Regimento interno do STF e ‘coletividade-vítima’: hora da legitimação penal subsidiária?

Frente à eventual inércia, a legitimação penal “isolada” do procurador-geral da República (PGR) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) vem sendo apontada como uma questão a ser desafiada democraticamente.

Nesse sentido, Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay) denunciou que a legitimação isolada do PGR nesses casos de inação decorre de um “poder imperial” e, por isso, indica a necessidade de alteração constitucional para fixar os legitimados frente à referida omissão junto ao STF. Isso porque, embora a ação penal privada seja garantia constitucional (artigo 5º, LIX), a teoria aponta dúvidas sobre a legitimidade subsidiária diante da prática de crimes com “vítima-coletiva” — como nos crimes contra o Estado democrático de direito, a saúde pública e a economia popular.

Neste ponto, cresce ainda mais em importância o movimento de atualização do Regimento Interno do STF (cuja comissão integrada por notáveis juristas é regida pela Portaria nº 249, de 27/12/2024), o qual pode contribuir dando visibilidade regimental ao tema. Isso porque o atual regimento interno já possui regras relacionadas à ação penal privada. Com isso, a adaptação terminológica para “ação penal subsidiária traria redação atual, pois alcançaria, como se verá, os múltiplos legitimados subsidiários no interesse da coletividade-vítima.

Outrossim, antes de prosseguir, registra-se que, em outras sedes jurisdicionais, o sistema processual penal prevê saídas “interna corporis” em hipóteses de “ações penais públicas subsidiárias da pública” [1] nas quais a legitimação subsidiária recai sobre o próprio Ministério Público: (1) Decreto-Lei nº 201/1967 (artigo 2º, 1º); (2) Lei nº 7.492/1986 (artigo 27); (3) Código Eleitoral (artigo 357, §§ 3º e 4º).

Com essa visão geral, perguntar-se: existiria um amplo rol de legitimados penais subsidiários extraídos diretamente da ordem jurídica brasileiraA reposta é sim e, contudo, isso parece permanecer silenciado nos debates profissionais e acadêmicos.

Para responder à questão processual penal é, antes de tudo, imprescindível sair do direito processual penal e ir além, em outras fronteiras, para, em seguida, realizar um inevitável retorno a ele — ou, dito poeticamente: “É preciso sair da ilha para ver a ilha” (José Saramago).

Soluções normativas à subrepresentação coletiva

Mais precisamente, é preciso ir até o “mar” do direito processual coletivo, no qual a “vulnerabilidade organizacional” [2], em sua dimensão coletiva, é vista e tratada. Já na década de 1970, Cappelletti e Garth [3] notaram o problema da subrepresentação de interesses difusos e afins, indicando que as soluções ao redor do mundo seriam de matriz privada ou pública. Como se sabe, as normas do Brasil (em especial a Lei nº 7.347/1985, a Lei da Ação Civil Pública — LACP) seguiram um “modelo misto, atribuindo legitimação às instituições públicas e aos particulares.

Dito isso, a referida expedição caminha até o direito do consumidor e a importante Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor — CDC), na qual o supracitado “modelo misto” foi adotado (artigo 82), distribuindo legitimação coletiva entre entes públicos e privados.

Com efeito, o CDC é uma das mais importantes legislações do microssistema de processo coletivo, incidindo em diálogo com outras normas (artigo 117). E, nesse código, a coletividade-vítima não é uma ilustre desconhecida — ao contrário, encontra fundamento normativo direto, seja pelo viés do “consumidor-vítima” (artigo 17) e da própria coletividade-consumidora (artigo 2º, parágrafo único). Assim, o advento do CDC fortaleceu e viabilizou sobremaneira a defesa das coletividades, em especial, das coletividades-vítimas.

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Além da centralidade ocupada pelo CDC no microssistema de processo coletivo, é preciso convir que o Código possui dimensões penais (há crimes previstos entre os artigos 61-79) e até mesmo processuais penais (artigo 80) — sobre a qual cabe um olhar diferenciado.

Ilustre esquecido artigo 80 do CDC: modelo misto de legitimação subsidiária?

O artigo 80 do CDC é uma regra de direito processual penal muito esquecida, o que não combina com sua potencial importância. Isso porque tal artigo criou um rol de legitimados subsidiários à ação penal em relação aos crimes contra o consumidor. Nesse passo, o CDC remete essa legitimação subsidiária aos incisos III e IV do seu artigo 82 — ou seja, entes públicos e associações privadas.

