O STJ e as relações de filiação construídas com base no amor e na convivência

Em muitos casos, para assegurar direitos como herança e pensão alimentícia, é preciso que o Judiciário reconheça a existência de uma relação jurídica de parentesco constituída a partir do afeto.

A ideia de família abrange formatos que vão além do modelo tradicional baseado em ligações biológicas e matrimoniais. Esse alargamento do conceito ocorreu principalmente a partir da promulgação da Constituição de 1988, que reconheceu diferentes vínculos de parentesco e garantiu a igualdade entre os filhos, independentemente de serem advindos do casamento. 

É nesse contexto que o direito brasileiro reconhece a filiação socioafetiva, uma relação construída a partir do afeto e da convivência, sem que haja, necessariamente, um vínculo de sangue. Em muitos casos, o reconhecimento da filiação socioafetiva é essencial para proteger direitos como herança e pensão alimentícia.

Em um processo sob segredo de justiça, a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Nancy Andrighi destacou que a filiação socioafetiva implica “reconhecer a real identidade do filho, expressão de seu próprio direito de personalidade”.

Segundo a ministra, a convivência estabelece laços de afetividade capazes de gerar efeitos jurídicos, desde que existam manifestações externas que evidenciem a presença desse afeto, dando origem à relação jurídica de parentesco.

A filiação socioafetiva, entretanto, não se confunde com a adoção, uma vez que não depende de destituição do vínculo familiar biológico, ou mesmo de procedimento formal e solene. Ela se baseia em uma situação real de afetividade já vivenciada e que pode ser atestada judicialmente ou extrajudicialmente, diretamente nos cartórios de registro civil.

Ainda que alguns instrumentos normativos reconheçam a filiação socioafetiva como vínculo de parentesco – como é o caso do artigo 1.593 do Código Civil –, é no campo jurisprudencial que as principais dúvidas sobre o tema têm sido resolvidas, como revela esta seleção de entendimentos do STJ.

É possível filiação socioafetiva entre avós e netos adultos

Uma controvérsia enfrentada recentemente pela corte diz respeito ao reconhecimento da relação socioafetiva avoenga, aquela construída entre avós e netos.

A Terceira Turma considerou juridicamente possível o pedido de reconhecimento de filiação socioafetiva entre avós e netos maiores de idade, nos casos em que a relação entre eles supera a mera afetividade avoenga. Para o colegiado, a declaração de filiação nessas hipóteses – com efeitos diretos no registro civil do filho socioafetivo – não tem nenhum impedimento legal.

O posicionamento se deu no âmbito de ação ajuizada por neto para ser reconhecido como filho socioafetivo de seus avós maternos, mantendo-se em seu registro civil, contudo, o nome da mãe biológica, com quem ele também convivia.

A ministra Nancy Andrighi, relatora, afastou a aplicação do artigo 42, parágrafo 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que proíbe a adoção de netos pelos avós. O dispositivo foi usado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo para confirmar a extinção do processo sem resolução de mérito. De acordo com a ministra, contudo, o dispositivo citado se aplica à adoção, e não à filiação socioafetiva, especialmente no caso de reconhecimento de filiação de maior de 18 anos.

Quanto ao interesse processual do pedido de reconhecimento de filiação socioafetiva avoenga, a ministra apontou que deve ser verificado segundo a teoria da asserção, ou seja, a partir das afirmações do autor da ação na petição inicial. Assim, para ser autorizado o regular processamento da ação, basta que o pedido inicial apresente informações suficientes sobre a possível existência de laços de socioafetividade entre as pessoas cujo vínculo parental se busca reconhecer.

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Registro de dupla paternidade sem inclusão do nome da mãe biológica

A Terceira Turma negou provimento ao recurso especial do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) que buscava anular o registro civil de uma criança com dupla paternidade, nascida com o auxílio de reprodução assistida. Para o MPSC, tendo havido a renúncia do poder familiar pela mãe biológica, o caso seria de adoção unilateral, e não de dupla paternidade.

De acordo com o processo, um casal homoafetivo teve uma filha com a ajuda da irmã de um dos companheiros, mediante reprodução assistida. Após a renúncia do poder familiar pela mãe biológica, o casal solicitou o registro em nome do pai biológico – doador do material genético – e do pai socioafetivo, deixando o campo da mãe em branco.

