O vulcão e a arbitragem

Neste ano de 2024, a lei de arbitragem brasileira faz 28 anos. Muito se avançou nesse campo nas últimas décadas, mas não falta quem ocasionalmente reitere que ainda há muito o que se trilhar no País nessa matéria, sobretudo quando se trata de normalizar e ampliar a prática arbitral.

Arbitragem tornou-se lugar comum nos círculos empresariais brasileiros, e é difícil encontrar qualquer empresa de porte relevante que não tenha em algum de seus contratos uma cláusula arbitral. Mas, nas relações civis ordinárias e nos negócios jurídicos da vida cotidiana, as cláusulas arbitrais são verdadeiramente escassas.

Ultimamente, circulou uma referência ao testamento de George Washington, primeiro presidente dos Estados Unidos, como exemplo de que a prática (e a cultura) arbitral estadunidense poderia se orgulhar de mais de 200 anos de história que justificariam o desenvolvimento da matéria naquele país [1].

No testamento do mencionado presidente, a cláusula arbitral dispõe que qual qualquer controvérsia relacionada ao negócio deveria ser solucionada por três árbitros. Cada parte teria o direito de eleger um deles, sendo que o terceiro árbitro deveria ser eleito pelos outros dois anteriormente escolhidos [2].

Não há dúvida de que a prática arbitral estadunidense dispõe de uma história respeitável, porém o jurista brasileiro não precisaria importar do “Common Law” uma tradição para chamar de sua. Na verdade, o direito brasileiro pode orgulhar-se de carregar consigo mais de 2 mil anos de história de tradição em matéria de arbitragem por conta de suas raízes no direito romano.

Os registros dessa tradição devem-se a muitos fatores, dentre os quais destaca-se uma das maiores catástrofes do mundo antigo.

No fim de outubro do ano 79 a.C., a República Romana (demorariam ainda quase 50 anos, até que Otávio Augusto desse início ao que, posteriormente, seria chamado de Império Romano), sofreu a fúria de uma catástrofe da natureza; quando, às margens do golfo de Nápoles, na Campânia, entrou em erupção o Monte Vesúvio.

A história é conhecida. A erupção causou imensos danos aos habitantes e comunidades urbanas localizadas no entorno do vulcão. Entre essas comunidades, destaca-se Pompeia — que é hoje o maior sítio arqueológico a céu aberto da Europa. No entanto, há outra comunidade igualmente afetada, que, a despeito de seu menor tamanho, não pode ser esquecida: Herculano.

Tábulas de Herculano

Herculano é relevante pelo grau de preservação de seu sítio arqueológico e dos objetos ali encontrados, dentre os quais se encontram as “Tábulas de Herculano” (tabulae herculanenses). Muitos desses textos são fragmentários e incompletos, mas o fragmento nº 76 é um de seus mais bem preservados e nos oferece um claro indício de um compromisso arbitral com mais de dois milênios de idade [3].

“TH 76 [4]Na controvérsia que há entre L. Cominio Primo e L. Apuleio Próculo em relação aos limites do fundo Numidiano, o qual é de L. Cominio Primo, e o fundo Strataciano, que é de L. Apuleio Próculo, e que L. Apuleio Próculo e L. Cominio Primo reciprocamente em relação a essa controvérsia deve ser prescrito […] em relação a essa controvérsia são assim estipulantes e assim pactuado: que Ti. Crasso Firmo seja árbitro compromissário entre L. Cominio Primo ou seu herdeiro e L. Apuleio Próculo ou seu herdeiro profira a sentença ou ordene a sentença a ser proferida, abertamente na presença de uma e outra parte, antes das próximas calendas de fevereiro, e prorrogue o prazo do compromisso ou ordene proferir a sentença: se algo contra isso for feito ou que assim não for feito, deverá pagar devidamente 1000 bons sestércios, estando ausente dolo a esta matéria e à decisão e sendo assim no futuro.”

Mesmo traduzido, o texto é um tanto truncado, mas ainda é possível compreendê-lo. Trata-se de um litígio fundiário entre dois proprietários: Comínio Primo, titular do fundo Strataciano, e Apuleio Próculo, titular do fundo Numidiano; a respeito dos limites deste último imóvel. Para resolver a questão, os litigantes decidem nomear como árbitro um terceiro indivíduo chamado Crasso Firmo, para que profira uma sentença sobre o caso.

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Questões fundiárias eram favoritas dos antigos romanos no estabelecimento de arbitragens privadas. Por sinal, os agrimensores estão profundamente relacionados com as raízes históricas da arbitragem, por conta do conhecimento técnico de que dispunham na avaliação de imóveis [5]. No caso registrado, não se sabe quem o árbitro (Crasso Firmo) seria, de modo que poderia ter sido um especialista ou apenas um amigo em comum dos litigantes, que compartilharia de sua confiança mútua.

De qualquer modo, o texto nos mostra a estrutura que a arbitragem tomava na prática jurídica dos antigos romanos.

Há sempre um problema central na disciplina arbitral: prover ferramentas jurídicas que assegurem o respeito das partes à decisão do árbitro [6]. A experiência jurídica romana solucionou essa questão com afigura do “compromissum” [7].

