Perspectiva de gênero influencia de decisões societárias a questões trabalhistas

Aprovadas em março deste ano, durante a 3ª Sessão Ordinária do Conselho Nacional de Justiça, as diretrizes obrigatórias para aplicação do protocolo de perspectiva de gênero no Poder Judiciário têm influenciado casos que vão de decisões societárias a episódios de assédio moral e sexual na Justiça do Trabalho, passando por penas de aposentadoria compulsória a juízes acusados de violência sexual contra advogadas e servidoras de tribunais.

Desde março, magistrados do país têm de adotar perspectiva de gênero nos julgamentos

Desde o dia 14 daquele mês, tribunais do país têm de observar uma série de critérios em relação às matérias julgadas. O protocolo estabelece, por exemplo, que não se pode aplicar o Direito igualmente, de forma abstrata, em situações em que há desigualdades estruturais, como as que envolvem violência doméstica, e que, em situações em que há aparente “neutralidade” na influência do gênero, como em indenizações trabalhistas ou inventários, há a necessidade de observar se a mulher está sendo preterida em vários sentidos.

De forma resumida, a resolução norteia os magistrados para que desconhecimentos sociais não influenciem suas sentenças. Questões societárias, de herança, indenizatórias e familiares, diz o protocolo, podem parecer, à primeira vista, alheias às desigualdades de gênero — a prática, todavia, mostra o contrário. Há casos no Direito das Sucessões em que mulheres são preteridas em função de herdeiros homens; na Justiça do Trabalho, existem desigualdades históricas dos salários de homens e mulheres, o que afeta diretamente as indenizações posteriormente reconhecidas; e assim por diante.

Em maio, o CNJ registrou pela primeira vez o uso da Resolução 492 como fundamentação em sentença. No caso, o juiz substituto Marcos Scalercio, do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (Grande São Paulo e interior paulista), foi condenado à aposentadoria compulsória por causa de uma série de denúncias de assédio e violência sexual contra advogadas e servidoras.

A corregedoria do TRT-2 chegou a abrir duas sindicâncias para apurar a situação, que envolveu dezenas de acusações contra o magistrado, com uma série de prints de conversas expondo seu comportamento. As duas apurações foram arquivadas. O CNJ instaurou, então, procedimento administrativo disciplinar (PAD) para apurar a conduta do juiz. Na manhã de 23 de maio, a relatora da matéria, conselheira Salise Sanchotene, proferiu seu voto e foi seguida de forma unânime pelo plenário do Conselho. 

“Em apuração de condutas com conotação sexual, que normalmente acontecem às ocultas, a jurisprudência é firme em conferir especial relevo ao depoimento da vítima. E, portanto, não há como destacar de pronto as mensagens juntadas aos autos pelo simples fato de não terem sido periciadas, pois se a fala da vítima é prestigiada, com mais razões devem ser examinados os documentos juntados que possam comprovar ou ao menos compor o conjunto de indícios da prática do ilícito”, disse Sanchotene.

“É a análise de todo o conjunto probatório que produz a convicção do julgador com a aglutinação das provas documentais e testemunhais arrecadadas, isso tudo em consonância com o nosso protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, que afirma que a valoração das provas e identificação dos fatos devem assim considerar o primeiro passo, quando da análise de provas produzidas na fase de instrução, questionar se uma prova faltante poderia de fato ter sido produzida. É o caso, por exemplo, de pessoas que presenciam atos e casos de assédio sexual no ambiente de trabalho, mas que têm medo de perder o emprego se testemunharem. Em um julgamento atento ao gênero, esses questionamentos são essenciais e a palavra da mulher deve ter um peso elevado”.

Veja também:  Sub-rogação legal prevista no artigo 786 do Código Civil

“Ainda que os dados das violências sejam alarmantes, ainda que a subnotificação dos casos de violência contra a mulher, contra grupos historicamente minorizados, seja também alarmante, nós temos uma sociedade que se nega a enxergar a violência contra a mulher, contra as pessoas negras. Ela não só existe, como é aceita. E temos um sistema de Justiça que é composto por pessoas que não fazem parte, majoritariamente, desses grupos, então nunca foram forçados a direcionar o olhar para esses marcadores sociais”, diz a professora, pesquisadora e advogada Luanda Pires, que atuou no caso julgado pelo CNJ.

