Recentes alterações legislativas reforçaram a importância da negociação e do uso de métodos adequados de soluções de conflitos para aprimoramento da recuperação do crédito e utilização ordenada e racional da via judicial.
Nesse sentido, a Lei nº 14.181/21 alterou o CDC (Código de Defesa do Consumidor — Lei nº 8.078/90) para esclarecer que um dos objetivos da Política Nacional das Relações de Consumo é a prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor. Para tal finalidade, instituiu por meio do artigo 104-A do CDC o procedimento coletivo de repactuação de dívidas, o qual objetiva a negociação e aprovação de plano de pagamento em audiência de conciliação, como etapa prévia e necessária ao procedimento subsequente, previsto no artigo 104-B, para revisão e integração dos contratos e repactuação de dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório.
Por outro lado, a Lei nº 14.112/20 inseriu a Seção II-A na Lei nº 11.101/05, declarando nos artigos 20-A a 20-D que a conciliação e a mediação devem ser incentivadas em qualquer grau de jurisdição, reconhecendo, assim, sua compatibilidade com os procedimentos de recuperação judicial e falência. Mais especificamente, em seu artigo 20-B, IV, previu a possibilidade de mediação em caráter antecedente ao ajuizamento de pedido de recuperação judicial, para negociação de dívidas, inclusive com suspensão das execuções e atos de constrição, antecipando em parte os efeitos do stay period, justamente para se fomentar a busca pela via autocompositiva como tentativa para se evitar utilização do procedimento de recuperação judicial, sabidamente mais oneroso.
As legislações supra referidas evidenciam a contribuição que a conciliação ou a mediação podem representar para situações notoriamente conflituosas existentes na recuperação de crédito de devedores com alto grau de endividamento. Isso porque, ao estruturarem e organizarem as negociações coletivas entre devedor e seus credores em ritos específicos, recorrendo a normas que visam assegurar transparência quanto à situação financeira do primeiro e que vinculam a participação dos credores a meios autocompositivos, proporcionam a estes últimos melhor dimensão sobre a capacidade global de pagamento do devedor e fomentam interlocução e maior aproximação entre ambos.
Contribuem, também, para trazer maior clareza quanto à perspectiva de recuperação do crédito, sobretudo quanto se aventa às consequências que serão coletivamente impostas a todos os credores em caso de fracasso das negociações, que é a possibilidade do procedimento subsequente de revisão e repactuação por plano judicial compulsório, no caso do superendividado, ou da falência, no caso do empresário ou da sociedade empresária. Desse modo, ao concentrarem em um único procedimento devedor e credores, além de reduzir os custos de manutenção e gerenciamento de diversos processos individuais, resultam, também, na substituição da lógica individual da recuperação do crédito em execuções individuais pela perspectiva coletiva.
Por fim, a busca da solução autocompositiva dos conflitos envolvendo o superendividado, seja pessoa física ou pessoa jurídica, também proporciona maior otimização e racionalização do uso do Poder Judiciário.
A situação do superendividamento — pessoa física ou jurídica — traz como consequência, em regra, a distribuição de diversas ações individuais no Poder Judiciário, seja para discussão e revisão de contratos, por parte do devedor, seja para cobrança de dívidas ou execuções de títulos, por parte dos credores. Em qualquer um dos cenários, o resultado esperado pode ser frustrante para todos os envolvidos, em virtude do tempo e da incerteza quanto à efetiva revisão do contrato ou ainda da também incerta recuperação do crédito nos procedimentos executivos individuais, em vista da insuficiência de ativos.
A concentração de todos esses conflitos — ou ao menos a maioria —, em um único procedimento, em momento inicial e a critério do devedor, proporciona utilização mais racional e focada da estrutura do Poder Judiciário, a qual estará comprometida para auxiliar as partes a encontrarem solução possível, ao invés de atuar de forma pulverizada em procedimentos individuais com resultados possivelmente frustrantes e insatisfatórios, dado ao alto grau de endividamento. Possui, também, função preventiva de futuros litígios, na medida em que concentra desde o momento inicial em um único procedimento todos os credores afetados, os quais, em caso de sucesso da via autocompositiva, não precisarão ajuizar ações individuais para a tutela de seus interesses.
