Proferida a decisão na ADI 5.322 pelo STF (Supremo Tribunal Federal), há quadro de incerteza na busca por compreensão dos efeitos do quanto decidido sobre a logística da atividade de transporte de cargas e seus impactos na rotina de trabalho dos motoristas.
Manifestações preliminares de entidades sindicais patronais indicam que a inclusão de horas de espera e reserva na jornada de trabalho dos motoristas, além de impossibilidade de fracionamento dos intervalos entre jornadas e de acumulação de DSRs, acarretam a necessidade imediata de aquisição de novos caminhões e contratação de novos motoristas, em aumento da ordem de 20%, além de reduzir a produtividade do setor em 25%, em razão da diminuição do número de viagens realizadas por um único trabalhador no mês e do acréscimo na realização de viagens com os caminhões vazios.
Há também alterações advindas da decisão proferida na ADI 5.322 que não necessariamente propiciam aos motoristas melhores condições de trabalho: a impossibilidade de acumulação de DSRs pode acarretar a necessidade maior quantidade de repousos semanais no curso de viagens de longa duração, resultando menos dias de repouso em suas casas; ainda, a impossibilidade de fracionamento dos intervalos entre jornadas e de exclusão do tempo de espera do cômputo da jornada, pode ocasionar maior tempo de repouso em pontos de parada, sendo há muito motivo de insatisfação a constatação de que não existem tais pontos em quantidade suficiente e em condições adequadas para assegurar condições dignas de repouso; também com relação à remuneração pode haver desdobramentos negativos para os motoristas, pois o aumento de viagens com os veículos vazios acarreta a diminuição da remuneração por fretes.
Desvela-se quadro complexo noticiado pelos próprios entes sindicais que revela preocupação quanto à viabilidade e suficiência das normas gerais que tratam da jornada de trabalho dos demais empregados, quando aplicadas ao setor, dadas as especificidades da atividade.
Nesse contexto, é possível sustentar que a existência de características específicas do setor, somada ao quadro de incertezas e insegurança após o julgamento da ADI 5.322, parecem produzir terreno fértil para a adequação setorial negociada e para a autonomia privada coletiva, visando a construção de normas capazes de disciplinar de forma adequada e específica questões relativas à jornada de trabalho dos motoristas que não são adequadamente contempladas pelas disposições gerais que tratam da jornada de trabalho dos demais trabalhadores.
Mas quais os limites para a negociação coletiva sobre a jornada de trabalho dos motoristas profissionais diante do julgamento da ADI 5.322?
A resposta a tal indagação demanda necessária interpretação dos efeitos do quanto decidido pelo E. STF no Tema nº 1.046 de sua repercussão geral.
Existe falsa percepção de que tal decisão teria assegurado possibilidade irrestrita de normas coletivas limitarem ou suprimirem direitos previstos na lei. Contudo, a própria redação da tese firmada pelo E. STF revela que a prevalência das normas coletivas sobre o legislado encontra limites no respeito aos direitos indisponíveis:
“São constitucionais os acordos e as convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuem limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis.”
O acórdão então proferido pelo STF aponta quais seriam esses direitos absolutamente indisponíveis e, portanto, inegociáveis:
“Em regra, as cláusulas de convenção ou acordo coletivo não podem ferir um patamar civilizatório mínimo, composto, em linhas gerais, (i) pelas normas constitucionais, (ii) pelas normas de tratados e convenções internacionais incorporadas ao Direito Brasileiro e (iii) pelas normas que, mesmo infraconstitucionais, asseguram garantias mínimas de cidadania aos trabalhadores.”
Logo, a adequação setorial negociada autoriza a negociação coletiva que limite ou suprima direitos, contanto que resguardados os direitos indisponíveis assegurados aos empregados pelas normas constitucionais, pelas normas internacionais incorporadas ao Direito Brasileiro e pelas normas infraconstitucionais que asseguram garantias mínimas de cidadania.
Essa conclusão é relevante no tema da jornada de trabalho dos motoristas profissionais após o julgamento da ADI 5.322. Isso porque muitas das normas coletivas que vinham sendo pactuadas acabavam reproduzindo dispositivos legais declarados inconstitucionais pelo STF.
Nesse contexto, a declaração de inconstitucionalidade de disposições da Lei nº 13.103/2015 que também eram repetidas em normas coletivas, inicialmente pode suscitar a impressão de que a aplicação do Tema nº 1.046 do STF acarretaria a conclusão de que ainda que inconstitucionais os dispositivos legais, as suas disposições ainda valeriam ante a expressa repetição de seus termos nas normas pactuadas coletivamente.