“O julgamento tem de se dar de forma que a lei seja aplicada de forma adequada, como determina o ordenamento jurídico, sem os vieses que são naturalmente ainda executados pelas pessoas que compõem a magistratura, o Judiciário e o sistema de Justiça.”

Em termos de fundamentação nos casos de violência doméstica, o ponto da resolução que é mais recorrente é a valoração da palavra da vítima, incluindo situações em que os magistrados decidem pela inversão do ônus da prova, ou seja, fica decidido que cabe à parte acusada provar que não cometeu o ato ilícito. Já havia jurisprudência nesse sentido, mas o protocolo tornou esta perspectiva obrigatória no Judiciário.

Somente no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), há quase uma dezena de precedentes, desde março deste ano, registrando que “em se tratando de violência praticada no âmbito doméstico e familiar, o relato da vítima assume especial relevância, podendo, em consonância com os demais elementos probatórios, amparar decreto condenatório, nos termos da Recomendação nº 128 do CNJ, do Julgamento sob Perspectiva de Gênero, de 15/02/22 e com efeito vinculante da Resolução nº 492 do CNJ, de 17/03/23”.

Violência irrestrita
Os casos de violência doméstica, assédio e importunação sexual já têm jurisprudências consolidadas na Justiça, a despeito de certos preconceitos persistirem, segundo as advogadas e especialistas no assunto entrevistadas pela revista eletrôncia Consultor Jurídico. A resolução do CNJ, todavia, jogou luz sobre violências veladas, como a patrimonial e a psicológica, além de suscitar importantes nuances às sentenças, como os estereótipos nos quais as mulheres estão submersas e debates como o da dupla (ou tripla) jornada.

As discussões, após a edição da resolução pelo CNJ, tornaram-se mais frequentes em processos de família, cíveis e, principalmente, trabalhistas. Em agosto, a 2ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (Pará e Amapá) utilizou o protocolo para afastar a justa causa de uma mulher grávida que foi demitida com a alegação de ato de improbidade na empresa em que trabalhava. Além de anular a demissão, o colegiado ainda majorou a indenização pelo fato de a mulher ter sido demitida grávida.

Veja também:  Emendas parlamentares, transparência e controle sob a atual perspectiva

“A imputação indevida de prática de ato de improbidade pela empregada durante seu estado gravídico, a qual ensejou sua demissão por justa causa, configura conduta ilícita praticada pela ré, considerando-se ainda a relevância social da proteção ao nascituro e da maternidade, além da dificuldade de reinserção de mães trabalhadoras no mercado de trabalho em uma comunidade historicamente patriarcal, onde o feminino, por apenas ser feminino, enfrenta vários tipos de discriminações, dentre elas, que somente cabem às mulheres as tarefas de cuidados da família, e que por isso mesmo tais tarefas atrapalham seu desempenho profissional, aplicando-se, ao caso concreto, as diretrizes traçadas no Protocolo Para Julgamento Com Perspectiva de Gênero”, escreveu a desembargadora Nazaré Medeiros Rocha.

Em outro caso nesse sentido, mas de natureza previdenciária, a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), por unanimidade, rejeitou apelação do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) que tentava anular a aposentadoria concedida a uma trabalhadora rural. Os desembargadores refutaram a argumentação da autarquia de que não havia documentos suficientes da autora para concessão do benefício.

“Nesse contexto, e em consonância com a Resolução 492 do CNJ, DE 17 DE MARÇO DE 2023, que trata sobre o ‘Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero’, cumpre salientar as dificuldades enfrentadas pela mulher residente no interior do Nordeste brasileiro para coligir documentos que comprovem o exercício de atividade rural”, escreveu a desembargadora federal Cibele Benevides Guedes da Fonseca, acompanhada de forma unânime em seu voto.