Vale sempre lembrar que o direito romano clássico não era propriamente um sistema de direitos, mas de ações. A tutela judicial dependia do prévio reconhecimento pelo magistrado competente. Assim, o “compromissum” foi uma forma encontrada pelos antigos romanos de adaptar a sua necessidade prática às exigências formais de seu sistema jurídico.

O “compromissum“, portanto, era uma figura construída por meio de “stipulationes poenae” recíprocas, de forma que cada litigante prometeria pagar uma determinada quantia de dinheiro à outra parte, caso viesse a descumprir a sentença proferida pelo árbitro [8].

Interessante notar que a própria palavra “compromissum” compõe-se etimologicamente da preposição “co-” e o verbo “promittere”, indicando se tratar de uma promessa realizada em conjunto [9]. Mas, mais que isso, é precisamente a origem dos termos “compromisso” e “cláusula compromissória” que se utiliza ao longo de toda a Lei nº 9.307/1996, no Código Civil (artigos 851 a 853), e em toda a prática forense brasileira.

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A tabuleta de Herculano dá clara prova desse fato, quando, ao final, atesta que “se algo contra isso (a sentença proferida) for feito ou que assim não for feito, deverá pagar devidamente 1000 bons sestércios”. Ou seja, caso uma das partes descumprisse a decisão arbitral, estaria vinculado a pagar ao outro litigante a pena prometida de mil sestércios.

A tradição romana da arbitragem persiste na experiência brasileira. E, por conta de uma irônica consequência da história, um desastre vulcânico permite que conheçamos ainda melhor os motivos que levam o direito brasileiro a se inserir em mais de dois mil anos de tradição arbitral.


[1] Sherman, Edward, Arbitration in wills and trusts – from George Washington to an uncertain present, in Arbitration Law Review 9 (2017), pp. 83ss.

[2] Textualmente: “I hope and trust that no disputes will arise concerning [my Will]; but if, contrary to expectation, the case should be otherwise from the want of legal expression, or the unusual technical terms, or because too much or too little has been said on any of the devises to be consonant with the law, my will and direction expressly is, that all disputes (if unhappily any should arise) shall be decided by three impartial and intelligent men, known for their probity and good understanding; — two to be chosen by the disputants — each having the choice of one — and the third by those two — which three men thus chosen, shall unfettered by Law, or legal constructions, declare their sense of the Testator’s intention … and shall be binding as if issued by the U.S. Supreme Court”.

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[3] Talamanca, Mario, ‘Richerce in tema di ‘compromissum’, Milano, Giuffrè, 1958, pp. 6-18.

[4] Original: In controversia quae est inter L. Cominium Primum et L. Appuleium Proculum de finibus fundi Numidiani qui est L. Comini Primi et fundi Strataniciani qui est L. Appulei Proculi quodque L. Appuleium Proculum et L.Cominium Primum de ea controversia invicem sibi deberi praescriptum sit […] deberi  pe […] de ea controversia ita stipulati sunt itaque pacti: quod Ti. Crassius Firmus arbiter ex compromisso inter L. Cominium Primum heredemve eius palam coram utroque praesenti sententiam prove sententiam dicat dicive iubeat et ante dum ante K. Februarias primas sententiam dicat dicive iubeat diemque compromissi proferat proferrive iubeat: si quid adversus ea factum erit sive quid ita factum non erit HS M probos recte dari dolumque malum huic rei arbiterioque abesse afuturumque esse.

[5] Roebuck, Derek e Fumichon, Bruno de Loynes de, Roman arbitration, Oxford, Holo, 2004, pp. 83-86.

[6] P. Stein, Roman arbitration – an english perspective, in Israel Law Review 29 (1995), p. 218.

[7] Costa, Gabriel, Arbitragem – Origens Romanas, São Paulo, YK, 2022, pp. 6-7.

[8] R. Zimmermann (cf. The law of obligations – Roman foundations of the civilian tradition, Cape Town, Juta, 1990, p. 96-97 e Id., Stipulatio poenae, in The South African Law Journal 104 (1987), pp. 399-400) esclarece que o compromisso seria um exemplo da função “in terrorem” da “stipulatio poenae” como instrumento privado e voluntário para a garantia (ainda que indireta) da execução de uma determinada prestação. Essa função é expressamente atestada pelo Imperador Antonino Caracala em Anton. C. 2, 55, 1 (213 d. C.).

[9] A. Ernout – A. Meillet, v. mitto, in Id., Dictionnaire étymologique de la langue latine – Histoire des mots, 4ª Ed., Paris, Klincksieck, 2001, pp. 407-408; M. De Vaan, v. mitto, in Id., Etymological dictionary of latin and other italic languages, Leiden, Brill, 2008, pp. 383-384; A. Walde – J. B. Hofmann, v. mitto, in Id., Lateinisches etymologisches Wörterbuch, Vol. 2, 3ª Ed., Heidelberg, Carl Winters, 1954, pp. 97-98; S. Segura Munguía, v. mitto, in Id., Lexicón (incompleto) etimológico y semántico del latín y de las voces actuales que proceden de raíces latinas o griegas, Bilbao, Universidad de Deustro, 2014, pp. 387-394, especialmente, p. 389.

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