Ocorre que a interpretação do Tema nº 1.046, conforme acima sustentado, revela que tal impressão inicial não pode prevalecer. Como visto, o STF considera direitos indisponíveis, inegociáveis, aqueles assegurados em normas constitucionais. Logo, se certas disposições da Lei nº 13.103/2015 violavam normas constitucionais, em especial aquelas previstas nos artigos 1º, IV e 7º, IV e XV, da CRFB/88, inarredável concluir que normas coletivas que simplesmente repitam tais disposições tidas por inconstitucionais pelo STF não podem ser consideradas válidas, justamente por violarem direitos tidos por constitucionais, e, assim, indisponíveis.
Não se descura que o próprio STF foi provocado pelas confederações que representam as categorias, via embargos de declaração, a esclarecer se o decidido na ADI 5.322 permite a submissão à negociação coletiva dos temas objeto de decisão. De todo modo, como a questão já está posta e deve ser enfrentada inclusive em processos judiciais em curso, parece possível sustentar desde logo que o cotejo do decidido pelo STF no Tema nº 1.046 com o ora decidido na ADI 5.322 é suficiente para concluir que não poderão ser consideradas válidas as normas coletivas que apenas repitam as disposições da Lei nº 13.103/2015 tidas por inconstitucionais no julgamento da ADI 5.322.
Ao mesmo tempo, parece possível sustentar que o Tema nº 1.046 da repercussão geral do STF tem sim aplicação no tema da jornada de trabalho dos motoristas. Como visto, trata-se inclusive de ambiente propício para a ação sindical, visando a criação de normas coletivas que possam se adequar às necessidades das categorias.
Em síntese, contanto que observado o patamar mínimo civilizatório assegurado aos motoristas em normas constitucionais ou internacionais, bem como em normas infraconstitucionais que assegurem garantias mínimas de cidadania, está assegurado espaço para que os entes sindicais que representam as categorias dos motoristas e dos transportadores assumam o protagonismo que a autonomia privada coletiva exige, com atuação proativa e criativa, pautada na lealdade e na boa-fé, com vistas a construir soluções e elaborar normas que se apliquem de forma específica às necessidades das categorias no que diz respeito à disciplina das questões de jornada de trabalho que lhe são peculiares.
Pretende-se apresentar abaixo dois exemplos nos quais haveria margem para a negociação coletiva após a ADI 5322, sem pretensão de esgotar as possibilidades.
Tempo de espera e tempo de descanso.
No julgamento da ADI 5.322 o STF declarou inconstitucionais a parte final do § 8º do artigo 235-C; a parte final do § 1º do artigo 235-C; e, trecho do § 12 do artigo 235-C, todos da CLT. O STF, ainda, declarou inconstitucional o § 9º do artigo 235-C da CLT, sem efeito repristinatório. Trata-se de disposições a respeito do tempo de espera.
O artigo 235-C, § 11, da CLT, por sua vez, permanece em vigor.
A interpretação da lei em vigor, assim, revela que em caso de espera para carga, descarga ou fiscalização por tempo superior a duas horas, quando atendidas as condições adequadas no local em que se encontre o motorista, tal interregno pode ser considerado como tempo de repouso para os fins de que tratam §§ 2º e 3º do artigo 235-C, isto é, para fins de concessão dos intervalos intrajornada e entre jornadas.
E as condições adequadas para repouso são aquelas de que trata o artigo 9º da Lei nº 13.103/2015, regulamentado pelos artigos 47 e seguintes da Portaria MTE nº 672/2021, dispondo a respeito das condições mínimas de segurança, sanitárias e de conforto nos locais de espera e repouso dos motoristas profissionais, fixando condições a serem observadas relativamente aos sanitários, refeitórios, fornecimento de água potável, demarcação de local para o estacionamento dos veículos, obrigatoriedade de vigilância ou monitoramento eletrônico etc.
Assim sendo, temos que, caso o tempo de espera seja inferior a duas horas ou a espera ocorra em local inapropriado, o período correspondente será normalmente considerado como tempo à disposição do empregador, computado na jornada de trabalho; caso a espera seja superior a duas horas e ocorrida em local que atenda ao previsto nas normas competentes, o período será considerado como tempo de efetivo repouso por parte do motorista, sem o respectivo cômputo na jornada de trabalho.
Atente-se, ainda, que se antes do julgamento da ADI 5.322 tal período de repouso era também objeto de pagamento tal como ocorria com as horas de espera, a teor do quanto disposto na parte final do artigo 235-C, §§ 11, da CLT, fato é que, com a declaração da inconstitucionalidade do artigo 235-C, § 9º, não mais subsiste previsão legal a direito a tal pagamento.
Daí resulta a conclusão que a decisão da ADI 5.322 pode piorar as condições de trabalho dos motoristas neste ponto, vez que horas de repouso ocorridas na forma do artigo 235-C, § 11, da CLT, antes remuneradas como tempo de espera, agora poderão não mais ensejar qualquer pagamento aos motoristas.