O ponto de partida do protocolo, diz a advogada Fernanda Perregil, sócia do escritório Donelli, Abreu Sodré e Nicolai Advogados e professora do Insper, é fazer com que as desigualdades não interfiram no andamento do processo. “Há uma preocupação, nas mulheres que buscam o Judiciário, de que não haja revitimização na condução de um processo, na análise do seu direito.”

A advogada atuou em mais de um caso de assédio sexual no ambiente de trabalho em que houve sentença fundamentada na perspectiva de gênero. “Muitas vezes essa vítima não vai ter prova, porque o crime foi cometido de forma clandestina, entre quatro paredes, sem testemunhas, e muitas vezes não existem outros meios de prova. Então o que o juiz ou a juíza pode fazer? Redistribuir o ônus probatório, para que o ônus dessa prova não seja da pessoa assediada.”

Ela cita ainda outros mecanismos que podem ser suscitados para evitar desproporcionalidades e constrangimentos às vítimas, como por exemplo estabelecer audiências separadas para a mulher que relata abuso, assédio ou violência e para o acusado. “Tudo isso é muito importante para que seja de fato construído um processo que consiga absorver o que aconteceu, e proteja a vítima.”

Veja também:  Juíza autoriza transação de débitos em SP antes de lei entrar em vigor

Assinada em 17 de outubro pelo juiz Gilberto Schafer, da Vara Regional Empresarial de Porto Alegre, uma sentença sobre Direito Societário mostrou outra perspectiva da aplicação do protocolo de gênero no Judiciário, com o magistrado reconhecendo sexismo no pedido de um homem para destituir sua ex-cônjuge da sociedade de uma farmácia.

A ação, que corre sob sigilo, tem como pano de fundo outro litígio, de divórcio, em que ficou decidido que a mulher era responsável pela empresa, enquanto o homem ficou responsável por uma outra companhia. Ambos detêm metade das quotas de cada firma.

Segundo o autor, a mulher não tem capacidade de gerir a farmácia. O juiz, entretanto, utilizou os protocolos de perspectiva de gênero brasileiro e mexicano para argumentar contra a proposição do ex-marido e, na sentença, manteve a farmácia sob controle da mulher. O magistrado afirmou que se trata de um “projeto de vida” da mulher, pouco depois de citar especificamente o trecho do protocolo que versa sobre partilha de bens:

“Na partilha dos bens, a ideia preconceituosa e equivocada acerca da divisão sexual do trabalho, na qual homens são sempre os provedores e as mulheres cuidadoras, pode acarretar distorções indesejáveis. Sendo as mulheres ‘incapazes’ de ‘performar’ no mundo dos negócios, durante o desenvolvimento do litígio, muitas vezes pode-se acreditar na impossibilidade de gerir aluguéis, de ter participação nos lucros em sociedades empresariais ou mesmo de administrá-las”.

O magistrado ainda complementou dizendo, em relação à suposta incapacidade de gestão da mulher e às acusações graves feitas pelo seu ex-marido, que “nas questões de gênero e antidiscriminação, com o julgador atento à produção das provas, (o juízo tem de exigir) modelo de constatação e a carga probatória adequados para cada uma das situações, de modo a justamente não reforçar a discriminação e atentar contra a igualdade”.

Para a advogada Maiara Paloschi, da banca Zulmar Neves Advocacia, ainda que já houvesse jurisprudência consolidada sobre perspectiva de gênero em casos de violência, nas questões cíveis (patrimoniais, por exemplo) foi necessária a orientação do protocolo para que a magistratura soubesse se posicionar nesse tipo de litígio.

“A partir dessa resolução do CNJ, vão se iniciar os precedentes, e essa decisão é importante por conta de já ter se tornado um precedente. Nesse caso, pela sentença, é possível dizer que ela merecia permanecer na gestão da farmácia por mérito próprio, não houve favorecimento por ela ser mulher. E o juiz reconhece que o processo foi utilizado como instrumento de opressão.”

Clique aqui para ler o protocolo obrigatório
PAD 0006667-60.2022.2.00.0000
Processo 0000593-13.2022.5.08.0001
Processo 5154765-44.2021.8.21.0001
Processo 0000288-09.2019.8.17.3210

Fonte: Conjur

Leia também: