilidade da proposta. Com o aval da CCJ, a PEC é examinada por uma comissão especial. Depois disso, é encaminhada para votação no Plenário.
A PEC só é aprovada se tiver votos favoráveis de três quintos dos deputados (308) e senadores (49), em dois turnos de votação. Após a primeira votação em uma das casas legislativas, a PEC é enviada para a outra. Se o texto for aprovado sem alterações pelas duas casas, ele é promulgado como emenda constitucional em sessão do Congresso Nacional. Não é necessária a sanção presidencial, como ocorre com as leis ordinárias.
Lenio Streck diz que a culpa pelo excesso de emendas é da irresponsabilidade do Congresso, e não do procedimento de tramitação delas.
“O fato de o Parlamento, de forma irresponsável, entulhar o texto da Constituição com emendas sobre vaquejada e reeleição de cargos de Tribunais de Justiça não quer dizer que devemos alterar o quórum da Constituição Federal. Não vamos jogar a água suja fora com a criança dentro. Precisamos fazer constrangimentos epistemológicos. As faculdades de Direito devem discutir isso.”
Na opinião de Pedro Serrano, o quórum exigido para proposição e aprovação de PECs é adequado, o problema é a relação entre os poderes.
“No Brasil, o Judiciário pode decidir casos concretos de controle de constitucionalidade e anular atos do Legislativo e do Executivo. Isso torna o Judiciário excessivamente forte. Nos EUA, a Suprema Corte decide casos concretos, que acabam repercutindo de forma geral por causa do sistema de precedentes. Mas ela não anula atos dos outros poderes. Na Europa, onde se anula atos dos poderes, isso é feito por uma corte constitucional que não é ligada a nenhum dos três poderes”, explica ele.
Não é necessário alterar o quórum de deliberação, somente tornar imperativo o cumprimento de regras regimentais “hoje com frequência desprezadas”, afirma Daniel Sarmento. Entre elas, as que preveem um intervalo mínimo entre cada votação de emenda em cada casa legislativa.
“Com isso, dificulta-se a aprovação de mudanças sobre assuntos importantes sem dar tempo para que a sociedade tome conhecimento do tema debatido e exerça pressão legítima sobre os parlamentares. O STF já foi provocado para examinar essa questão, que envolve às vezes duas votações da emenda no mesmo dia, uma imediatamente depois da outra, sem qualquer intervalo, mas afirmou que o assunto seria de natureza interna corpore do Parlamento, não invalidando o procedimento, no que discordo.”
Desconstitucionalização de matérias
Uma iniciativa positiva seria a desconstitucionalização de algumas matérias, afirma Daniel Sarmento, ressaltando que a Carta Magna de 1988 é a segunda mais extensa do mundo, ficando atrás apenas da Constituição da Índia.
Ele cita o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, que afirmou que “a Constituição se perdeu no varejo das miudezas”.
“A Constituição é excessivamente detalhista em matérias como servidores públicos, regras previdenciárias e orçamentárias. Entre outros problemas do excesso de detalhismo, está o fato de que se confunde a matéria constitucional com questões políticas de menor importância, que deveriam ser resolvidas pelas maiorias de cada momento. E aí governar passa a depender da formação de coalizões políticas muito amplas, o que dificulta a governabilidade. Mas é essencial preservar os direitos fundamentais, inclusive os de grupos sociais vulnerabilizados”, analisa o professor da Uerj.
Pedro Serrano também é da opinião de que é preciso desconstitucionalizar algumas matérias. Como exemplo de tema que não deveria estar na Carta Magna, ele menciona a disposição de que o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, seja mantido na órbita federal (artigo 242, parágrafo 2º, da Constituição).
Por sua vez, Lenio Streck entende que não há nada a desconstitucionalizar. “Também não há como evitar a proliferação de emendas, a não ser de dois modos: ou se copia a Constituição de 1824 (com emenda dizendo que ‘somente é matéria constitucional aquilo que…’) ou o Congresso faz uma autocontenção.”
Brasil x EUA
Em 36 anos, a Constituição de 1988 já recebeu 134 emendas. Em comparação, a Constituição dos EUA recebeu 27 emendas em 235 anos — a última foi promulgada em 1992. Outras seis emendas foram aprovadas pelo Congresso americano, mas não foram ratificadas por três quartos dos estados (38), quórum exigido para a reforma.
Os especialistas, porém, afirmam que não faz sentido comparar o número de emendas da Constituição brasileira com o da Carta dos Estados Unidos.
“São sistemas jurídicos diferentes. Até porque poderíamos dizer que, cada vez que a Suprema Corte decide algo com efeito vinculante (stare decisis), ela está aumentando o tamanho da Constituição”, ressalta Lenio Streck.
E a Constituição dos EUA dificulta o processo de modificação, aponta Daniel Sarmento. “A enorme dificuldade de emendar a Constituição — o que exige a votação de dois terços das duas casas congressuais e de três quartos dos estados — gera vários problemas, como a manutenção, até hoje, de um sistema completamente ultrapassado de eleição presidencial, em que o mais votado nacionalmente pode perder.”
A Carta Magna americana é sintética, principiológica e estabelece diretrizes gerais sobre o Estado, diz Pedro Serrano. Já a brasileira é analítica, detalhista. “E somos regrados pelo Direito positivo, ao passo que os norte-americanos são regulados pela common law, em que há prevalência dos precedentes judiciais. Esses fatores explicam por que o Brasil tem um número muito mais elevado de emendas constitucionais do que os EUA”, pondera o professor da PUC-SP.
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O post Irresponsabilidade do Congresso é culpada por excesso de emendas constitucionais apareceu primeiro em Consultor Jurídico.