Propostas de governadores contra o crime são populistas e devem ser rejeitadas

Os governadores dos sete estados das regiões Sul e Sudeste apresentaram no último dia 27 de março quatro propostas para “enfrentamento qualificado à criminalidade”. Alteram o Código Penal (CP) e o Código de Processo Penal (CPP) e foram entregues ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, e aos presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco.

As mudanças legislativas apresentadas pelo Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Cosud) referem-se: audiência de custódia; abordagem policial; monitoração eletrônica e qualificadora por ordem ou a mando de organização ou associação criminosa.

Neste artigo, devido à complexidade dos temas, vamos nos ater apenas as propostas que se referem a audiência de custódia e a abordagem policial:

Da audiência de custódia

Segundo a exposição de motivos, a alteração legislativa visa “reduzir a prática reiterada de crimes graves e violentos por indivíduos que possuem perfil direcionado a constantes transgressões que, independentemente de figurarem no sistema policial e prisional, com várias prisões ou em cumprimento de pena, não são mantidos presos, bem como para qualificar e garantir maior efetividade às investigações policiais”.

Para nos prendermos a apenas um aspecto, a proposta de  alteração do artigo 310 do CPP recomenda “a conversão da prisão em flagrante em preventiva:

  1. haver indícios da prática reiterada de infrações penais pelo agente;
  2. ter a infração penal sido praticada com violência ou grave ameaça contra pessoa;
  3. ter o agente: já sido liberado em prévia audiência de custódia por outra infração penal, salvo se por ela tiver sido absolvido posteriormente; praticado a infração penal na pendência de inquérito ou ação penal; ou praticado a infração penal contra servidor público no exercício da função”.

A proposta aqui apresentada despreza que o próprio Código de Processo Penal em seu artigo 312 prevê hipóteses de decretação da prisão preventiva já bastante amplas e mais do que suficiente para o que se pretende.

De acordo com o citado artigo, desde que haja prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado a “prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal”.

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Divulgação

Governador de SP, Tarcísio de Freitas, em evento da Polícia Militar

Como se trata de prisão sem pena e, portanto, sem que tenha sido o agente condenado por sentença definitiva, a prisão provisória, seja ela preventiva ou de qualquer outra modalidade, deve sempre ser evitada e, tão somente, decretada ou mantida em casos de extrema necessidade posto que, como já dito alhures, ainda não foi o acusado condenado em definitivo.

Gostem ou não, está assentado que no sistema processual pátrio o status libertaris (estado de liberdade) é a regra e a prisão provisória a exceção. Nunca é demais lembrar que a Constituição (CR) abriga o princípio da presunção de inocência segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (artigo 5º, LVII).

Não é despiciendo salientar que, segundo dados da 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 o número de presos provisórios, aguardando julgamento, ultrapassa 210 mil do total de mais de 830 mil presos (terceira maior população carcerária do planeta).

Da abordagem policial

Aqui, de acordo com a exposição de motivos, as “Secretarias de Segurança Pública integrantes da estrutura dos Estados partícipes do Cosud visando a apresentar propostas efetivas quanto a sua temática de enfrentamento qualificado à criminalidade, aponta inovação legislativa a fim de estabelecer critérios objetivos para a busca pessoal e veicular, a fim de afastar decisões judiciais embasadas no entendimento recente do Superior Tribunal Justiça de que mera alegação genérica de ‘atitude suspeita’ é insuficiente para validar busca pessoal ou veicular”. “Para tanto, apresenta-se a temática da abordagem policial como ponto que demanda efetiva para a manutenção de tais indivíduos por mais tempo recolhidos nos estabelecimentos prisionais, impactando, incontestavelmente, no respaldo à efetiva atuação das forças policiais para a segurança da sociedade.”