Nesse contexto, evidencia-se a importância da atuação dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejucs), os quais tem por função a realização de sessões de conciliação e mediação no âmbito do Poder Judiciário.
A negociação coletiva inerente à recuperação de crédito de devedores com alto grau de endividamento, estruturada pelas legislações acima referidas, possui alguns desafios. Exige atenção à capacitação de conciliadores e mediadores, os quais necessitam treinamento específicos para atuação nessa espécie de litígios, e, também, organização própria da estrutura dos Cejuscs, que precisa ser capacitada e dimensionada para conseguir atender a essas demandas.
Para permitir a melhor organização e institucionalização da atuação dos Cejucs no âmbito da recuperação do crédito de devedores com alto grau de endividamento, foi publicado o Provimento CSM do E. TJSP nº 2717/23, o qual instituiu o “Núcleo de Conciliação e Mediação de Conflitos oriundos do Endividamento”, com o intuito de fomentar, o âmbito dos Cejucs, a maior capacitação pretendida para mediadores e conciliadores, e, também, iniciativas para aprimoramento da política pública de consumo no âmbito do Superendividado, conforme preceitua o artigo 104-A do CDC.
Para regulamentação do Núcleo de Conciliação e Mediação de Conflitos oriundos do Endividamento, foi editada a Portaria Nupemec TJ-SP nº 4/23, a qual congregou, na fase processual, o rito do superendividamento previsto no CDC, e, na fase pré processual, além das pessoas naturais superendividadas, também as pessoas jurídicas, em especial comerciantes individuais e microempresários.
O novo núcleo criado no âmbito do Nupemec do TJ-SP contribuirá para melhor organização da atuação dos Cejuscs na área do tratamento de conflitos envolvendo devedores com alto grau de endividamento, na medida em que permitirá a identificação de mediadores e conciliadores com interesse específico em atuar nessa área, e, desse modo, a sua orientação para capacitação focada nessa matéria. Além disso, permitirá, também, a padronização dos ritos procedimentais que serão adotados em cada um dos Cejuscs do Estado de São Paulo no tratamento dessa espécie de conflitos, mediante orientações do Nupemec divulgando boas práticas.
A importância da criação do Núcleo de Conciliação e Mediação de Conflitos oriundos do Endividamento transborda a simples organização das práticas cartorárias no âmbito do TJ-SP e a estruturação do Poder Judiciário em si nessa área. Isso porque, a sua existência se mostra crucial para que o Nupemec possa exercer suas competências de implementação da Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses nessa área, conforme preceitua o artigo 7º, I, II e VI da Resolução CNJ nº 125/10, na medida em que permite que sejam fomentadas parcerias com entes públicas e privados comprometido com esforços na adoção de práticas adequadas de solução de conflitos focadas nessa matéria.
Nesse contexto, será lançado no próximo dia 16 de outubro no TJ-SP o Programa Estadual de Combate ao Superendividamento, que objetiva divulgar a existência de estrutura própria do Poder Judiciário para atuação na área do tratamento dos conflitos envolvendo os devedores com alto grau de endividamento, buscando, assim, fomentar o comprometimento de entes públicos e privados na adesão aos esforços para a utilização da via autocompositiva como solução de litígios.