Em outras palavras, para fins de legitimação subsidiária em ação penal, o CDC adotou um “modelo misto” para correção do problema da subrepresentação de interesses penais da coletividade-consumidora. Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou a legitimação coletiva decorrente do inciso III do artigo 82 do CDC, por exemplo, para Comissões das Assembleias Legislativas (AgRg no REsp nº 928.888/RJ [4]) e à Defensoria Pública (REsp nº 555.111/RJ [5]) — criando óbvios reflexos sobre o artigo 80 do CDC.

Nesse ponto, especialmente em relação à Fazenda Pública e à Defensoria Pública como legitimadas penais subsidiárias, o pioneirismo de Franklyn Roger Alves Silva deve ser destacado e inspirar a presente reflexão.

Superando os limites do CDC e mirando a “comunidade-vítima”

A esta altura, o(a) leitor(a) já compreendeu que existe regra, direta e óbvia, estabelecendo um rol de legitimados subsidiários à ação penal pública. Contudo, também não deve ter passado silenciosamente se tratar de regra voltada aos crimes contra o consumidor. Nesse contexto, vale a crítica de Esteves [6] e Roger [7]: “Não pode a relação de consumo ter uma proteção jurídica mais intensa do que outros bens jurídicos ocupantes do mesmo pedestal de proteção estatal.”

Nesse passo, para além das relações de consumo, Franklyn Roger agregou como fundamento à legitimidade penal subsidiária da Defensoria Pública a LC nº 80/1994 e a responsabilidade constitucional expressa da instituição para a promoção de direitos humanos. Nessa senda, agrega-se também o conceito de “obrigações processuais penais positivas em relação à proteção das vítimas, as quais não se aplicam somente ao Ministério Público, mas ao Estado Brasileiro como um todo.

Mais tarde, foram trazidos, expressamente, elementos normativos integradores[8] do Microssistema de Processo Coletivo com a proteção penal da coletividade-vítima. Desse modo, os artigos 21 da LACP e 117 do CDC passam não somente a expandir a aplicação das regras do CDC para outros direitos coletivos, como também para alcançar as legitimidades penais decorrentes do artigo 80 c/c artigo 82, inc. III e IV, desse Código.

Sem olvidar o atuar da Defensoria Pública como “defensora do grupo” [9] e em favor da comunidade de vítimas [10][11] (seja como desdobramento da promoção dos direitos humanos ou a partir da cláusula de extensão do artigo 117 do CDC), há legitimidade penal subsidiária de outros órgãos públicos despersonalizados [12] (artigo 82, III), de associações (artigo 82, IV) e das comunidades indígenas (artigo 232). Nessa senda, há um rol de legitimados em prol da coletividade-vítima [13], potenciais legitimados a acionar o STF frente à inércia ministerial.

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Receio da invasão ‘punivista’

O exercício de eventuais papéis de persecução penal pela Defensoria Pública incomoda o “senso comum” jurídico. Ainda assim, diante de regras positivadas e do papel protetivo da instituição, a questão deve ser refletida seriamente e sem corporativismo. Neste ponto, o debate “Silva vs. Cacicedo”, trouxe contrapontos à legitimação penal da Defensoria Pública [14].

Em verdade, a reflexão de Cacicedo é essencial para que a legitimação penal supletiva e subsidiária não se torne mera reprodução de um sistema penal abusivo; igualmente, a pesquisa de Roger Silva apresenta ferramenta importante para o combate à invisibilidade e à violação dos direitos da coletividade-vítima — guardando certa afinidade com as preocupações emitidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “Favela Nova Brasília”, quanto à questão da participação da vítima.

Obviamente, poder-se-ia questionar a presença de membros da Defensoria Pública nos dois polos da ação penal. Contudo, nesse caso, trata-se de representação do interesses da comunidade vítima, não havendo muita distinção da situação de existirem dois advogados (vinculados à OAB, portanto) atuando em polos distintos ou dois membros do Ministério Público ocupando posições processuais distintas ao mesmo tempo (Custos Iuris e parte-recorrente), guardadas as distinções.

Ademais, existem normas autorizadoras da atuação colidente de membros defensoriais (LC nº 80/1994, artigo 4º-A, V), reforçadas por precedentes (STJ, RMS 45.793/SC), tudo em diálogo com as regras que atribuem à instituição a defesa dos direitos humanos das vítimas (individuais ou coletivas) — em especial: LC nº 80/1994, artigo 4º, XI, XV e XVIII e o próprio artigo 134 da CRFB/1988.

O que impede o STF?

Os fundamentos normativos de uma legitimidade supletiva, subsidiária e excepcional de instituições públicas, associações privadas e comunidades indígenas em prol do interesse das “coletividades vítimas” foram expostos. E o que impediria o STF de (a)firmar tais legitimidades? Para o jurista Lenio Streck, a ação penal subsidiária seria pouco utilizada nesse cenário por desconfiança social e porque o sistema se autoprotege, inobstante seja um instrumento de controle democrático corretivo.

Para além de tais problemas, é necessário alcançar os ministros do STF. Ou seja, os pretensos legitimados devem propor tais ações, quando então serão decididos alguns pontos cruciais, tais como: o alcance da regra do artigo 80 do CDC a outras categorias de crimes, desde as regras de extensão (LACP, artigo 21 e CDC, artigo 117); a adoção do modelo subsidiário público, privado ou misto [15]; os contornos processuais penais da Defensoria Pública enquanto garantia constitucional dos direitos humanos, inclusive das vítimas, especialmente a partir da EC nº 80/2014.

Embora longe de definir a questão, o movimento de atualização do Regimento Interno do STF pode(ria) representar um farol a iluminar debates atualizados, inclusive garantindo a intervenção ministerial nas situações aqui discutidas. E, se for validada mais à frente pelo STF, a legitimidade penal subsidiária não deverá ser vista como substituta da importante legitimação do PGR, mas, sim, vista como uma garantia democrática eventual, subsidiária e excepcional para evitar a violação massiva de direitos humanos das coletividades-vítimas.

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[1] SILVA, Franklyn Roger Alves. Legitimação Não Tradicional da Ação Penal – A Tutela de Bens Jurídicos por Outras Instituições Públicas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 3, n. 1, p. 367-404.

[2] Sobre Vulnerabilidade e Processo, conferir especialmente a seguinte pioneira obra: TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

[3] CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução: Ellen Gracie Norhfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

[4] STJ, AgRg no REsp n. 928.888/RJ, rel. Min. Sérgio Kukina, 1ª Turma, j. 16/5/2013, DJe 21/5/2013.

[5] STJ, REsp n. 555.111/RJ, rel. Min. Castro Filho, 3ª Turma, j. 5/9/2006, DJ 18/12/2006, p. 363

[6] ESTEVES, Diogo. SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios institucionais da Defensoria Pública. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 471

[7] SILVA, Franklyn Roger Alves. Legitimação Não Tradicional da Ação Penal – A Tutela de Bens Jurídicos por Outras Instituições Públicas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 396.

[8] CASAS MAIA, Maurilio. Novas intervenções da Defensoria Pública: Custos Vulnerabilis e o Excepcional Amicus Communitatis no Direito Processual Penal. In: SILVA, Franklyn Roger Alves. O Processo Penal contemporâneo e a perspectiva da Defensoria Pública. Belo Horizonte: CEI, 2020, p. 125-159.

[9] ZANETI JR., Hermes. CASAS MAIA, Maurilio. A Defensoria Pública e os grupos vulneráveis em colisão de interesses: reflexões sobre o “defensor público do grupo” (Defensor Publicus Coetus). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 1070, Dez 2024, p. 47-85.

[10] A criação da expressão é de Daniel Gerhard, sendo a publicação mais antiga: GERHARD, Daniel. CASAS MAIA, Maurilio. O Defensor-hermes, o amicus communitas: a representação democrática dos necessitados de inclusão discursiva. Informativo Jurídico In Consulex, Brasília, v. 22, p. 11-12, 1º jun. 2015.

[11] Com ênfase na proteção dos direitos humanos: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. GERHARD, Daniel. MAIA, Maurilio Casas. A Defensoria Pública como “amiga da comunidade” (amicus communitatis) e a “Comunidade amiga” (amicus communitas): a representatividade comunitária na colisão de comunidades vulneráveis e no combate à sub-representatividade. In: AKERMAN, William; e MAIA, Maurilio Casas. Novo perfil de atuação da Defensoria Pública. Brasília: Sobredireito, 2023. p. 253.

[12] Sobre essas figuras: UZEDA, Carolina. PANTOJA, Fernanda Medina. FARIA, Marcela Kohlbach de. TEMER, Sofia. Entes organizados despersonalizados e capacidade de ser parte: grupos e associações de fato em juízo (Art. 75, IX, do CPC). Civil Procedure Review, v. 12, n. 1, p. 165-205, 2021.

[13] Para outra discussão e abordagem da “vítima coletiva”, conferir: MENDES, Soraia da RosaProcesso Penal Feminista. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 99 ss.

[14] CACICEDO, Patrick. Crítica científica de “Legitimação não tradicional da ação penal”: Defensoria Pública e a tutela de direitos por meio do direito penal – uma recusa. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 3, n. 1, 407-416, Mar. 2017.

[15] No caso do HC coletivo, por exemplo, o STF, no HC n. 143.641/SP, parece ter se inclinado a um modelo público, aplicando a analogia para permitir a sucessão ativa pela DPU, à luz da Lei do Mandado de Injunção, Lei n. 13.300/2016.

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