Ao definir a natureza do plano de recuperação judicial como estritamente contratual, em razão do caráter negocial e da disponibilidade do direito, há um risco de se negligenciar as nuances envolvidas no processo de recuperação judicial. A interpretação das linhas negociais deverá ser com arrimo no princípio da preservação da empresa, entretanto, deverá ser considerado o que há disposto na legislação e o contexto fático do caso concreto.
Para Daniel Cárnio [1], há uma necessidade de superação do dualismo pendular, com a consequente redistribuição equilibrada do ônus, sobrepujando a tendência de oscilação de interesses entre credores e devedores. Assim, o foco do processo de recuperação judicial deve ser deslocado para o resultado útil do processo e não as partes envolvidas. No mesmo sentido se verifica o posicionamento do ministro Luis Felipe Salomão, ao proferir o voto no REsp 1.337.989/SP.
Para tanto, o Juízo Universal deverá prezar pela divisão de ônus de forma equivalente, com o fim de maximizar os resultados com arrimo na função social da empresa, nos moldes do instituto da recuperação judicial. Nesse corolário lógico, o pacta sunt servanda, ou a liberdade contratual, encontra obstáculos e, por esta razão, não se deve atribuir natureza exclusivamente contratual ao plano de soerguimento apresentado.
Nesse cenário, conclui-se que a Lei nº 11.101/2005 vem sendo interpretada sempre com fulcro nos pilares envolvidos no artigo 47, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores que, por consequência, promove a preservação da empresa, a sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Entende-se que a aplicação do artigo 47 já é uma forma de superar a teoria da dualidade pendular, em razão de todas as searas envolvidas no seu conceito, e não apenas pelos benefícios ao devedor por uma suposta “preservação da empresa”. Esta, na sua literalidade, é uma consequência lógica do cumprimento das noções principiológicas identificadas no decorrer do artigo em comento.
Descumprimento do PRJ
No caso concreto, denota-se que a recente decisão do STJ no REsp nº 1.830.550 /SP [2] flexibilizou dispositivos legais e enfraqueceu o controle de legalidade do magistrado, ao atribuir legalidade à cláusula do plano de recuperação judicial (PRJ) que prevê a convocação de uma assembleia geral de credores caso haja descumprimento do referido plano de soerguimento
De um lado, tem-se a inserção de cláusula que possibilita nova convocação da assembleia geral, a fim de evitar o decreto imediato da falência, inserida no âmbito da liberdade negocial dos credores, o pacta sunt servanda. Em caso de necessidade, a aplicação do dispositivo seria benéfica à continuação das atividades empresariais, desde que haja a manutenção dos postos de trabalhos, da fonte produtora e recolhimento de impostos, resultando na manutenção da sua função social.
Lado outro, tem-se a previsão do artigo 61, §1º c/c artigo 73, IV da mesma lei, o qual conclui pela decretação da falência no caso de não cumprimento de obrigação assumida no PRJ, durante o período de dois anos a partir da concessão da recuperação judicial. Assim, caso a devedora se esquive das suas obrigações e se utilize das benesses de uma recuperação judicial sem a contraprestação necessária, a sua convolação em falência é medida que se impõe.
Nesse sentido, é pacífico o entendimento de que é soberana a deliberação da assembleia de credores relativa ao conteúdo do PRJ. Entretanto, segundo a legislação falimentar, o Juízo Universal é competente, exclusivamente, para a avaliação da conformidade do ato jurídico. Pelo corolário lógico, o magistrado deve exercer o controle de legalidade ao apreciar o PRJ, independentemente da aprovação pelos credores, sob o fundamento da proteção do interesse público.
Flexibilização e perda de propósito
Assim como em outros artigos da Lei nº 11.101/2005 (LRF), a flexibilização do artigo 61, § 1º c/c o artigo 73 §1º tem sido recorrente. Contuso, necessário atentar-se de que o princípio da preservação da empresa perde o propósito quando aplicado “a torto e a direito”, apenas com a intenção de manter as vantagens concedidas com o deferimento do processamento da recuperação judicial [3].
No inteiro teor da decisão da Corte Superior, extrai-se que as disposições legais não são normas imperativas e devem ser interpretadas com fulcro no objetivo maior da lei, qual seja, a superação da crise econômico-financeira e o princípio da preservação da empresa estampado em seu artigo 47.
Além disso, traz a lume que se os próprios credores, maiores interessados no recebimento do crédito, optam por mais uma tentativa para manter a empresa, através de uma AGC, tal inserção encontra amparo na liberdade negocial dos credores, o pacta sunt servanda.
No mesmo trilhar, identifica-se mais uma flexibilização em favor do pacta sunt servanda pelo STJ quando da análise do Recurso Especial nº 1.936.385/SP, o qual fixou o entendimento de que a Assembleia Geral de Credores pode estabelecer critério temporal diverso do previsto no artigo 9º, II, da Lei 11.101/2005 para atualização dos créditos sujeitos ao procedimento recuperacional desde que expressamente previsto no Plano de Recuperação Judicial.
Entrementes, denota-se que o Judiciário tem enfrentado demasiadas situações singulares, nas quais tem sido necessário um grau maior de percepção e de identificação de ocorrências em um determinado cenário. Cumpre observar, por derradeiro, que as relativizações da lei de insolvência surgem com o objetivo de garantir a manutenção dos empregos e fontes produtoras, salvaguardando, assim, a função social da empresa e o estímulo à atividade econômica.
Por seu turno, a questão que se põe é qual será a eficácia do controle de legalidade, em um futuro próximo, após tantas flexibilizações do Judiciário em favor da liberdade negocial e a preservação da empresa.
Sob esse prisma, imprescindível a cautela nas análises sistemáticas do regramento ao caso concreto. O exame de circunstâncias de fato não pode desvirtuar o conceito da lei, sob pena de atropelamento da divisão dos poderes constitucionalmente definidos. A interpretação às margens da lei tangencia a segurança e a estabilidade jurídica adquirida e pode resultar na perda de propósito do direito positivado.
[1] https://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/CadernosJuridicos/37de%2004.pdf?d
[2] (STJ – REsp: 1830550 SP 2019/0230738-2, Relator: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Julgamento: 23/04/2024, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/04/2024)
[3] https://www.conjur.com.br/2016-set-14/livia-gutierrez-natureza-juridica-plano-recuperacao-judicial/
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