Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre trás-os-montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial!
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial. [1]
Em nossa última coluna (aqui) prometemos continuar tratar da reforma da tributação da renda e, nesta oportunidade, o objetivo é desmitificar uma falaciosa narrativa, que há muitos anos vem sendo arquitetada, de que “tributa-se mais, e as pessoas vão embora.” (aqui) Antes, contudo, façamos uma breve digressão para entender o porquê da criação deste mito.
Retórica para manutenção de privilégios & presença estrangeira
Ainda que recentemente o gasto militar global tenha atingido o seu maior nível desde a Segunda Guerra Mundial (aqui), todavia possível afirmar ter o uso da força passado a ser menos eficiente do que o da retórica na perpetuação de regalias e na manutenção de posições de poder. Assim, “[…] intelectuais e especialistas distorcem o mundo para tornar todo tipo de privilégio injusto em privilégio merecido ou, na maior parte dos casos, privilégio invisível enquanto tal”. [2]
Sói ser difundido que nações emergentes seriam supostamente inferiores tecnicamente, corruptas, incapazes de aproveitar as benesses promovidas pela globalização e naturalmente inaptas ao progresso. Noutro giro, nos países ditos desenvolvidos, concentrar-se-iam todas as virtudes: os indivíduos que ali por aleatoriedade nasceram não só seriam merecedores das posições que ocupam como também dotados de capacidades superiores aos nascidos em nações que não lograram o mesmo grau de desenvolvimento.
Quando analisamos a história da evolução do sistema tributário brasileiro desde o final da Segunda Guerra Mundial até os dias atuais, marcante a influência de atores e instituições externas. [3] A despeito de em terras brasileiras terem nascidos incontáveis notórios mestres e mestras, que deveriam ter acesso primário aos formuladores de políticas, optou-se por eleger uma “padroeira” (aqui), de origem portuguesa, para a defesa de nossa reforma da tributação sobre o consumo, que agora externa sua discordância quanto à tentativa de nosso governo federal em modificar a legislação do imposto de renda. [4] (aqui)
Em que pese a superação do passado colonial, com a proclamação de nossa independência em 1822, formas travestidas de práticas de dominação continuam a ser empregadas. [5] Nossas formas de pensar e articular conhecimentos continuam a ser orientadas e teleguiadas por categorias e acervos metodológicos, ambos mecânica e acriticamente importados do Norte global. Substituímos a dominação física e corporal por uma dominação pelas vias do conhecimento, da técnica, de uma suposta expertise que vem de lá – sem indigitada correspondência aqui. No tempo presente, “[i]ngênuo seria pensar que os canhões colonialistas não mais operam.” [6] O fazem doutro modo, eis que o colonialismo de hoje é epistêmico.
Êxodo tributário
“Nunca” e “sempre” são advérbios que aprendemos ser evitados; contudo, é seguro dizer que, quando o assunto é tributação, sempre aparecem vozes bradando que, qualquer incremento na sua cobrança, afugentará os investidores, as indústrias, as plataformas digitais… e até mesmo as pessoas.
Há mais de uma década fala-se do “efeito Depardieu”, por ter o intérprete do personagem Astérix, o ator Gérard Depardieu, trocado a cidadania francesa pela russa a fim de escapar à tributação do seu país de origem (aqui). Em 2024 os veículos de comunicação deram descomunal atenção ao tema, reportando um suposto fluxo migratório de enormes proporções – daí o motivo de eleição do termo “êxodo.” Tal movimento foi percebido logo após a proposta de criação de um imposto mínimo global sobre grandes fortunas ter ganhado voz no G-20, grupo que se encontra sob a presidência do Brasil desde o ano passado. [7]
De acordo com um relatório produzido pela “Tax Justice Network” (aqui),
[m]ais de 10.900 artigos foram publicados na imprensa, rádio e notícias online em 2024 mencionando um ‘êxodo’ de milionários e/ou as alegações da Henley & Partners [consultoria de investimento] sobre migrações de milionários. Isso equivaleu a 30 artigos por dia sobre o ‘êxodo’ de milionários em 2024. A maior parte dessa cobertura midiática relatou que a magnitude da migração de milionários em 2024 era grande o suficiente para ter consequências econômicas significativas.
No Brasil, embora a expressão não seja frequentemente empregada, a ideia de que “tributa-se mais, e as pessoas vão embora” (aqui), como relatamos, continua a ser difundida.
Desmitificando o êxodo tributário
Argumentos, calcados tanto em base teóricas quanto empíricas, apontam para a rejeição da ideia de que a aumento da tributação sobre os mais afortunados implicaria em fuga para jurisdições de tributação mais favorecida.