O relator do caso, ministro Paulo de Tarso Sanseverino (falecido), mencionou o Provimento 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que admite o registro com a dupla paternidade, assegurando direitos aos casais homoafetivos. Em seu entendimento, a criança vivia em um lar saudável e os pais mostraram condições de lhe garantir saúde, educação e amor, o que confirmava estar assegurado o melhor interesse do menor.

“Não havendo vínculo de parentesco com a genitora, há tão somente a paternidade biológica da criança, registrada em seus assentos cartorários, e a pretensão declaratória da paternidade socioafetiva pelo companheiro”, resumiu o ministro.

Tribunal reconhece filiação socioafetiva póstuma

A filiação socioafetiva póstuma foi tema de julgados paradigmáticos da Terceira Turma. Em um deles, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, foi definido que “somente com o socorro do Poder Judiciário é que se torna possível o reconhecimento de filiação socioafetiva post mortem“, principalmente diante da resistência de herdeiros e do próprio espólio.

O colegiado também definiu que é possível reconhecer a filiação após a morte do pai ou da mãe socioafetivos quando verificada a posse do estado de filho e o conhecimento público e contínuo dessa condição.

Nesse processo, de relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, a autora da ação buscava o reconhecimento do vínculo com a suposta mãe socioafetiva para ter acesso à sua herança. A autora alegou ter sido criada por ela e por outra mulher, que fez o seu registro quando tinha apenas dez meses de vida mediante a chamada “adoção à brasileira” – prática na qual os pais biológicos entregam a criança a outras pessoas, que a registram como se fosse delas, à margem das exigências legais.

A autora disse que, após a morte da mãe registral, passou a viver com a suposta mãe socioafetiva, que se casou. Anos depois, contudo, ela também faleceu, e seu marido – que teria criado a demandante como se fosse sua filha – abandonou-a para que não participasse da divisão dos bens deixados por sua mãe.  

Para o relator, a autora da ação não demonstrou, de forma clara, os requisitos para o reconhecimento do vínculo pretendido. No entanto, ele verificou que, na origem, ela teve o direito de defesa prejudicado, pois a sentença foi proferida em julgamento antecipado, ou seja, sem a possibilidade de produção de provas quanto aos fatos alegados, e o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul manteve a improcedência da ação.

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O ministro avaliou que, na hipótese dos autos, a prova precisaria ser ainda mais robusta, tendo em vista que o pretendido reconhecimento de filiação socioafetiva se refere a pessoa falecida. “De todo modo, não se pode subtrair da parte a oportunidade de comprovar suas alegações”, afirmou ao prover o recurso especial para anular a sentença e determinar o retorno do processo à primeira instância para a produção adequada de provas.

Filiação socioafetiva póstuma após convívio com mãe biológica

A partir desse precedente, a Terceira Turma foi além ao decidir que o reconhecimento da filiação socioafetiva póstuma é possível mesmo se o filho voltar a conviver com a família biológica. Com esse entendimento, o colegiado reconheceu o vínculo entre um homem e seu pai socioafetivo após ele ter voltado a morar com a mãe biológica.

O autor da ação foi criado pelos pais socioafetivos, que se comprometeram a formalizar a adoção, mas isso não ocorreu. Ele cresceu com a família até a separação do casal, quando escolheu viver com a mãe biológica. Na vida adulta, porém, conviveu com o pai socioafetivo até a morte dele. O pai chegou a cogitar fazer a adoção em seu nome, mas a ideia foi descartada, pois o filho quis manter a mãe biológica em seu registro de nascimento.

A ministra Nancy Andrighi, relatora, negou provimento ao recurso especial das irmãs socioafetivas do autor da ação. Elas alegaram, entre outros pontos, que o pai nunca teria manifestado o desejo de adotar o autor, cujo único objetivo seria se beneficiar de uma eventual herança.

“Ainda que o autor tenha passado a residir com a mãe biológica na fase adulta, em razão da separação tumultuosa dos pais socioafetivos, tal fato em nada interfere no seu pertencimento à família socioafetiva, que o acolheu desde tenra idade, prestando-lhe todo o carinho, afeto e educação de uma verdadeira família”, salientou a ministra.

