Por que regularizar até 2,5 mil hectares na Amazônia Legal?

Em 2009, o Estado brasileiro instituiu o Programa de Regularização Fundiária na Amazônia Legal com a aprovação da Lei 11.952, de 25 de junho de 2009. Um importante aspecto desse programa está em debate: por que regularizar posses até 2,5 mil hectares na Amazônia Legal?

Discussão

A Lei 13.465/2017 alterou o limite original de regularização de 15 módulos fiscais, ampliando-o para até 2,5 mil hectares, o que foi objeto de impugnação nas ações diretas de inconstitucionalidade da Lei 13.465/2017 (ADI 5.771, 5.787, 5.883 e 6.787).

O ministro Dias Toffoli, relator das ações constitucionais, afastou a inconstitucionalidade, ao considerar que o texto constitucional traz autorização expressa sobre essa matéria (artigo 188, §1º da Constituição). Porém, o ministro Flávio Dino apresentou voto divergente, ponderando, a partir de critérios infralegais e mercantis, que esse novo parâmetro alcançaria grandes latifúndios, o que contraria os princípio da justiça social e da função social da propriedade.

Permissão constitucional

Como bem explicado no voto do ministro relator Dias Toffoli, a Carta Constitucional traz autorização expressa para que a política agrária possa dar destinação a áreas até 2.500 hectares (artigo 188, §1º), apenas condicionando à autorização especial do Congresso Nacional as destinações que ultrapassem essa dimensão [1].

Interessante registrar que o §1º do artigo 188 é uma norma constitucional originária. Portanto, eventual conflito com algum outro dispositivo da própria Constituição deve ser solucionado pelo sistema de regra e exceção, não havendo espaço para a negativa de vigência de texto constitucional originário [2], já que representaria substituir a vontade do constituinte originário.

Refletindo uma visão mercantil do programa, o voto divergente defende que a inconstitucionalidade está assentada na possibilidade da regularização fundiária de grandes propriedades, isto é, aquelas com áreas superiores a 15 módulos fiscais, conforme parâmetros do Estatuto da Terra e da Lei 8.693/93.

Ocorre que o raciocínio empregado permite que definições e classificações criadas por lei ordinária (como a noção de grande propriedade a partir de 15 módulos fiscais) esvazie o texto constitucional, pois submete a norma constitucional à lei ordinária.

Logo, quando o Estatuto da Terra cria o instituto do módulo fiscal, e a Lei 8.629/93 classifica imóveis rurais acima de 15 módulos fiscais como “grandes propriedades”, tais definições não tem capacidade de alterar a permissão constitucional originária, que autoriza o legislador a destinar parcelas até 2,5 mil hectares.

Do contrário, bastaria ao legislador infraconstitucional definir que grandes propriedades são aquelas com áreas acima de 200 hectares e tais imóveis não poderiam ser objeto de regularização fundiária, afastando a permissão constitucional de titulação de áreas até 2,5 mil, que submeteria a Constituição a uma norma de hierarquia inferior e, consequentemente, violação ao princípio da supremacia da norma constitucional [3].

Necessário registrar que a regulamentação da regularização fundiária de parcelas de terras públicas até 2,5 mil hectares não é novidade, como se observa da Norma de Execução do Incra 8 de 6 de abril de 2001 e a Norma de Execução do Incra 29, de 11 de setembro de 2002, ambas com permissão expressa de titulação de áreas até o limite constitucional.

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A justiça fundiária com o novo limite de 2,5 mil hectares

Analisando os parâmetros infraconstitucionais e os princípios da justiça fundiária, constata-se que o aumento de 15 módulos fiscais para 2,5 mil hectares não representa, por si só, a regularização de grandes latifúndios na Amazônia Legal.

Sob uma perspectiva agrária, o parâmetro constitucional de 2,5 mil hectares reflete a diversidade das realidades produtivas do território nacional. A extensão territorial não é, isoladamente, indicativa de capacidade econômica ou do nível de concentração fundiária. Cada atividade agropecuária possui distintas demandas de área conforme suas características técnicas, ecológicas e econômicas.

