O reconhecimento de suspeitos de crimes por fotografias, por si só, não diminui a confiabilidade do resultado. É preciso garantir que a forma de apresentação seja a mais adequada para permitir o procedimento sem sugestionar a vítima.
Essa conclusão é do professor de Psicologia e coordenador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Cognição e Justiça, William Cecconello, que falou sobre o tema no Seminário Internacional Provas e Justiça Criminal, sediado pelo Superior Tribunal de Justiça na semana passada.
O uso de fotos para o procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal foi o que primeiro motivou uma virada jurisprudencial do STJ.
Em 2020, a corte concluiu que essa prática teria de ser vista como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não poderia servir para embasar condenações.
A jurisprudência evoluiu para anular provas em casos de total desrespeito ao artigo 226 do CPP, que traz um rito: a vítima deve descrever o suspeito e reconhecê-lo ao lado de outras pessoas que com ele tenham semelhança.
O tema motivou a criação de um grupo de trabalho no Conselho Nacional de Justiça, resultou na edição de uma resolução para orientar juízes e atores do sistema de Justiça e levou à publicação recente de um manual de procedimentos.
Dados do advogado e pesquisador David Metzker mostram que, neste ano, o STJ concedeu ordem em Habeas Corpus para anular provas por desrespeito ao artigo 226 do CPP em 174 processos. Deles, 141 tratam de reconhecimento feito por fotografia (81% do total).
Ao citar os dados no evento, a ministra Daniela Teixeira, do STJ, deu exemplos que passaram por seu gabinete em que o uso de fotografia prejudicou o procedimento. “Em um deles a fotografia era preta e branca. Era impossível de saber de quem se tratava.”
Segundo Cecconelo, estudos científicos mostram que o uso de fotografia é alternativa válida para o reconhecimento de pessoas. O problema é a forma como essas imagens são apresentadas às vítimas.
Show-up e álbum
Trata-se de uma questão de método. Um dos mais utilizados pelas polícias é o chamado show-up: a pessoa é apresentada isoladamente, por foto ou presencialmente, para que seja reconhecida de maneira informal.
Segundo o CNJ, essa apresentação isolada faz com que a vítima ou testemunha não tenha rostos para comparar, e essa falta de opções pode levá-la a reconhecer alguém inocente com muita confiança.
Outro método indevido é o uso do chamado álbum de suspeitos: um conjunto de fotografias de pessoas previamente investigadas que esteja nos arquivos policiais. Trata-se de um procedimento sugestivo e, portanto, parcial.
As pessoas apresentadas pela polícia, absolvidas ou não, tornam-se potenciais autoras do crime e ficam à mercê de um reconhecimento errôneo. A conduta também tem potencial para reforçar preconceitos e estereótipos raciais.
“O reconhecimento fotográfico não é o problema. O problema é usar álbum de suspeitos e show-up. É importante esclarecer isso, senão a gente elimina a foto e parece que resolveu o problema. Se, em vez de mostrar a foto, você apresentar a pessoa, o risco é o mesmo”, disse Cecconello.
“É importante que a gente olhe para os procedimentos, não só para o meio que é utilizado para o reconhecimento, porque senão talvez a gente não avance nessa questão”, acrescentou o pesquisador.
Fillers
São vastos os exemplos de injustiças praticadas por meio do uso de álbuns ou show-ups. Eles são comuns porque permitem uma identificação rápida pela polícia, por vezes no momento da ocorrência, por meio do uso de aplicativos de mensagens ou redes sociais.
Um dos casos mais graves é o de um homem negro do Rio de Janeiro que teve a foto retirada do Facebook e exibida em álbum de suspeitos da polícia. Ele foi reconhecido por 70 vítimas, foi alvo de 62 ações e condenado 11 vezes até o STJ determinar o reexame dos casos.
Presidente da Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, o desembargador Adalberto José Queiroz Telles de Camargo Aranha Filho destacou que esse tipo de conduta colabora para a ocorrência de erros judiciais.
“Mais grave é o reconhecimento fotográfico. Quando você apresenta uma foto, você induz a vítima. E quando apresenta várias, cria a possibilidade de eleger um suspeito errado.”
Responsável pela Secretaria de Cursos de Formação da Academia de Polícia Civil de São Paulo, o delegado de polícia Anderson Giampaoli destacou que o método show-up foi proibido em São Paulo e levantou uma reflexão: como e onde encontrar os fillers?
Fillers são as pessoas que aparecerão lado a lado com o suspeito, para o reconhecimento — seja pessoalmente ou por foto. Elas precisam ter semelhanças com a pessoa a ser reconhecida, sob risco de sugestionar a escolha da vítima.
Giampaoli apresentou no evento duas soluções tecnológicas possíveis. A primeira usa inteligência artificial para vasculhar os dados da polícia em busca de pessoas parecidas com o suspeito ou que se enquadrem na descrição dada pela vítima.
A segunda é usar a IA para criar imagens a partir do suspeito: pessoas parecidas, vestidas da mesma maneira, mas com semelhanças suficientes para dar à vítima a oportunidade de apontar quem, de fato, cometeu o crime.
“A reflexão que deixo é: diante dos avanços, a pergunta que São Paulo enfrenta é como encontrar e onde encontrar os fillers. São muitas iniciativas. Isso não está normatizado.”
—
O post Problema não é o reconhecimento por foto, mas o modo de sua apresentação apareceu primeiro em Consultor Jurídico.