A proposta apresentada altera o artigo 244 do Código Processual Penal, introduzindo o parágrafo único a fim de garantir a atuação legítima das forças policiais para manutenção e preservação da ordem pública, bem como respaldo jurídico aos agentes da segurança pública, conforme transcreve-se abaixo:

“Art. 244. (…) Parágrafo Único. Compreende-se como fundada suspeita situações circunstanciais como comportamento, tempo, lugar ou outras que despertem no policial uma percepção de ameaça às pessoas, ao patrimônio e à ordem pública, as quais deverão ser relatadas à autoridade policial quando do efetivo registro de ocorrência, vedada atuação com base em preconceito de qualquer natureza, notadamente de raça, origem étnica, gênero, orientação sexual ou culto.”

A proposta de introdução do referido parágrafo ao artigo 244 do CPP visa, como reconhece a exposição de motivos, “afastar decisões judiciais embasadas no entendimento recente do Superior Tribunal Justiça de que mera alegação genérica de ‘atitude suspeita’ é insuficiente para validar busca pessoal ou veicular”.

O Superior Tribunal de Justiça, em seu Informativo nº 735 de 9 de maio de 2022, destaca três razões principais — mais que satisfatória para afastar a pretensa proposta de alteração do artigo 244 do CPP — “para que se exijam elementos sólidos, objetivos e concretos para a realização de busca pessoal — vulgarmente conhecida como ‘dura’, ‘geral’, ‘revista’, ‘enquadro’ ou ‘baculejo’ —, além da intuição baseada no tirocínio policial:

  • a) evitar o uso excessivo desse expediente e, por consequência, a restrição desnecessária e abusiva dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e à liberdade (artigo 5º, caput, e X, da Constituição), porquanto, além de se tratar de conduta invasiva e constrangedora — mesmo se realizada com urbanidade, o que infelizmente nem sempre ocorre —, também implica a detenção do indivíduo, ainda que por breves instantes;
  • b) garantir a sindicabilidade da abordagem, isto é, permitir que tanto possa ser contrastada e questionada pelas partes, quanto ter sua validade controlada a posteriori por um terceiro imparcial (Poder Judiciário), o que se inviabiliza quando a medida tem por base apenas aspectos subjetivos, intangíveis e não demonstráveis;
  • c) evitar a repetição — ainda que nem sempre consciente — de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural”.
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As propostas apresentadas e aqui analisadas partem de uma equivocada e ultrapassada fórmula de que o recrudescimento da pena, a criação de novos tipos penais, a mitigação de direitos e garantias e o endurecimento da execução penal, levarão à redução da violência e da criminalidade.

A experiência legislativa demonstra, inequivocamente, que não há relação alguma entre leis que privilegiaram o endurecimento do sistema penal com a redução da criminalidade (vide a Lei 8.072/90 — crimes hediondos).

Pelo contrário, medidas baseadas na política-criminal da “lei e da ordem” e do “direito penal simbólico” tem levado ao encarceramento em massa, principalmente, dos mais vulneráveis e ao colapso do sistema penal. Não é demais martelar que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do planeta e a que mais cresce proporcionalmente.

Em alerta aos punitivistas, Tiago Joffily e Airton Gomes Braga já destacaram que “o problema é que a imaginada correlação entre encarceramento, de um lado, e redução da criminalidade, de outro, nunca foi demonstrada empiricamente. Ao contrário, as mais recentes e abrangentes pesquisas empíricas realizadas sobre o tema apontam para a inexistência de qualquer correlação direta entre esses dois fenômenos, havendo praticamente consenso entre os estudiosos, hoje, de que o aumento das taxas de encarceramento pouco ou nada contribui para a redução dos índices de criminalidade”[1]

No Brasil, as últimas décadas foram marcadas por uma verdadeira “inflação legislativa”. A nomorreia penal (Carrara) se deve à uma série de fatores, que vão desde o forte apelo popular, passando pela influência midiática e até a demagogia dos legisladores.

Lamentavelmente, o chamado “populismo penal” vem dominando a política-criminal atual. As leis penais no Brasil são elaboradas sem qualquer verificação prévia e empírica de seus verdadeiros impactos sociais e econômicos.

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Por tudo, entende-se que as propostas apresentadas pelos governadores para um ilusório enfrentamento da criminalidade, voltadas para o endurecimento das normas penal e processual penal, devem ser rejeitadas.

Fonte: Conjur

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