Por exemplo, a bovinocultura extensiva de corte, amplamente praticada na Amazônia Legal, demanda grandes extensões de pastagens, exigindo, muitas vezes, mais de um hectare por unidade animal, o que reflete uma necessidade técnica inerente à atividade produtiva e não uma manifestação de poder econômico ou concentração patrimonial mercantilista.

Assim, não é razoável, seja no campo jurídico ou agronômico, utilizar a dimensão da área como único critério classificatório para distinguir situações patrimoniais e decidir quem pode ser regularizado. Essa compreensão penaliza ocupantes cuja atividade, por razões técnico-produtivas, exige áreas maiores, ainda que sejam pequenos e médios produtores com estruturas familiares ou de pequeno porte empresarial.

Em apertada síntese, pode-se afirmar que a fixação do limite constitucional de destinação de áreas até 2,5 mil hectares não representa, automaticamente, a formação de latifúndios, mas o reconhecimento do constituinte originário a respeito das diferenças entre as cadeias produtivas agropecuárias regionais, franqueando ao legislador uma margem dimensional suficiente para dar tratamento isonômico aos produtores de todos recantos do Brasil, conforme suas peculiaridades e demandas.

O que são 2.500 hectares na Amazônia legal?

O Estatuto da Terra estabelece, para fins agrários, o módulo fiscal a partir da área aproveitável [4] e, não, da área total do imóvel [5].

Essa questão faz muita diferença para a Amazônia Legal, tendo em vista que os imóveis localizados no bioma amazônico estão submetidos a uma forte restrição de disponibilidade: a imposição de reserva legal em 80% da área total do imóvel rural [6].

Assim, em um imóvel de 2,5 mil hectares (regularizável pela Lei 13.465/2017), apenas 500 hectares (20%) estarão efetivamente disponíveis para exploração agropecuária na Amazônia Legal, enquanto os 2.000 hectares remanescentes deverão permanecer preservados, sujeitos a fiscalização ambiental, monitoramento permanente e responsabilidade objetiva do possuidor.

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Relevante anotar que, embora o módulo fiscal possa variar entre 5 e 110 ha, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento [7] aponta que o módulo fiscal médio do bioma amazônico é de 73 hectares, lembrando que a Lei 13.465/2019 é aplicável somente às parcelas de terras localizadas no referido bioma. Nesse sentido, os 500 hectares aproveitáveis máximos de um imóvel com 2,5 mil hectares, segundo o Código Florestal e o Estatuto da Terra, equivalem a 6,8 módulos fiscais, o que corresponde à metade de uma média propriedade (até 15 módulos fiscais).

Mesmo considerando o pior cenário, qual seja, o emprego do menor módulo fiscal da área rural da Amazônia Legal, que é de 40 hectares (e não cinco módulos, área essa encontrada apenas em regiões metropolitanas da Amazônia), os 500 hectares aproveitáveis máximos representam um imóvel com 12,5 módulos fiscais. Dessa forma, ainda classificado na categoria de média propriedade.

Longe de promover a criação de novos latifúndios, a dimensão de 2.500 hectares, regularizável a partir da Lei 13.465/2017 e fundada na permissão constitucional originária do §1º do artigo 188, adequa-se à realidade amazônica. Essa configuração reflete a política governamental de regularização fundiária, que busca titular terras em dimensões compatíveis com a atividade agropecuária da região em que estão localizadas.

Portanto, ainda que se empreguem as classificações do Estatuto da Terra e da Lei 8.629/93, utilizadas pelo voto divergente do ministro Flávio Dino, observa-se que a propriedade titulada pela regularização fundiária não cria grandes latifúndios, mas permite que a área destinada seja economicamente viável.

Proteção ao interesse público

A proteção ao interesse público foi outra preocupação do legislador.

Nesse intento, os requisitos para a regularização fundiária funcionam como  salvaguardas ao interesse público, impedindo desvios aos objetivos da justiça fundiária.

De acordo com o marco legal, exige-se do beneficiado: ocupação direta e exploração produtiva efetiva; prática de cultura efetiva e aproveitamento racional do solo; existência de benfeitorias implantadas; obediência às normas ambientais e regularidade na cadeia sucessória da ocupação, analisando histórico dominial e eventual prática de grilagem.

O beneficiado deverá ainda comprovar que a posse da área seja anterior a 22 de julho de 2008. Logo, na data atual, significam 17 anos de posse, prazo esse que ainda deve ser somado aos dez anos de obrigações dispostas em cláusula resolutivas decenais.

Desse modo, o escopo normativo submete o beneficiário a encargos fundiários e ambientais por quase 30 anos, suficientes para que o interesse público seja eficientemente protegido.

Por fim, para garantir real proteção ao patrimônio público, a titulação de ocupações que superem quatro módulos fiscais exige a realização de vistoria presencial, a fim de aferir o efetivo cumprimento dos requisitos legais, estreitando as possibilidades de fraudes e desvios do programa (artigo 13 da Lei 11.952/2009).

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Justiça fundiária e direito ao desenvolvimento

Como visto, a permissão constitucional de destinação de áreas até 2.500 hectares, também adotada pelo legislador infraconstitucional como limite para a regularização fundiária, é compatível com as aptidões agrárias dos amazônidas e harmoniza-se com as regras protetivas desse bioma. Essa medida permite que a área destinada à produção seja capaz de gerar o desenvolvimento humano.

É importante advertir que apenas o desenvolvimento econômico e social é capaz de reduzir com efetividade as violações ao meio ambiente amazônico, muita das vezes resultado da vulnerabilidade de sua pobre população, contraditoriamente, aquela residente no território de maior riqueza natural do planeta.

Pensar na Amazônia, especialmente no contexto da COP30, sem considerar sua população economicamente produtiva, hoje superior a 30 milhões de habitantes, significa negar a esses brasileiros o direito fundamental [8] ao desenvolvimento [9]. Ignorar essa regra é comprometer o futuro da região e sepultar quaisquer outras políticas públicas para esse cobiçado território do globo terrestre.


[1] O art. 8º da Lei 6.634/1979 permitia a destinação de até 3.000 ha na faixa de fronteira.

[2] ADI 4097-AgR, Rel. Ministro Cezar Peluso, 01.10.2008.

[3] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 14 ed. São Paulo: 2010, p. 195.

[4] Art. 50 […]

§ 3º. O número de módulos fiscais de um imóvel rural será obtido dividindo-se sua área aproveitável total pelo módulo fiscal do Município.

§ 4º Para os efeitos desta Lei, constitui área aproveitável do imóvel rural a que for passível de exploração agrícola, pecuária ou florestal. Não se considera aproveitável: a) a área ocupada por benfeitoria; b) a área ocupada por floresta ou mata de efetiva preservação permanente, ou reflorestada com essências nativas. (grifos nossos)

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial nº 2.480.456/PR. Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira. Decisão monocrática de 04 de outubro de 2024.

[6] Código Florestal, art. 12.

[7] BRASIL.  Ministério  da  Agricultura,  Pecuária  e  Abastecimento. Regularização fundiária:  cenário  e  legislação.  Brasília,  DF:  Ministério  da  Agricultura,  Pecuária  e   Abastecimento,   2020.   Disponível   em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/cartilha-explica-processo-de-regularizacao-fundiaria-na-amazonia/regularizacaofundiariacenariolegislacao.pdf. Acesso em: 19 jun. 2025.

[8] Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986 da Organização das Nações Unidas, aprovada pela Resolução ONU 41/128. Disponível em: https://acnudh.org/wp-content/uploads/2012/08/Declara%C3%A7%C3%A3o-sobre-o-Direito-ao-Desenvolvimento.pdf. Acesso em: 22 out. 2025.

[9] HONORATO, Marcelo. (2021). A regularização fundiária da Amazônia: o direito ao desenvolvimento e as críticas de organizações internacionais não governamentais. Revista CEJ. Disponível em: https://revistacej.cjf.jus.br/cej/index.php/revcej/article/view/2606/2490. Acesso em: 10 out. 2025.

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