Do relatório produzido pela “Tax Justice Network” em parceria com outras entidades no Reino Unido (aqui) [8], colhem-se as seguintes conclusões:
Não ocorreu um ‘êxodo’ de milionários, nem no Reino Unido nem em qualquer outro lugar. Os números relatados pela Henley & Partners, referentes à migração de milionários em 2024, representaram aproximadamente 0% dos milionários em níveis global e nacional (…).
O número total de milionários que migrou anualmente de 2013 a 2023, segundo os dados da Henley & Partners, representou aproximadamente 0% dos milionários anualmente – indicando que os milionários são altamente imóveis.
A metodologia empregada no relatório da Henley & Partners afirma que suas estimativas são baseadas primariamente nas informações extraídas nas redes sociais dos milionários que indicam onde trabalham, e não onde vivem ou residem. Isso significa que o relatório não rastreia a migração física real. Além disso, como a BBC revelou, a amostra subjacente é tendenciosa, portanto, as extrapolações resultantes não podem ser confiáveis.
Além disso, parece contratuitiva a simplista ideia de que “tributa-se mais, e as pessoas vão embora.”
Mudar de país não é tarefa fácil, mesmo para os afortunados que podem adquirir residência ou cidadania mediante aporte investimentos noutro país (aqui): existe um passado, uma história, os hábitos, uma cultura compartilhada a ser abandonada. Os vínculos afetivos desenvolvidos ao longo de toda uma vida que serão afrouxados. Some-se a isso o receio de que discriminações sejam sofridas em países que não os de origem, [9] mormente em tempos em que são construídos mais muros, ao invés de pontes.
Há vários estudos empíricos que demonstram que a fuga massiva de milionários por motivos fiscais é muito pouco provável, porque, além de os indivíduos se importarem profundamente com o lugar onde vivem, certo terem sido diversas fortunas construídas devido a contatos, rede de conexão e recursos locais. [10]
Mesmo quando falamos de pessoas jurídicas, em que questões de natureza emocional-afetiva são excluídas, tampouco é simples “ir embora”.
Em estudo voltado a determinar quais os fatores que influenciam a alocação de capital foram entrevistados, ao longo de quase três décadas, diretores de grandes corporações transnacionais, autoridades fiscais e profissionais ligados à realização de planejamento tributário. [11] Além da legislação tributária, outras variáveis como i) estabilidade política e econômica; ii) mão-de-obra qualificada; iii) desenvolvimento de infraestrutura; iv) localização geográfica; v) acesso a insumos; vi) mercado consumidor, etc., são levadas em consideração no momento da decisão sobre em qual país investir.
A política tributária é apenas uma de inúmeras variáveis, o que demonstra inexistir a bradada relação rudimentar de causa e efeito entre o aumento da tributação e a fuga do capital. Passada a hora de abandonar narrativas que atribuem causa única a fenômenos que são demasiadamente complexos — a exemplo do que ocorre com a pobreza, muitas vezes tratada apenas como um resultado de más escolhas individuais. [12]
Em tempos de rememorar ser o Brasil dos brasileiros, façamos uma reflexão…
O Brasil percorreu um longo caminho: de país pilhado pela coroa portuguesa, com a população indígena massacrada pelos colonizadores, passando por um desenvolvimento dependente de seu setor rural até se tornar a potência emergente que é, detendo os elementos imprescindíveis a alçá-lo à condição de líder do futuro, eis que encabeça o grupo das cinco maiores economias emergentes do mundo, abrangendo mais de 30% (trinta por cento) do território terrestre, albergando mais de 42% (quarenta e dois por cento) da população mundial, respondendo por 23% (vinte e três por cento) do PIB global. [13]
Desde 1827 temos, em nosso território, duas faculdades ofertando o curso de Direito: em Olinda e em São Paulo. De lá para cá tantas outras foram criadas, sendo responsáveis pela formação de incontáveis bacharéis e bacharelas. O nosso corpo técnico não só existe, como é o mais preparado para tratar de questões jurídicas, econômicas e sociais da nossa realidade local.
Sobre os ombros dos bem qualificados especialistas brasileiros recai o dever de assumir a arquitetura do destino da reforma de tributação da renda de nosso país, que seja compatível com a nossa Carta Constitucional, sem se preocupar com mitos e lendas já empiricamente rechaçados. Do contrário, como já advertida Chico Buarque, “esta terra ainda vai cumprir seu ideal… Ainda vai tornar-se um imenso Portugal! (…). Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal… Ainda vai tornar-se um império colonial!”
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[1] Estrofe extraída da canção “Fado Tropical”, composta em 1973, por Chico Buarque.
[2] SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 11.
[3] OLIVEIRA, Ludmila Mara Monteiro de; MAGALHÃES, Tarcísio Diniz. Influências Externas nas Reformas Tributárias do Brasil ao Longo da História. In: SCAFF, Fernando. Facury; DERZI, Misabel de Abreu Machado; BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves; TORRES, Heleno Taveira. (Org.). Reformas ou Deformas Tributárias e Financeiras: por que, para que, para quem e como? Belo Horizonte: Letramento, 2020, v. 1, p. 699-719.
