No último dia 17 foi entregue ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o anteprojeto de reforma do Código Civil, fruto de um trabalho árduo empreendido por uma Comissão de Juristas liderada pelos ministros Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Belizze, do STJ (Superior Tribunal de Justiça). A comissão, composta por renomados civilistas, dedicou seis meses a esforços hercúleos para atualizar o Código Reale de 2002.
Em todo o texto, a comissão buscou incorporar avanços provenientes da literatura jurídica especializada, dos enunciados das Jornadas do Conselho da Justiça Federal e do Direito Jurisprudencial, dimensionado pelos tribunais, notadamente pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.
Esses avanços em termos de atualização já justificariam que a reforma tivesse um trâmite célere no Parlamento e corrigisse as lacunas e obsolescências que mais de 20 anos de vigência da lei impuseram ao “direito vivente”.
Detratores
Como de praxe, como dizia o saudoso Orlando Gomes, [1] já surgiram o grupo dos “detratores do Projeto de Código”. No entanto, nesta ocasião, a crítica se apresenta de forma mais delicada da lembrada pelo mestre, pois não atacam diretamente o anteprojeto de lei apresentado, mas sim versões ultrapassadas ou, pior ainda, propagam “fake news” de que o texto legitimaria condutas reputadas imorais, que chegam ao limite do absurdo. [2]
E, como se trata de inverdades ou de versões desatualizadas, o anteprojeto seguirá seu trâmite regular e espera-se que seja aprovado o mais brevemente possível, obviamente mediante um amplo debate parlamentar que permita seu aprimoramento no Congresso.
A possibilidade de verdadeiro aprimoramento já serviria como fundamento para a atualização legislativa, mas o fenômeno da digitalização da vida e o surgimento de novas relações jurídicas empreendidas no ambiente da Internet e por meio de novas tecnologias digitais tornam essencial a rapidez da reforma.
Isso porque o anteprojeto, na vanguarda do direito mundial, adota em seu texto um novo livro para o Código Civil, intitulado “Direito Civil Digital”.
As tecnologias digitais, incluindo a internet, smartphones e redes sociais, estão cada vez mais entranhadas em nossas vidas, marcando uma tendência de uso continuado. Em 2022, com a população mundial atingindo 8 bilhões de pessoas, 5 bilhões delas possuíam smartphones, representando 82% da população global. Desses usuários de smartphone, 4,7 bilhões participavam de ao menos uma rede social. [3]
Atualmente, nossa conectividade não só aumentou, mas também mudamos a maneira como acessamos e consumimos tecnologia. Anteriormente, utilizávamos smartphones e plataformas digitais de forma ocasional, como para enviar e-mails ou fazer pesquisas escolares.
Hoje, o manuseio desses dispositivos faz parte constante de nossas rotinas diárias, ocupando cerca de seis horas por dia, das quais metade desse tempo é gasta em redes sociais. Um estudo de 2022 aponta que as pessoas chegam a desbloquear seus smartphones aproximadamente 100 vezes por dia, indicando uma relação de dependência significativa com esses dispositivos. [4]
Onlife
Fica então evidente que na sociedade digital vivemos uma era onlife, [5] na qual as experiências reais e virtuais se fundem, e que impõe a percepção de uma virada tecnológica do direito de modo a encarar o impacto das tecnologias de informação e comunicação na adaptação e interpretação do sistema jurídico, de modo que o código deontológico do Direito imponha mecanismos cooperativos de governança e controle do ambiente digital.
Com esse intuito, o livro “Direito Civil Digital” propõe a atualização da legislação brasileira para endereçar as particularidades do ambiente digital.
A lei é dividida em dez capítulos que estabelecem desde disposições gerais até normas específicas para atos notariais eletrônicos, passando por princípios de proteção da dignidade e privacidade, regulação de direitos digitais de pessoas naturais e jurídicas, responsabilidades no uso de tecnologias, e gestão de patrimônio digital.
Os pontos chave incluem: a proteção dos direitos de personalidade e dados no ambiente digital; definição de situações jurídicas digitais e suas regulações; garantias para um ambiente digital seguro; diretrizes para a inteligência artificial visando a não discriminação e transparência; e a validação de contratos e assinaturas eletrônicas.
Além disso, a lei enfatiza a proteção integral de crianças e adolescentes no digital e estabelece procedimentos para atos notariais eletrônicos, assegurando sua autenticidade e confidencialidade.
Entre os inúmeros temas abordados, pretende-se aqui pontuar um aspecto essencial para defesa da cidadania e da autonomia privada dos brasileiros: o dimensionamento dos neurodireitos, [6] considerados como “as proteções que visam preservar a privacidade mental, a identidade pessoal, o livre arbítrio, o acesso justo à ampliação ou melhoria cerebral, a integridade mental e a proteção contra vieses, das pessoas naturais, a partir da utilização de neurotecnologias”.
