O impacto da reforma tributária no futebol

Por décadas, a grande maioria dos clubes operou sob o modelo associativo sem fins lucrativos, caracterizado por gestão sem profissionalização e especialização, falta de transparência e recorrentes crises financeiras.

Pois, em 2021, por meio da Lei n° 14.193, foram criadas as Sociedades Anônimas de Futebol (SAFs), como um mecanismo para alinhar interesses econômicos e mitigar esses problemas, introduzindo princípios de governança corporativa inspirados nas melhores práticas de mercado.

Sob esse novo modelo, os clubes passam a ter estrutura de administração semelhante à de empresas de capital aberto (que necessariamente são sociedades anônimas), exigindo, portanto, uma gestão mais transparente, relatórios financeiros auditados (ou auditáveis) e a adoção de órgãos de governança, como conselho de administração e fiscal.

Por ter uma configuração mais atrativa para os investidores, as SAFs passaram a ter maior capacidade de captar recursos junto a investidores, via instrumentos de dívida ou de capital. No entanto, a profissionalização e a maior transparência não vieram sem desafios. Um dos principais efeitos colaterais da transição para SAFs foi a mudança no tratamento tributário.

Tributação das SAFs

Enquanto os clubes associativos gozam de isenção tributária em relação a determinados impostos, as SAFs, ao serem constituídas como sociedades anônimas, passaram a ser submetidas ao Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF). Atualmente é previsto no artigo 31 da Lei das SAF o recolhimento mensal e unificado dos seguintes tributos: IRPJ, PIS, CSLL, Cofins e contribuições sociais previstas no artigo 22 da Lei nº 8.212/1991.

O TEF não exclui a incidência de outros tributos federais, como o IOF ou o IRPJ sobre rendimentos ou ganhos líquidos auferidos em aplicações de renda fixa ou variável ou sobre ganho de capital. Hoje, esses tributos são cobrados de forma apartada, assim como o ISS e o ICMS quando devidos.

Além disso, o artigo 32 da Lei das SAF estabelece, nos primeiros 5 anos da constituição da SAF, uma alíquota de 5% sobre as receitas mensais obtidas, excluindo-se da base de cálculo receitas relativas à cessão de direitos desportivos de atletas. A partir do sexto ano-calendário, a alíquota é reduzida para 4% das receitas mensais, mas valores obtidos com a cessão de direitos desportivos de atletas passam a integrar a base de cálculo do TEF.

Apesar dessa nova realidade fiscal, o TEF representa uma simplificação aos clubes organizados sobre a natureza jurídica de SAF, unificando o pagamento e estabelecendo uma alíquota predeterminada, o que facilita e incentiva a conformidade tributária dos clubes de futebol.

Não é à toa que esse modelo de negócio escalou proporções cada vez maiores no futebol nacional, chegando a representar cerca 40% dos clubes da Série A em 2024 (um deles, inclusive, sagrou-se campeão da Séria A e da Copa Libertadores em 2024).

Contudo, não obstante o crescimento exponencial desse novo modelo de negócio, a promulgação da Lei Complementar nº 214/2025, que regulamentou a reforma tributária, não apenas redesenhou o mapa fiscal do Brasil, mas também estabeleceu um divisor de águas para a indústria do futebol.

Equilíbrio entre SAF e modelo de associação sem fins lucrativos

A escolha entre a estrutura empresarial da SAF e a manutenção do tradicional modelo de associação civil sem fins lucrativos tornou-se um complexo cálculo de trade-offs entre simplicidade, custo tributário, possibilidade de creditamento, risco jurídico e incentivos a investimento.

No entanto, o cenário legislativo permaneceu dinâmico. Enquanto a LC 214/2025 estabeleceu as bases gerais, foi durante a tramitação de um segundo projeto de regulamentação, o PLP 108/2024, que o debate sobre a tributação do futebol atingiu seu clímax. A intensa mobilização do setor resultou em uma mudança crucial no texto aprovado pelo Senado (ainda pendente de aprovação pela Câmara), alterando drasticamente o equilíbrio de forças entre os dois modelos.

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Modelo SAF

Para as entidades constituídas como SAF, a LC nº 214/2025 instituiu um novo TEF, detalhado em seus artigos 292 a 296. Este sistema foi desenhado com o objetivo de simplificar a arrecadação, mas suas características majoraram o custo fiscal e alteraram alguns detalhes importantes.

Em que pese as manifestações contrárias do setor durante a tramitação do projeto de lei, a LC nº 214/2025 estabeleceu uma alíquota efetiva total de 8,5%, representando um aumento de aproximadamente 70% em relação à alíquota anterior, que era de 5% do total da receita bruta mensal (sem contar as vendas) nos primeiros 5 anos e de 4% para os anos subsequentes.

O TEF, que já consistia em um recolhimento mensal unificado, nos termos da LC 214/25, passaria a ser composto da seguinte forma: 4,0% para tributos federais (IRPJ, CSLL e Contribuições Previdenciárias Patronais); 1,5% para a CBS; 3,0% para o IBS.

No entanto, em uma mudança crucial de rumo durante a tramitação legislativa, o Senado Federal aprovou, em 30 de setembro de 2025, no âmbito do PLP 108/2024, uma emenda que altera substancialmente o regime, tornando-o muito mais vantajoso. A proposta, que agora retorna para análise da Câmara dos Deputados, reduz a alíquota efetiva total de 8,5% para 5% e reintroduz um benefício fundamental.

Se confirmada, a nova composição do TEF será a seguinte: 3,0% para tributos federais (IRPJ, CSLL e Contribuições Previdenciárias Patronais); 1,0% para a CBS; 1,0% para o IBS.

A nova tributação das SAFs entrará em vigor somente em 1º de janeiro de 2027, com um período de transição até o final 2032, com aumento gradativo das alíquotas de CBS e IBS.

Enquanto a LC 214/25 previa a incidência da alíquota de 8,5% sobre a totalidade das receitas auferidas em regime de caixa (o que representava uma mudança mais impactante e financeiramente gravosa em relação à lei original e vigente da SAF), tributando, portanto, uma das fontes de receita mais importantes e voláteis do futebol brasileiro — venda de jogadores, a Emenda n° 525, do PLP 108/25, reduziu a alíquota para 5% e reintroduziu a exclusão, da base de cálculo do TEF, das receitas decorrentes da cessão de direitos desportivos de atletas nos primeiros 5 anos da constituição da SAF.

Essa alteração, se mantida pela Câmara, representa uma vitória expressiva para esse modelo, alinhando o novo regime a um dos pilares da lei original da SAF e mitigando o impacto financeiro sobre uma das fontes de receita mais importantes do futebol brasileiro.

Sobre a redução da base de cálculo do TEF, vale esclarecer que o benefício de cinco anos está atrelado à data de constituição de cada SAF. Trata-se de uma janela de incentivo inicial. Portanto, uma SAF que, em 2027, já opere há mais de cinco anos, não terá direito a um “novo” período de benefício e passará a ter a receita de transferências incluída na base de cálculo.

Apesar dessa melhora, o princípio da não cumulatividade permanece aplicado de forma extremamente restritiva. As SAFs continuam vedadas de apropriar créditos de IBS e CBS sobre a aquisição de quase todos os bens e serviços. A única exceção permitida é a apropriação de créditos na aquisição de direitos desportivos de outros atletas.

As consequências dessa limitação, embora atenuadas pelo PLP 108/25, persistem. Investimentos vultosos em infraestrutura, como a construção de um centro de treinamento ou a modernização de um estádio, não devem gerar qualquer crédito. O IBS/CBS embutido no preço dos materiais e serviços torna-se um custo irrecuperável, assim como as despesas operacionais com marketing, consultoria e tecnologia.

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Clubes-associação

Para os clubes que optarem por permanecer como associações civis sem fins lucrativos, o cenário fiscal é um mosaico de regras antigas e novas, oferecendo um potencial de economia tributária que vem acompanhado de uma gestão de alta complexidade.

Os clubes-associações estão sujeitos ao PIS incidente sobre a folha de pagamentos (1%) — que será extinta em 2027 —, bem como a contribuição patronal de 20% sobre a remuneração de contribuintes individuais (autônomos), como agentes e outros prestadores de serviço sem vínculo empregatício (o que, ao que tudo indica, também deve permanecer para o modelo SAF, tendo em vista a omissão da lei em relação a este ponto).

Os clubes-associações também estão, atualmente, sujeitos à contribuição previdenciária patronal de 5%, incidente sobre a receita bruta decorrente de espetáculos desportivos, nos termos do § 6º do artigo 22 da Lei n.º 8.212/1991. A base de cálculo sobre a qual incide essa exação é composta pelas receitas de ingressos, patrocínios, licenciamento de marcas e outras receitas vinculadas diretamente ao espetáculo desportivo, mas não atinge os ingressos decorrentes da cessão ou transferência de atletas. É crucial esclarecer que, embora a reforma tributária extinga a contribuição para o PIS sobre a folha de pagamento a partir de 2027, essa contribuição patronal de 5% permanece.

Por outro lado, estão isentos da Cofins relativamente às receitas próprias e não se sujeitam ao IRPJ e à CSLL, desde que atendidos os requisitos fixados pela Lei nº 9.532/97.

A principal vantagem deste novo modelo estabelecido pela reforma é a manutenção da imunidade de IRPJ e CSLL sobre as receitas decorrentes de suas atividades essenciais, desde que cumpridos os requisitos legais (não distribuir lucros, aplicar os recursos no país etc.). Argumenta-se que, nesse escopo, incluem-se as receitas de bilheteria, mensalidades de sócios e, notavelmente, as transferências de atletas, se caracterizadas como parte da missão de formação desportiva da entidade.

As receitas consideradas de natureza econômica e concorrencial (como patrocínios e direitos de transmissão) passam a ser tributadas pelo IBS e pela CBS. No entanto, o legislador concedeu a estas entidades um regime favorecido: uma redução de 60% sobre a alíquota padrão do novo IVA (artigo 141, inciso II, da LC 214/25). Considerando uma alíquota de referência de 27% (estimativa é que a alíquota padrão do IVA se situe entre 26,5% e 28,5%), a carga efetiva para as associações sobre suas receitas tributáveis será de 10,8%.

A alíquota efetiva, todavia, dependerá do grau de aproveitamento de créditos admitidos conforme previsão contida na Seção XII da LC nº 214/2025. Diferentemente das SAFs, as associações podem se valer das regras gerais de creditamento do IVA. Isso significa que elas podem apropriar créditos de IBS/CBS sobre insumos (bens e serviços) ligados às suas atividades tributadas, o que pode reduzir o valor líquido do imposto a pagar.

Contudo, um custo adicional específico deste modelo é a manutenção de um regime previdenciário próprio e a complexidade de gestão que ele acarreta. Diferentemente da SAF, onde todas as contribuições estão unificadas na alíquota do TEF, a associação precisa administrar as obrigações previdenciárias permanecidas de forma separada, em paralelo à apuração do IBS/CBS sobre suas receitas comerciais, acarretando um custo de conformidade (compliance) e um risco jurídico significativamente maiores em comparação com a simplicidade do recolhimento único da SAF.

Análise Comparativa

Primeiramente, vale esclarecer que as análises abaixo consideram clubes que comecem a operar como SAF a partir de 2027.

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Vale esclarecer também que a alíquota final da SAF atingiria o seu total apenas em 2033, tendo em vista o aumento gradativo das alíquotas de IBS e CBS durante os anos. Com a nova redução de alíquota proposta no PLP 108/25, será necessário aguardar o texto final da lei para verificar como será a graduação dessas alíquotas no tempo.

Veja abaixo tabela que reflete as mudanças que a Reforma Tributária trará na aplicação das alíquotas para cada modelo adotado:

Por fim, veja abaixo uma simulação baseada na estrutura de receitas de um clube típico da Série A do Campeonato Brasileiro, com um faturamento anual hipotético de R$ 700 milhões:

Cumpre ressaltar que se trata de uma comparação superficial, uma vez que as alíquotas nominais — 5% para SAFs versus 10,8% para associações — são perigosamente enganosa. A verdadeira carga tributária depende da interação entre alíquota, base de cálculo e regras de creditamento. Ou seja, a carga tributária final de cada entidade dependerá drasticamente de seu modelo operacional e de sua estrutura de receitas.

Um clube-associação com maior volume de transferências de atletas (receita imune), menores custos com autônomos e uma gestão fiscal altamente eficiente, capaz de maximizar o aproveitamento de créditos de IBS/CBS sobre seus insumos operacionais (marketing, custos de produção etc.), poderia reduzir sua alíquota efetiva e apresentar um resultado mais vantajoso. O cenário pode mudar, por exemplo, se o clube investir fortemente em infraestrutura, como um novo centro de treinamento, pois no modelo associativo, parte do IBS/CBS embutido nesses custos poderia ser recuperado como crédito, algo vedado à SAF.

Conclusão

A reforma tributária não aponta um caminho único para os clubes de futebol, mas sim uma bifurcação estratégica com profundas implicações.

O modelo SAF, com as alterações propostas pelo Senado, emerge como uma opção extremamente atrativa. A combinação de uma alíquota reduzida para 5% e a manutenção da isenção sobre a venda de atletas por cinco anos oferece previsibilidade, segurança jurídica e uma carga tributária significativamente menor na maioria dos cenários. Sua estrutura tributária simples e transparente é altamente atrativa para investidores institucionais e fundos de private equity, que valorizam a clareza no cálculo de retornos e a minimização do risco de litígios fiscais. O preço dessa certeza é um desincentivo fiscal a investimentos em ativos imobilizados, como estádios e centros de treinamento, devido à ausência de créditos de IBS/CBS.

O modelo associação oferece uma rota da eficiência fiscal potencial, especialmente pela imunidade sobre a venda de atletas. O custo, no entanto, é uma imensa complexidade de gestão e um risco jurídico permanente, atrelado à interpretação do Fisco sobre o alcance de sua imunidade e à correta apuração de múltiplas obrigações previdenciárias. Este modelo exige uma governança sofisticada e uma assessoria jurídico-contábil de alto nível para ser plenamente otimizado, capaz de segregar receitas e apurar créditos de forma efetiva.

A escolha entre os modelos, portanto, transcende a simples comparação de alíquotas e dependerá do perfil de cada clube: sua estrutura de receitas, seus planos de investimento, sua capacidade administrativa e, acima de tudo, seu apetite ao risco.

Contudo, se o texto final da regulamentação confirmar os benefícios aprovados pelo Senado para as SAFs, a tendência de migração para o modelo empresarial deve se acelerar drasticamente, redefinindo não apenas o futuro financeiro de cada instituição, mas a própria paisagem competitiva do esporte mais popular do país.

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