As resoluções do Conselho Nacional de Educação (CNE) sobre o corte etário para matrícula em educação infantil e ensino fundamental variam ao longo do tempo, dependendo do entendimento e das prioridades dos diferentes governos, com várias matizes. Essas resoluções são influenciadas por fatores políticos, sociais e educacionais, podem e são revisadas conforme as necessidades e contextos específicos de cada período.
Resoluções do CNE:
Resolução CNE/CEB nº 2, de 9 de outubro de 2018: Define que a matrícula na educação infantil deve ocorrer aos 4 anos de idade e no ensino fundamental aos 6 anos de idade.
Resolução CNE/CEB nº 1, de 14 de janeiro de 2010: Estabelece diretrizes operacionais para a implantação do ensino fundamental de 9 anos.
Parecer CNE/CEB nº 22/2009: Diretrizes operacionais para a implantação do ensino fundamental de 9 anos.
Essas resoluções refletem a tentativa de uniformizar e padronizar o sistema educacional, mas também foram ajustadas conforme as mudanças nas políticas educacionais e nas necessidades da população escolar.
O corte etário para matrícula na educação infantil e no ensino fundamental pode ser modificado no futuro, dependendo das políticas educacionais adotadas por governos subsequentes.
As diretrizes do Conselho Nacional de Educação (CNE) e outras regulamentações podem ser revisadas e ajustadas para refletir novas prioridades e necessidades identificadas no contexto educacional.
Possíveis fatores de modificação:
Mudanças Políticas: Novos governos podem ter abordagens diferentes em relação à educação e podem implementar reformas que alterem o corte etário.
Evidências Científicas: Estudos sobre desenvolvimento infantil e pedagógico podem influenciar a decisão de ajustar a idade de entrada para melhor atender ao desenvolvimento das crianças.
Necessidades Sociais: Alterações demográficas e socioeconômicas podem levar à reavaliação das políticas educacionais para melhor responder às realidades da população.
Consultas Públicas e Debates: Mudanças no corte etário podem ser discutidas em consultas públicas e debates envolvendo educadores, pais e especialistas.
Um dos exemplos de possível revisão recente pode ter considerado novas pesquisas sobre o impacto da idade de entrada na educação infantil no desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças, levando a um ajuste do corte etário para refletir essas descobertas.
Normas do CNE não se sobrepõem à Constituição
As resoluções do Conselho Nacional de Educação (CNE) são normas infralegais que têm por objetivo regulamentar e detalhar a aplicação das leis no âmbito educacional.
No entanto, elas não possuem força superior à Constituição.
O artigo 208, inciso V, da Constituição garante o direito à educação infantil em creche e pré-escola às crianças até 5 anos de idade e o ensino fundamental obrigatório e gratuito dos 6 aos 14 anos de idade.
As resoluções do CNE que estabelecem o corte etário devem ser compatíveis com os preceitos constitucionais, visando à garantia do direito à educação de acordo com as disposições da Carta Magna.
A data limite não está prevista na Constituição, tampouco na lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional).
Em ambas, não há qualquer alusão ao período de matrícula ou a qualquer data específica. A previsão consta apenas em resoluções do Conselho Nacional de Educação: Resoluções nº 1 e 6 de 2010.
O Supremo Tribunal Federal, apesar de decidir pela constitucionalidade da previsão criada pelas Resoluções, tece algumas considerações permitindo a excepcionalidade da norma, dada a capacidade de cada aluno.
Cumpre destacar, nesse contexto, o seguinte trecho do voto do ilustre Ministro Luiz Fux no julgamento da ADPF n° 292/DF:
“No caso do critério etário, é o que ocorre quando a criança, antes de completar quatro ou seis anos, já possui o amadurecimento cognitivo e comportamental extraordinário. A depender da excepcionalidade desse amadurecimento, é possível que o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo capacidade de cada um, tutelado pelo inciso V do artigo 208 da CRFB, seja concretize a partir de uma avaliação individual da equipe pedagógica diretamente responsável pelo aluno.”
A exceção está disposta na Ementa do Acórdão da ADPF 292/DF:
“O acesso aos níveis mais elevados do ensino, segundo a capacidade de cada um, pode justificar o afastamento da regra em casos bastante excepcionais, a critério exclusivo da equipe pedagógica diretamente responsável pelo aluno, o que se mostra consentâneo com a “valorização dos profissionais da educação escolar” (art. 208, V, da CRFB e art. 206, V, da CRFB) e o apreço à pluralidade de níveis cognitivo-comportamentais em sala de aula.”
Inobstante ao entendimento esposado no julgamento ocorrido no STF, ainda se verifica em escolas brasileiras, empecilho da aplicação de tal entendimento.
E o mais grave, decisões judiciais proferidas em primeira e segunda instância que desconsideram casos específicos onde não são respeitadas a maturidade e capacidade intelectual da criança, constituindo tais decisões judiciais em empecilho do avanço da criança, diante da “priorização analítica” com base apenas na idade cronológica.