Os cidadãos tornaram-se acostumados com a ideia de que seus dados pessoais, incluindo endereços de e-mail, contatos sociais, histórico de internet e informações genéticas, são frequentemente coletados e revendidos pelos aplicativos e serviços digitais que eles utilizam.
Mas, agora, com gadgets usáveis (headbands de meditação, airpods [7] e até utensílios mais invasivos [8]) dados íntimos e mentais podem ser usados com finalidade variada e com o risco de induções de comportamento e redução da autonomia privada (de escolha) dos cidadãos. [9]
O texto consagra entre os fundamentos do direito civil digital “o desenvolvimento e a inovação econômicos, científicos e tecnológicos, assegurando a integridade e a privacidade mental, a liberdade cognitiva, o acesso justo, a proteção contra práticas discriminatórias e a transparência algorítmica”.
É ainda mais específico pontuar que “os neurodireitos são parte indissociável da personalidade e recebem a mesma proteção desta, não podendo ser transmitidos, renunciados ou limitados”. [10]
Direitos neuroespecíficos
O anteprojeto sintetiza a necessidade de se estabelecer novos direitos neuroespecíficos, que se iniciou com Ienca e Andorno (2017) [11], que sugeriram adicionar quatro prioridades éticas em relação à neurotecnologia. Esses conceitos foram integrados pela Neuro Rights Foundation [12] em sua defesa por cinco direitos, incluindo privacidade mental e identidade pessoal.
O Chile incorporou aspectos de proteção à integridade mental em sua Constituição [13], nós já tentamos mediante a proposta de PEC [14], Argentina [15], França [16] e Espanha [17] tomaram medidas legislativas ou regulatórias para reconhecer e proteger os neurodireitos.
Internacionalmente, organismos como a ONU [18] e a OEA [19] abordaram as implicações éticas da neurotecnologia, com este último emitindo Princípios Interamericanos sobre Neurociências e Direitos Humanos [20]. Além disso, o Parlamento Latino-Americano lançou uma Lei Modelo sobre neurodireitos em abril de 2023 [21].
Recente reportagem do The New York Times, [22] de 17 de abril de 2024, noticiou que o estado do Colorado aprovou uma legislação pioneira nos Estados Unidos que estende os direitos de privacidade aos dados neurais, que são cada vez mais alvo de interesse das empresas de tecnologia.
Esta nova lei amplia a definição de “dados sensíveis” na legislação estadual sobre privacidade pessoal para incluir dados biológicos e neurais, que englobam as atividades cerebrais e informações derivadas do sistema nervoso. Com esta medida, o Colorado se posicionou na vanguarda da proteção da privacidade no contexto de tecnologias consumidoras de neurodados.
A lei estabelece direitos aos consumidores para acessar, deletar e corrigir seus dados, além de permitir que optem por não participar da venda ou uso de seus dados para publicidade direcionada. As empresas são obrigadas a seguir regulamentações rigorosas sobre a coleta, armazenamento e compartilhamento desses dados, precisando divulgar que tipo de dados coletam e seus planos para eles.
Isso reflete uma resposta legislativa aos riscos associados à coleta não regulamentada de dados neurais, que poderiam ser usados para decodificar pensamentos e emoções ou revelar informações sensíveis sobre a saúde mental ou física de um indivíduo.
A adoção desta lei americana representa um passo significativo, considerando que até então, os dados neurais coletados por empresas de neurotecnologia de consumo não eram protegidos pelas leis federais de saúde, que cobrem apenas dados de pacientes obtidos em contextos clínicos. Além de proteger os dados neurais como informações pessoais sensíveis.
Este breve panorama do quadro normativo internacional exposto ressalta a relevância e a urgência do anteprojeto de reforma do Código Civil, destacando-se em particular na sua abordagem das interações digitais diárias do cidadão brasileiro. Tal atualização demanda um apoio vigoroso da comunidade jurídica para sua aprovação.
Vivemos uma virada tecnológica onde o direito se adapta à era tecnológica, e é crucial que nossos legisladores tratem esta evolução com a seriedade necessária, garantindo que os cidadãos mantenham suas escolhas livres de manipulações indesejadas.
__________________
[1] Orlando Gomes: o cronista: 140 crônicas de Orlando Gomes. Salvador: EDUFBA, 2021.p. 267-271.
[2] Um aspecto frequente desse “movimento detrator” é a interpretação equivocada relacionada ao Direito de Família no Anteprojeto. Inveridicamente, afirma-se que o texto permitiria o aborto por meio de uma lei civil e que autorizaria a formação de “famílias multiespécies”. https://www.instagram.com/reel/C56adgiRRPL/?igsh=MWdjdmgxYXh1OWozbA==
[3] OBERLO. How many people have smartphones in 2022? https://www.oberlo.com/statistics/how-many-people-have-smartphones
[4] KEMP, Simon. Looking ahead: key digital themes for 2023. Datareportal. Disponível: https://datareportal.com/reports/looking-ahead-to-what-2023-holds. CHANG, Jenny. 90 Smartphone Addiction Statistics You Must See: 2022 Usage and Data Analysis. Finances Online. 6 de novembro de 2022.
