Problema não é o reconhecimento por foto, mas o modo de sua apresentação

O reconhecimento de suspeitos de crimes por fotografias, por si só, não diminui a confiabilidade do resultado. É preciso garantir que a forma de apresentação seja a mais adequada para permitir o procedimento sem sugestionar a vítima.

William Cecconello 2024
William Cecconello defendeu que fotografia é alternativa válida para o reconhecimento de suspeitos de crime – Gustavo Lima/STJ

Essa conclusão é do professor de Psicologia e coordenador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Cognição e Justiça, William Cecconello, que falou sobre o tema no Seminário Internacional Provas e Justiça Criminal, sediado pelo Superior Tribunal de Justiça na semana passada.

O uso de fotos para o procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal foi o que primeiro motivou uma virada jurisprudencial do STJ.

Em 2020, a corte concluiu que essa prática teria de ser vista como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não poderia servir para embasar condenações.

A jurisprudência evoluiu para anular provas em casos de total desrespeito ao artigo 226 do CPP, que traz um rito: a vítima deve descrever o suspeito e reconhecê-lo ao lado de outras pessoas que com ele tenham semelhança.

O tema motivou a criação de um grupo de trabalho no Conselho Nacional de Justiça, resultou na edição de uma resolução para orientar juízes e atores do sistema de Justiça e levou à publicação recente de um manual de procedimentos.

Dados do advogado e pesquisador David Metzker mostram que, neste ano, o STJ concedeu ordem em Habeas Corpus para anular provas por desrespeito ao artigo 226 do CPP em 174 processos. Deles, 141 tratam de reconhecimento feito por fotografia (81% do total).

Ao citar os dados no evento, a ministra Daniela Teixeira, do STJ, deu exemplos que passaram por seu gabinete em que o uso de fotografia prejudicou o procedimento. “Em um deles a fotografia era preta e branca. Era impossível de saber de quem se tratava.”

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Segundo Cecconelo, estudos científicos mostram que o uso de fotografia é alternativa válida para o reconhecimento de pessoas. O problema é a forma como essas imagens são apresentadas às vítimas.

 
Daniela Teixeira 2024
Daniela Teixeira citou casos em que a prova foi anulada porque o reconhecimento foi erroneamente feito por foto – Gustavo Lima/STJ

 

Show-up e álbum

Trata-se de uma questão de método. Um dos mais utilizados pelas polícias é o chamado show-up: a pessoa é apresentada isoladamente, por foto ou presencialmente, para que seja reconhecida de maneira informal.

Segundo o CNJ, essa apresentação isolada faz com que a vítima ou testemunha não tenha rostos para comparar, e essa falta de opções pode levá-la a reconhecer alguém inocente com muita confiança.

Outro método indevido é o uso do chamado álbum de suspeitos: um conjunto de fotografias de pessoas previamente investigadas que esteja nos arquivos policiais. Trata-se de um procedimento sugestivo e, portanto, parcial.

As pessoas apresentadas pela polícia, absolvidas ou não, tornam-se potenciais autoras do crime e ficam à mercê de um reconhecimento errôneo. A conduta também tem potencial para reforçar preconceitos e estereótipos raciais.

“O reconhecimento fotográfico não é o problema. O problema é usar álbum de suspeitos e show-up. É importante esclarecer isso, senão a gente elimina a foto e parece que resolveu o problema. Se, em vez de mostrar a foto, você apresentar a pessoa, o risco é o mesmo”, disse Cecconello.

“É importante que a gente olhe para os procedimentos, não só para o meio que é utilizado para o reconhecimento, porque senão talvez a gente não avance nessa questão”, acrescentou o pesquisador.

 
Evento reconhecimento pessoal
Anderson Giampaoli mostra fillers produzidos com ajuda de inteligência artificial – ConJur

 

Fillers

São vastos os exemplos de injustiças praticadas por meio do uso de álbuns ou show-ups. Eles são comuns porque permitem uma identificação rápida pela polícia, por vezes no momento da ocorrência, por meio do uso de aplicativos de mensagens ou redes sociais.

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Um dos casos mais graves é o de um homem negro do Rio de Janeiro que teve a foto retirada do Facebook e exibida em álbum de suspeitos da polícia. Ele foi reconhecido por 70 vítimas, foi alvo de 62 ações e condenado 11 vezes até o STJ determinar o reexame dos casos.

Presidente da Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, o desembargador Adalberto José Queiroz Telles de Camargo Aranha Filho destacou que esse tipo de conduta colabora para a ocorrência de erros judiciais.

“Mais grave é o reconhecimento fotográfico. Quando você apresenta uma foto, você induz a vítima. E quando apresenta várias, cria a possibilidade de eleger um suspeito errado.”

Responsável pela Secretaria de Cursos de Formação da Academia de Polícia Civil de São Paulo, o delegado de polícia Anderson Giampaoli destacou que o método show-up foi proibido em São Paulo e levantou uma reflexão: como e onde encontrar os fillers?

Fillers são as pessoas que aparecerão lado a lado com o suspeito, para o reconhecimento — seja pessoalmente ou por foto. Elas precisam ter semelhanças com a pessoa a ser reconhecida, sob risco de sugestionar a escolha da vítima.

Giampaoli apresentou no evento duas soluções tecnológicas possíveis. A primeira usa inteligência artificial para vasculhar os dados da polícia em busca de pessoas parecidas com o suspeito ou que se enquadrem na descrição dada pela vítima.

A segunda é usar a IA para criar imagens a partir do suspeito: pessoas parecidas, vestidas da mesma maneira, mas com semelhanças suficientes para dar à vítima a oportunidade de apontar quem, de fato, cometeu o crime.

“A reflexão que deixo é: diante dos avanços, a pergunta que São Paulo enfrenta é como encontrar e onde encontrar os fillers. São muitas iniciativas. Isso não está normatizado.”

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