Pululam decisões judiciais, em todo país, com aplicação da regra da resolução de forma geral, sem considerar as especificidades de cada caso, levando a injustiças e resultados inadequados, desconsiderando que cada situação tem suas particularidades, e refutando que a interpretação e aplicação das normas jurídicas levem em conta essas singularidades para garantir uma decisão justa e equitativa.
Critério etário é empecilho inconstitucional
A aplicação do critério etário, previsto na atual Resolução do CNE, como regra cega e geral constitui empecilho ilegal e inconstitucional à continuação da vida educacional da criança garantida no inciso V, do artigo 208 da Constituição.
O artigo 227 da Constituição consagra os princípios da proteção integral e da prioridade absoluta das crianças e dos adolescentes:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”
Por sua vez, a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) expressa:
“A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por Lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem.” (artigo 3º)
“É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.” (artigo 4º)
“Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.” (artigo 5º)
“Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.” (artigo 6º)
Efeitos negativos no desenvolvimento
A expressão “com absoluta prioridade” trazida pelo artigo 227 da Constituição dispensa exegese. O referido comando constitucional tem sido ignorado em muitas decisões judiciais.
A aplicação rígida do corte etário, sem considerar as individualidades das crianças, pode ter efeitos negativos significativos no desenvolvimento intelectual e emocional das mesmas e, consequentemente, no futuro da sociedade como um todo.
Resguardada as devidas proporções, até porque não se busca assemelhar as circunstâncias, mas o comportamento geral de algumas decisões judiciais, fazem relembrar um fato histórico:
Há muitos séculos, um papa determinou a punição dos heréticos de uma região sob o seu domínio.
O comandante que foi cumprir a ordem retornou informando não ser possível satisfazer a resolução pois que encontrou uma dificuldade insuperável: como ser ou não ser herético é uma questão de foro íntimo de cada um, não tem visibilidade ou diagnóstico não havia como cumprir o comando punitivo.
Questionando o papa qual a solução, este respondeu: “Mate-os a todos; Deus saberá distingui-los”.
O exemplo ilustra de maneira impactante a questão da aplicação indiscriminada de regras, sem considerar as particularidades de cada caso.
No contexto educacional, a aplicação cega do corte etário pode ser comparada a essa situação histórica, em que a falta de discriminação e sensibilidade às circunstâncias individuais leva a decisões injustas e potencialmente prejudiciais.
Muitas das decisões judiciais proferidas, não se importam em encontrar um equilíbrio entre a padronização necessária para a organização do sistema educacional e a flexibilidade para atender às necessidades individuais das crianças.
Assim, decisões judiciais que aplicam rigidamente a regra geral podem ferir princípios como a igualdade, a dignidade da pessoa humana e o direito à educação, que são assegurados pela Constituição.
Princípios Constitucionais:
Igualdade: A Constituição Federal garante que todos são iguais perante a lei. A aplicação rígida do corte etário pode desconsiderar as diferenças individuais de desenvolvimento entre as crianças.
Dignidade da Pessoa Humana: Tratar crianças de maneira uniforme sem considerar suas individualidades pode violar o princípio da dignidade da pessoa humana.
Direito à Educação: A educação deve ser inclusiva e adaptada às necessidades de cada aluno, conforme previsto no artigo 205 da Constituição.
Decisões judiciais rígidas é como ‘lavar as mãos’
Decisões judiciais que aplicam a regra de forma rígida e sem levar em conta as particularidades de cada caso evidenciam um comportamento semelhante ao de Pôncio Pilatos, onde o julgador “lava as mãos” e não exerce a devida análise crítica e individualizada, abdicando da responsabilidade de garantir a justiça e a equidade.
Uma abordagem mais flexível e atenta às peculiaridades de cada caso seria mais alinhada aos princípios constitucionais e aos direitos fundamentais das crianças.
Para que as individualidades das crianças sejam adequadamente resguardadas no contexto da educação, é essencial que os juízes e outros profissionais envolvidos estejam bem preparados e sensibilizados para lidar com essas questões.
Não se tem notícias de que o Conselho Nacional de Justiça desenvolva, com resultado satisfatório, programas de capacitação contínua que abordem as particularidades do desenvolvimento infantil e as necessidades educacionais especiais que ajudam os juízes a tomar decisões mais informadas e justas.
Não se tem notícias de que Tribunais de Justiça dos estados viabilizem aos juízes acesso a conhecimentos de áreas como psicologia, pedagogia e neurociência para compreender melhor as variáveis que influenciam o desenvolvimento das crianças. Assim como treinamentos que enfatizem a importância da diversidade e da individualidade no processo educativo podem ajudar a criar um sistema mais inclusivo e equitativo.
Preparar melhor os juízes para enfrentar situações que envolvem o corte etário e outras questões educacionais é fundamental para garantir que as decisões judiciais protejam os direitos e as necessidades individuais das crianças.
A abordagem visa contribuir para um futuro mais equitativo e inclusivo.
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