O objetivo precípuo de se lançar um Programa Estadual de Combate ao Superendividamento é divulgar aos cidadãos, especialmente aos credores e devedores em situação crônica de endividamento, que a utilização dos Cejucs para a adoção da lei de combate ao superendividamento não só encurtará o caminho para a solução de inadimplência e de quitação de valores devidos em favor dos credores, como permitirá uma aproximação entre os personagens desses conflitos econômicos, que poderão se comunicar diretamente durante a sessão de conciliação, intermediados por conciliadores habilitados pelo Nupemec e devidamente capacitados para atuarem nos conflitos de tratamento dos endividados — e para tanto, registre-se, já há aproximados quatrocentos conciliadores aptos para iniciar este trabalho a partir do lançamento do programa — bem como, diminuir os custos das infindáveis cobranças judiciais, restabelecendo a vida civil do devedor e devolvendo-lhe a dignidade pessoal e a viabilidade financeira, inclusive com a suspensão da negativação de seu nome, indo ao encontro da tão buscada efetividade na resolução do conflito.
Convém destacar que em grande parte das vezes, após o longo trâmite, o processo judicial não resulta em nada, pois devedores inadimplentes em situação crônica não contam com capital ou bens para solverem suas dívidas, ainda que condenados judicialmente. Assim, o que se vê no cenário da Justiça, após a condenação de devedores, é o não recebimento dos valores a que fazem jus os credores e, por via de consequência, a manutenção da situação do cidadão endividado e negativado, que não consegue, por esta razão, resgatar melhores condições de vida e de sua dignidade humana, por não lograr atingir a sua solvência financeira. Ou seja, permanece condenado e devedor.
A conciliação realizada com qualidade, sob a supervisão do Poder Judiciário pela via dos Cejuscs, com a capacitação dos conciliadores, bem como, com o preparo dos demais profissionais que atuarão na audiência, qual seja, prepostos e advogados que compareçam tendo absoluto conhecimento do conflito em si, além das peculiaridades dos trabalhos consensuais, resultará em absoluta diferença em relação ao resultado de um processo judicial com decisão imposta.
Aliás, é oportuno esclarecer que as conciliações poderão ocorrer tanto nos casos em que as dívidas já tenham sido judicializadas, suspendendo-se o processo em qualquer fase em que ele se encontre, como e, principalmente, ser utilizada a chamada fase pré processual prevista na Lei de Mediação e na legislação processual, a partir da qual poderá o devedor formalizar o seu pedido, inclusive virtualmente (será disponibilizado um simplificado formulário digital para preenchimento), em face do que serão convidados todos os seus credores ali indicados, através de convite virtual e rápido, para que todos compareçam à audiência de conciliação que será agendada pelo Cejusc competente (territorialmente, pelo endereço do devedor), audiência na qual serão intermediados pelo conciliador habilitado. Havendo êxito na conciliação, o acordo será formalizado e homologado pelo Juiz do Cejusc em questão.
O lançamento oficial do Programa Estadual de Combate ao Superendividamento, com a presença do i. Presidente do Tribunal de Justiça, e de diversos entes da sociedade civil nas áreas público e privada, advogados, representantes de setores financeiros, empresariais e comerciais, além de representantes do Ministério Público, da OAB, da Defensoria Pública e de instituições de defesa do consumidor, demonstra a importância do projeto pioneiro do Tribunal de Justiça de São Paulo, que concederá a chance à sociedade de fazer uso das regras dessa importante e ousada lei, em vigência desde 2021, mas ainda timidamente utilizada, para que se evite que a oportuna e necessária legislação caia no esquecimento pelo desuso, e se torne mais uma a fazer parte do estranho fenômeno brasileiro da lei que não pegou.
Por isso o Núcleo de Conciliação do Tribunal de Justiça Paulista está capitaneando esse urgente programa de trabalho focado na chamada desjudicialização de conflitos e na busca da recuperação de crédito com a consequente retirada do cidadão superendividado dessa dificílima situação, aproximando-o, conjuntamente a todos os credores, para a solução das suas dívidas e tratamento financeiro vindouro, o que também fomentará a economia em vista do intolerável número de mais de setenta milhões de brasileiros endividados, e persuadirá a sociedade a adotar, cada vez mais, os melhores métodos de solução de conflitos que são os consensuais.
Fonte: Conjur