Nesse contexto, parece haver espaço aqui para a negociação coletiva.
Do ponto de vista dos motoristas, pode-se buscar melhores condições nos pontos de repouso, impondo certas condições à possibilidade de se considerar o tempo de permanência em cada local como tempo de repouso, visando assim assegurar que durante os referidos períodos os motoristas encontrem condições de efetivamente descansar, de forma digna.
E, nesse sentido, a participação ativa do sindicato profissional é imprescindível não apenas na negociação coletiva, como também na efetiva fiscalização dos locais que serão considerados como pontos de repouso. Tal tarefa também pode incumbir ao Ministério Público do Trabalho e à Fiscalização do Trabalho.
Do mesmo modo, há espaço para que se negocie a retomada do pagamento de valores aos motoristas em razão das horas consideradas como tempo de repouso, nos termos do artigo 235-C, § 11, da CLT, em substituição ao pagamento como horas de espera não mais previsto em lei.
Do ponto de vista dos transportadores, há espaço para negociação que possibilite segurança jurídica na interpretação do artigo 235-C, § 11, da CLT, bem como permita a exclusão do cômputo da jornada de trabalho dos motoristas de período no qual permanecem usufruindo tempo de repouso em locais adequados para tal fim.
Descansos semanais remunerados: banco de horas
No julgamento da ADI 5.322 o STF declarou inconstitucional a expressão contida na parte final do caput do artigo 235-D da CLT, bem como os seus §§ 1º e 2º relativamente ao acúmulo de DSRs. Por afronta ao artigo 7º, XV, da CRFB/88, portanto, restou decidido que não podem ser fracionados ou acumulados os descansos semanais remunerados.
Como já adiantado acima, o decidido pelo STF tem provocado preocupação inclusive por parte dos motoristas, dado que pode acarretar aumento no número de repousos semanais usufruídos pelos motoristas no curso das viagens, reduzindo os dias de repouso em casa, próximos de suas famílias e amigos.
Diante desse quadro, parece haver espaço para que, sem vilipendiar o artigo 7º, XV, da CRFB/88, os interessados busquem alternativas para a adequação setorial negociada também neste ponto.
E parece haver tal possibilidade para negociação coletiva na legislação infraconstitucional que rege a matéria. Isso porque o ordenamento jurídico assegura a remuneração para as horas laboradas em detrimento dos dias de repouso semanal como extras, com adicional de 100%. Ao mesmo tempo, a lei possibilita a compensação de horas extras por intermédio do banco de horas.
Assim, afigura-se possível a negociação coletiva para a adoção de sistema de banco de horas específico para a disciplina dos DSRs, que assegure, quando inviável a fruição do DSR pelo motorista em sua casa, a compensação de horas laboradas em prejuízo do repouso semanal remunerado, as quais, em razão da previsão infraconstitucional, devem ser remuneradas ao menos em dobro. Nesses termos, eventual dia laborado em prejuízo ao repouso semanal não mais poderia ser acumulado de forma simples para posterior fruição diante do decidido na ADI 5.322, mas poderia, em tese, ensejar a compensação por ao menos dois dias de repouso por parte do motorista, posteriormente, quando de volta a sua casa.
Não haveria, também nesse ponto, ofensa a norma constitucional ou infraconstitucional que trata de direito indisponível, vez que é praxe reconhecida pela lei e pela jurisprudência a compensação de jornada por intermédio de banco de horas, sobretudo quando atendidos os requisitos da negociação coletiva.
Conclusões
A interpretação proposta quanto ao decidido pelo STF no Tema nº 1.046 de sua repercussão geral leva a concluir que as normas coletivas que apenas reproduzam os dispositivos da Lei nº 13.103/2015 declarados inconstitucionais no julgamento da ADI também deverão ser igualmente consideradas inconstitucionais.
Sem prejuízo, contanto que observado o patamar mínimo civilizatório assegurado aos motoristas em normas constitucionais ou internacionais, bem como em normas infraconstitucionais que assegurem garantias mínimas de cidadania, está assegurado espaço para a autonomia privada coletiva, com vistas a construir normas específicas sobre a jornada de trabalho dos motoristas.
Sem pretensão de esgotar as possibilidades abertas à negociação coletiva, apresenta-se duas possibilidades concretas nas quais haveria espaço para negociação coletiva, abordando a importância de se disciplinar de forma coletiva o tratamento dispensado ao tempo de repouso, diante do previsto no artigo 235-C, § 11, da CLT, bem como a possibilidade de criação de banco de horas específico para os DSRs.
Espera-se, com estas considerações, contribuir para a reflexão sobre a importância da ação sindical na construção de soluções coletivas para o enfrentamento adequado das diversas questões que se colocam como desafios para as categorias dos motoristas e dos transportadores no contexto do julgamento da ADI 5.322 pelo STF.
Fonte: Consultor Jurídico