[5] “As TICs – tecnologias de informação e comunicação – não são meras ferramentas, mas sim forças sociais que estão afetando cada vez mais nossa autoconcepção (quem somos), nossas interações mútuas (como nos socializamos); nossa concepção da realidade (nossa metafísica); e nossas interações com a realidade (nossa agência). Em cada caso, as TICs têm um enorme significado ético, legal e político, mas com o qual começamos a chegar a um acordo apenas recentemente” FLORIDI, Luciano. The Onlife Manifesto: Being Human in a Hyperconnected Era. Oxford: Springer, 2015.
[6] Cf. PORTO, Laura. Neurodireitos: um olhar para o futuro presente na era digital.
[7] https://www.techtudo.com.br/noticias/2023/08/airpods-do-futuro-podem-ler-suas-ondas-cerebrais-veja-como-edinfoeletro.ghtml
[8] https://www.techtudo.com.br/noticias/2022/06/seu-vibrador-inteligente-pode-sofrer-ataque-hacker-entenda-riscos.ghtml
[9] https://open.spotify.com/episode/7yfZYV6qGVmygsiq8xSwWO?si=ynqCl4gRTjyn8V23F-krWQ Não se pode esquecer do projeto de implante mental neuralink de Elon Musk: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp0gyj3lv01o
[10] O referido dispositivo esmiuça a temática ao dizer que: Art. (…) § 2º São garantidos a toda pessoa natural os seguintes neurodireitos:I – direito à liberdade cognitiva, vedado o uso de neurotecnologias de forma coercitiva ou sem consentimento;II – direito à privacidade mental, concebido como direito de proteção contra o acesso não autorizado ou não desejado a dados cerebrais, vedada a venda ou transferência comercial;III – direito à integridade mental, entendido com o direito à não manipulação da atividade mental por neurotecnologias, vedada a alteração ou eliminação do controle sobre o próprio comportamento sem consentimento;IV – direito de continuidade da identidade pessoal e da vida mental, com a proteção contra alterações na identidade pessoal ou coerência de comportamento, vedadas alterações não autorizadas no cérebro ou nas atividades cerebrais;V – direito ao acesso equitativo a tecnologias de aprimoramento ou extensão das capacidades cognitivas, segundo os princípios da justiça e da equidade;VI – direito à proteção contra práticas discriminatórias, enviesadas a partir de dados cerebrais.§ 3º Os neurodireitos e o uso ou acesso a dados cerebrais poderão ser regulados por normas específicas, desde que preservadas as proteções e as garantias conferidas aos direitos de personalidade.”
[11] IENCA, M., ANDORNO, R. (2017). Towards new human rights in the age of neuroscience and neurotechnology. Life Sci. Soc. Pol. Acessível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28444626/
[12] NeuroRights Foundation (2023). The Neurorights Foundation. Human Rights for the Age of Neurotechnology. Available online at: https://neurorightsfoundation.org/
[13] Biblioteca del Congreso Nacional de Chile (2021). Decreto 100 fija el texto refundido, coordinado y sistematizado de la Constitución Política de la República de Chile. Available online at: https://www.bcn.cl/leychile/navegar?idNorma=242302&idVersion=2021-10-25
[14] https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2317524
[15] https://www.hcdn.gob.ar/proyectos/proyecto.jsp?exp=0339-D-2022
[16] https://www.hcdn.gob.ar/proyectos/proyecto.jsp?exp=0339-D-2022
[17]https://www.lamoncloa.gob.es/presidente/actividades/Documents/2021/140721-Carta_Derechos_Digitales_RedEs.pdf
[18] International Bioethics Committee. Ethical Issues of Neurotechnology: Report. Paris: UNESCO. 2022.
[19] Human Rights Council (2022). Resolution A/HRC/RES/51/3 Neurotechnology and Human Rights.: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G22/525/04/PDF/G2252504.pdf?OpenElement
[20] Inter-American Juridical Committee (2023). Inter-American Declaration of Principles on Neurosciences, Neurotechnologies, and Human Rights CJI/RES. 281 (CII-O/23) corr.1. https://www.oas.org/es/sla/cji/docs/CJI-RES_281_CII-O-23_corr1_ESP.pdf
[21] Parlatino. (2023). Ley Modelo de Neuroderechos para América Latina y El Caribe. https://parlatino.org/wp-content/uploads/2017/09/leym-neuroderechos-7-3-2023.pdf
[22] MOENS. Your Brain Waves Are Up for Sale. A New Law Wants to Change That. NYT, 17.4.2024. https://www.nytimes.com/2024/04/17/science/colorado-brain-data-privacy.html
—
O post Por que a reforma do Código Civil merece ser aprovada? Defesa dos nossos neurodireitos apareceu primeiro em Consultor Jurídico.