[4] Como aclarado na primeira coluna (aqui) o Projeto de Lei nº 1.087/25 gravita em torno de 3 (três) eixos principais:
(i) a redução a zero do IRPF para as pessoas físicas com renda ou proventos de até R$ 5.000,00 por mês;
(ii) o estabelecimento de desconto no IRPF para as pessoas físicas com renda ou proventos até R$ 7.000,00 por mês; e,
(iii) a criação do Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas Mínimo – IRPFM, incidente sobre rendas ou proventos totais superiores a R$ 600.000,00 anuais, combinado com tributação pelo IR dos lucros ou dividendos, inclusive para não residentes.
[5] OLIVEIRA, Ludmila Mara Monteiro de; MARQUES, Bernardo Morais. A Reforma Tributária Brasileira e a “Padroeira” Portuguesa. In: SCAFF, Fernando. Facury; DERZI, Misabel de Abreu Machado; BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves; TORRES, Heleno Taveira. (Org.). Reforma Tributária do Consumo no Brasil: entre Críticos e Apoiadores. Belo Horizonte: Letramento, 2024.
[6] BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. O Outro Leviatã e a Corrida para o Fundo do Poço. São Paulo, Almedina, 2015, p. 86. O autor acrescenta que “[o] gemido das bombas da recente “guerra do petróleo”, no Iraque, que se justificava por pretensas fortalezas subterrâneas e armas mortais nunca encontradas, parece ressoar os mesmos ecos da ‘guerra do ópio’.”
[7] No início deste mês, o Min. da Fazenda confirmou a adesão à tributação global dos super-ricos pelos integrantes do Brics (aqui).
[8] Até o momento, inexiste estudo similar produzido no Brasil, embora a versão britânica colete dados de nosso país e de outras jurisdições do mundo.
[9] Na semana passada, a morte do brasileiro Jean Charles de Menezes pela Scoltland Yard completou vinte anos (aqui).
[10] Cf. nesse sentido: Young, C. The Myth of Millionaire Tax Flight: How Place Still Matters for the Rich, Stanford University Press, 2018; Advani, A. & Tarrant, H. (2021), “Behavioural Responses to a Wealth Tax”, Fiscal Studies, 2021; Jakobsen, K. et al., “Taxing Top Wealth: Migration Responses and Their Aggregate Economic Implications”, NBER Working Paper Series, 2024.
[11] WILSON, Peter G. The role of taxes in location and sourcing decisions. In: GIOVANNINI Alberto; HUBBARD, R. Glen; SLEMROD, Joel (org.). Studies in international taxation. Chicago: Chicago University Press, 1993, p. 195-234.
[12] “Paira um discurso sobre estar a gênese da pobreza unicamente atrelada à responsabilidade individual – isto é, a impossibilidade de um indivíduo prover seu próprio sustento seria o resultado das más escolhas que ele fez e, portanto, deve ele mesmo arcar com as consequências de seus atos. Isso explica o porquê de políticas de redistribuição de renda serem alvos de constantes ataques. Fizeram-nos acreditar que “o sol nasce para todos” e, por isso, bastaria uma dose de esforço para termos condições dignas de existência. Para os adeptos dessa vertente, dar dinheiro para quem nada fez estimularia comportamentos autodestrutivos dos já não propensos ao exercício de atividades laborativas. (…) Essa história escolhida para ser contada tem um cunho moralizante e coloca as raízes da pobreza em causas individuais. Bastaria trilhar caminhos “virtuosos” que o sucesso estaria inexoravelmente reservado. Há, porém, uma outra história, quase nunca narrada. (…) Desde logo deixamos claro que não estamos a negar o papel de escolhas individuais, apesar de nenhuma sociedade atual assegurar igualdade de oportunidades e de ser hercúlea a tarefa de depurar se tais escolhas foram tomadas de forma verdadeiramente livre. (…) Nossa advertência é que, ao contrário do que sói ser difundido, não são apenas elas que colocam pessoas na miséria ou nações no subdesenvolvimento. Concorrem para isso outras causas, de natureza estrutural, que, ao nosso sentir, atuam de maneira ainda mais determinante. É que numa conjuntura estrutural desfavorável, ainda que os atores individuais se empenhem em fazer escolhas tidas como acertadas, a probabilidade de se perpetrar uma situação de injustiça é muito grande. Dessa forma, todo o estudo que se diga verdadeiramente compromissado com a origem da pobreza deverá analisar o papel central desempenhado por estruturas sociais, políticas e econômicas.” OLIVEIRA, Ludmila Mara Monteiro de. Justiça Tributária Global: Realidade, Promessa e Utopia. Letramento: Belo Horizonte, 2018.
[13] BRASIL. História do BRICS, Planalto. Disponível aqui
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