Nancy Andrighi observou, por fim, que as decisões das instâncias ordinárias trouxeram elementos consistentes para o reconhecimento da relação socioafetiva, de forma que a revisão do caso exigiria o reexame de fatos e provas, o que é proibido pela Súmula 7 do STJ.   

É vedado tratamento diferenciado entre pais biológico e socioafetivo

Com base na ausência de hierarquia entre as paternidades biológica e socioafetiva no contexto da relação multiparental, a Quarta Turma declarou a impossibilidade de se dar tratamento distinto para o pai socioafetivo que deva ser incluído no registro civil do filho, ao lado do pai biológico. Para o colegiado, essa igualdade vale tanto para fins de registro quanto para os efeitos patrimoniais decorrentes do reconhecimento da multiparentalidade.

O relator do caso, ministro Antonio Carlos Ferreira, lembrou que essa posição segue a linha já adotada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que veda qualquer discriminação ou hierarquia entre as espécies de vínculo parental.

Ao reconhecer a igualdade de tratamento civil entre os diferentes pais, o relator também citou o Provimento 63/2017 do CNJ, que estabelece modelos únicos de certidões de nascimento, casamento e óbito, sem distinguir a nomenclatura de origem da paternidade ou maternidade, seja ela biológica ou socioafetiva.

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Vínculo socioafetivo pode impedir mudança de registro após DNA negativo

Por maioria de votos, a Terceira Turma decidiu que, mesmo se o exame de DNA pedido pelo pai der resultado negativo, não será possível tirar o seu nome do registro do filho, caso seja comprovada a existência de relação socioafetiva entre ambos. Com esse entendimento, o colegiado negou provimento ao recurso especial de um homem que, após fazer exame de DNA e descobrir que não era o pai biológico de um adolescente, pediu a retirada de seu nome do registro de nascimento.

A ministra Nancy Andrighi esclareceu que a alteração de filiação registrada só é possível em casos de erro ou falsidade na declaração, como consta no artigo 1.604 do Código Civil. Ela explicou que a jurisprudência do STJ exige dois requisitos para anular um registro de nascimento: prova clara de que o pai foi induzido ao erro ou coagido a fazer o registro e ausência de relação socioafetiva entre pai e filho.

Quanto ao caso em julgamento, a ministra observou que o homem registrou a criança como seu filho confiando na palavra da mãe, que afirmou ser ele o pai. “Portanto, e conforme reconhecido pela corte estadual, o registro foi feito com vício de consentimento”, destacou.

No entanto, a relatora ressaltou que os depoimentos colhidos não deixaram dúvidas sobre a existência de vínculo socioafetivo, que não se apagou mesmo após o resultado negativo do exame de DNA.

Desconstituição da paternidade socioafetiva baseada em erro induzido

Em outro caso da Terceira Turma, sob relatoria de Nancy Andrighi, o colegiado estabeleceu que mesmo um longo período de vínculo socioafetivo não impede a desconstituição da paternidade se o motivo for erro induzido. Dessa forma, é possível que o suposto pai ajuíze ação negatória de paternidade e, sendo confirmada a ausência de vínculo biológico por exame de DNA, o juiz acolha o pedido de desconstituição da filiação.

O entendimento foi fixado pela turma julgadora ao declarar a desconstituição da paternidade em caso no qual um homem, após o resultado do exame genético, rompeu relações com as duas filhas registrais de forma permanente. 

Conforme o autor da ação, as crianças foram registradas durante o casamento, mas, após suspeitas de infidelidade da esposa, ele questionou a paternidade.

A relatora apontou que, embora seja incontroverso que houve um período de convivência e de relação socioafetiva entre ele e as crianças, também é fato que, após o exame de DNA, esses laços foram rompidos de forma definitiva, situação que se manteve por muito tempo.

“Diante desse cenário, a manutenção da paternidade registral com todos os seus consectários legais (alimentos, dever de cuidado, criação e educação, guarda, representação judicial ou extrajudicial etc.) seria, na hipótese, um ato unicamente ficcional diante da realidade que demonstra superveniente ausência de vínculo socioafetivo de parte a parte, consolidada por longo lapso temporal”, concluiu a ministra ao julgar procedente a ação negatória de paternidade.

Os números dos processos citados não são divulgados em razão de segredo judicial.

Fonte: STJ

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