Precisamos rever o critério da subsistência para definir quem é segurado especial no INSS

Atualmente, há enorme evolução no estudo previdenciário dos agricultores familiares, notadamente quando se observa seu poder de crédito nas relações de consumo e como o pequeno e médio agricultor desenvolvem sua atividade rurícola dentro da sociedade globalizada.

Sobre essa evolução, destacamos o conceito legal de agricultor familiar dado pela Lei 11.326/2006, que, no seu artigo 3°, dispõe:

Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos:

I – não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais;

II – utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;

III – tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo; (Redação dada pela Lei nº 12.512, de 2011)

IV – dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.

Vale salientar que, anteriormente à Lei 12.512/11, a redação do inciso III da Lei 11.326/06 era a seguinte: “III – tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento;”.

Vê-se, portanto, a mudança de paradigma, repaginando quem pode ser agricultor familiar, afastando-se do conceito de agricultor familiar como alguém que planta, colhe, consome e fica a depender do Estado para o restante do seu sustento.

Nova faceta da agricultura familiar

A agricultura familiar passou a ter papel eminentemente econômico, com produção para a comercialização interna de produtos agrícolas para consumo dos brasileiros, não se podendo negar essa nova faceta desse segmento rural.

Nesse diapasão, destaque-se que as linhas de crédito aos agricultores cadastrados no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) é oferecida com base em diversos critérios e pode ser lançada, a depender do perfil de financiamento, em modalidades que permitem aos titulares a movimentação de milhares de reais [1], como por exemplo a importante iniciativa em reconhecer a mulher como parte estruturante do regime de economia familiar, o Pronaf Mulher: linha de crédito exclusiva para mulheres agricultoras, com renda familiar bruta anual de até R$ 100 mil, integrantes de unidades familiares de produção rural.

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Essa movimentação financeira é, evidentemente, prova robusta que encarar o agricultor familiar como alguém que utiliza sua faixa de terra apenas para produção de mero consumo é uma violação patente de reconhecimento da evolução do papel desse segmento social.

Logo, esse é um novo modelo de agricultura familiar que deve ser compreendido pelos atores sociais. Não adianta negar a evolução do conceito de agricultura familiar, que ultrapassou a simples ideia de regime de subsistência e assumiu feição socioeconômica.

Legitimidade aos agricultores familiares

Portanto, com a compreensão correta do enquadramento jurídico-social que os pequenos agricultores estão inseridos, olhando com bons olhos a atuação dos sindicatos rurais e das Emater, a justiça social será efetivada, a fim de conferir maior legitimidade aos agricultores familiares e reconhecê-los como integrantes da sociedade de crédito e como potenciais engrenagens da economia.

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Em um segundo momento, importa salientar que essa categoria de produtor rural é posicionada topograficamente na categoria “segurado especial” no Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Nesse sentido, no âmbito previdenciário, ainda há certo desconhecimento do atual poder do agricultor familiar.

Inúmeras são as decisões administrativas, no próprio INSS, como no judiciário, que negam acesso a benefícios previdenciários aos agricultores que aderiram ao crédito bancário e não utilizam a produção apenas para a “mera subsistência”. Veja exemplo de como os tribunais afastam a qualidade de segurado especial a produtor rural  que tem, simplesmente, carros em seu nome:

EMENTA. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR IDADE RURAL. DESCARACTERIZADA A QUALIDADE DE SEGURADO ESPECIAL. MÉDIO PRODUTOR RURAL. MANTÉM SENTENÇA IMPROCEDENTE. CONHECE E NEGA PROVIMENTO AO RECURSO DO AUTOR. 1. Recurso inominado interposto pela parte autora contra sentença do juízo da 4ª Vara Federal de Juizado Especial da Seção Judiciária do Acre . Sem contrarrazões do INSS. 2. Dispensado o relatório. VOTO . 3. O juízo a quo julgou o feito improcedente, considerando:() Ficou demonstrado que o autor possui um veículo caminhonete Amarok que tem valor de mercado de cerca de R$ 105.584,00, a terra possui cerca de 13,35 hectares (documento de imóvel rural desde 1980) e se destina à criação de gado, conforme guias de transporte de animais. Em uma das guias, havia total de 45 cabeças de gado no ano de 2017 .A parte autora, no depoimento pessoal, declarou trabalhar desde o ano 1970 na zona rural, sendo proprietário de uma fazenda de 13 hectares que se destina à criação de vacas de leite para produção e venda de leite e queijo. Disse que possui cerca de 18 vacas atualmente e conta apenas com uma pessoa que presta diárias para auxílio nos trabalhos. Disse que já está separado e a esposa é aposentada por idade rural.A testemunha possui 23 anos de idade e conhece o autor da localidade, declarando que a caminhonete seria de uma neta dele, o que não é compatível com depoimento pessoal do autor, o qual afirmou que comprou e possui a caminhonete para uso nos serviços .Embora haja documentos indicando que o autor é proprietário de imóvel rural, ele não pode ser enquadrado como sendo segurado especial, já que possui um veículo de valor alto para regime de agricultura de subsistência, além de possuir quantidade de gado que, somente em transporte na guia de 2017, somava 45 cabeças. Concluo, a partir do conjunto probatório, que o autor não se enquadra na condição de segurado especial em regime de economia familiar, que diz respeito à situação em que a agricultura praticada é para subsistência, pelo contrário, possui uma produção rural que lhe permite ter bens de maior valor, como caminhonete e quantidade de animais de alto valor econômico – Destaquei. 4. A sentença não comporta nenhum reparo, pois, em análise do feito, verifico que de fato, o regime de economia familiar resta descaracterizado, vez que a atividade rural desenvolvida pelo recorrente gera rendimentos além da mera subsistência familiar, proporcionando a aquisição de patrimônio . Consta, ademais, informação trazida pelo INSS na peça de defesa, de que o recorrente possui atividade empresarial no período de carência do benefício. 5. Portanto, o recorrente até pode possuir um imóvel rural e ali exercer alguma atividade, porém, o conjunto probatório revela que esta se assemelha a de um médio produtor rural, sendo descabido o reconhecimento da sua condição de segurado especial na forma como pleiteado na inicial. 6 . Ante o exposto, voto por CONHECER e NEGAR PROVIMENTO ao recurso. 7. DEFIRO a gratuidade da justiça. CONDENO o recorrente vencido ao pagamento de custas, cuja execução ficará suspensa, nos termos do art . 98, § 3º, do CPC. Deixo de condenar em honorários, pois não apresentadas as contrarrazões.

(TRF-1 – RECURSO CONTRA SENTENÇA DO JUIZADO CÍVEL: 10007771820234013000, Relator.: RICARDO BECKERATH DA SILVA LEITÃO, Data de Julgamento: 15/12/2023, PRIMEIRA TURMA RECURSAL – AC, Data de Publicação: PJe Publicação 15/12/2023 PJe Publicação 15/12/2023)

Há uma sinalização clara do Judiciário sobre como enxerga o segurado especial, o que se desconecta, totalmente, do novo papel do agricultor familiar na legislação, dada sua possibilidade maior de acesso ao crédito bancário, tão como seu papel como elemento motriz no desenvolvimento econômico.

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Desta feita, consideramos que deve haver uma releitura na interpretação sobre o segurado especial, atualizando o conceito com arrimo no novo papel do agricultor familiar e de seu papel no desenvolvimento econômico e como usuário de créditos e operações bancárias, devendo essa reflexão gerar aplicação prática no INSS e no Judiciário, reconhecendo o agricultor familiar como agente socioeconômico e não como mero agricultor de subsistência.

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