Regulação no comércio exterior: até onde deve ir a liberdade contratual?

Em tempos de greve da Receita Federal e seus severos reflexos sobre o comércio exterior, mais do que os tempos de despacho e a preocupação com retenções indevidas, é comum que velhos temas voltem ao debate. É o caso, por exemplo, dos altos custos relacionados a cobranças de armazenagem, demurrage e outras taxas e despesas relacionadas.

Nosso intuito em abordar essas questões não é o de trazer conceitos, tampouco é de reacender disputas sobre a abusividade de certas cobranças. O que se busca é discutir qual seria a perspectiva mais adequada para essas questões. São eles temas de direito privado e, portanto, devem se restringir ao olhar concorrencial e contratual do Direito Marítimo e Portuário? Ou se, no fundo, trata-se de questão aduaneira que, como tal, merece um maior cuidado e limitação por parte dos órgãos governamentais?

Aduaneiro, Marítimo ou Portuário?

Oportuno distinguir, de forma breve e sucinta, as principais diferenças entre esses ramos do Direito. Afinal, eles costumam ser agrupados como disciplinas congêneres no âmbito acadêmico por terem, direta ou indiretamente, o comércio exterior como pano de fundo.

Em que pese o “cenário comum” – principalmente no Brasil, em que aproximadamente 90% do total comercializado com o exterior é escoado pela via marítima [1] – existem diferenças significativas entre essas áreas e cujo desconhecimento não apenas dificulta o aprimoramento do conteúdo técnico, mas acaba também refletindo em vácuos de poder e regulação relevantes.

Partindo-se de uma visão pragmática, cabe iniciar as distinções pelo Direito Aduaneiro, foco principal desta coluna, e que é um ramo do Direito Público que se debruça sobre as regras relativas à operacionalização e regulamentação da importação e da exportação de mercadorias, principalmente sob o ponto de vista do controle e da fiscalização das fronteiras nacionais [2].

Já o Direito Marítimo trata das normas que regem as atividades marítimas, envolvendo o transporte de mercadorias e de pessoas e todas as relações jurídicas que ocorrem nos mares e oceanos e, portanto, possui foco nas relações privadas e comerciais que ocorrem neste contexto.

Por fim, o Direito Portuário disciplina as operações que ocorrem dentro dos portos, como a gestão das atividades portuárias, o trabalho realizado nessas instalações e as atribuições dos operadores portuários.

Esses dois últimos ramos têm seu surgimento e muitas de suas premissas derivadas do Direito Público, mas se tratam de disciplinas jurídicas que se desenvolvem no mundo privado e, portanto, possuem grande proximidade com questões civis e contratuais. Talvez por isso sejam comumente chamados de “primos ricos” do Direito Aduaneiro, visto que a liberdade contratual e a existência de regulamentação menos severa fazem com que as quantias envolvidas em atividades e, consequentemente, nas disputas, costumem ser consideráveis.

Autoridades envolvidas

Em termos práticos, o que se verifica é que os temas considerados como “aduaneiros” ou diretamente relacionados à operacionalização do comércio exterior costumam ser direcionados para a competência da Aduana (RFB) ou da Secex. Por sua vez, assuntos voltados à infraestrutura e logística de comércio exterior são normalmente conduzidos por outras autoridades, com destaque para a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).

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Essa divisão, que já vem de muito tempo, possui diversas implicações. Mais do que isso: impõe pesos e medidas completamente distintas para a condução de assuntos e políticas que deveriam, em grande parte, andarem juntas e serem abordadas com um olhar comum.

Enquanto o comércio exterior do mundo aduaneiro é discutido e gerido com vistas ao aumento da transparência e de simplificações e reduções de burocracias que tornem as operações compatíveis e previsíveis independentemente do porto de entrada ou saída em que ocorram, o comércio exterior do mundo portuário e marítimo parece possuir uma filosofia distinta.

Não queremos, de maneira nenhuma, insinuar que as autoridades que gerenciam o universo marítimo e portuário não busquem transparência e previsibilidade, assim como não podemos exaltar as autoridades aduaneiras por efetivamente promoverem e aplicarem esses relevantes princípios, já que o caminho rumo ao sucesso é longo e bastante tortuoso.

Mas é fato que o Direito Aduaneiro possui um modelo de aplicação em que as regras devem ser as mesmas para todos os envolvidos, independente de onde estejam e, com isso, tem-se (ao menos em teoria) uma base de equidade em termos de direitos e deveres de cada interveniente ou operador envolvido.

Já o Portuário e Marítimo, por serem pautados no direito privado, acabam priorizando a bandeira da liberdade contratual e da autorregulação do mercado. Além de que foram sendo construídos e revisados gradativamente ao longo das décadas, à medida que o comércio exterior e às necessidades de infraestrutura e logísticas cresciam.

O resultado dessa expansão passiva, por assim dizer, foi a utilização e a coexistência de diferentes modelos, contratos e estruturas de concessão e permissão, fazendo com que as empresas privadas envolvidas na mesma atividade, mas autorizadas em momentos diversos e por contratos específicos, nem sempre tivesses as mesmas obrigações e/ou cobrassem taxas equivalentes em suas atividades.

Essa falta de uniformidade, à longo de prazo, se tornou um problema. Visto que além dos usuários não poderem contar com os mesmos recursos e funcionalidades a depender do ponto de entrada e saída a que estivessem sujeitos, o valor a ser pago pelos serviços essenciais a serem prestados também poderia variar de forma significativa.

O caso da Antaq

Por exemplo, em 2023, a Antaq apresentou resultado de estudo que visava avaliar os custos imputados a importadores certificados no Programa Operador Econômico Autorizado (OEA) e que usufruíam do chamado despacho sobre as águas. O resultado apresentado buscou comparar os preços praticados por 9 diferentes terminais, localizados em diferentes regiões, incluindo AM, BA, PR, SP, SC, RJ e PE.

O que mais chamou a atenção foi a significativa variação dos preços praticados por esses terminais quanto à prestação de serviços análogos, relativos ao desembarque, movimentação e entrega de mercadorias desembaraçadas sobre águas. Enquanto o menor preço avaliado foi o cobrado por um terminal em Manaus, com valor de R$ 1.257,00 o maior preço identificado se deu em Santos, chegando a R$ 4.137,79. Ou seja, dentre terminais e atividades comparados pelo estudo, verificou-se uma variação de 329%.

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Em que pese a existência de esforços contínuos da Antaq para buscar coibir práticas abusivas e lesivas à concorrência, existindo inclusive iniciativas em parceria com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), como o Memorando de Entendimentos nº 01/2021 relativo à análise de cobrança sobre Serviços de Segregação e Entrega de Cargas (SSE), é fato que prevalece neste universo regras em prol da livre concorrência e da contratualidade, fazendo com que o lucro de concessionárias e permissionárias – altamente variável e muitas vezes arbitrário – seja um fator de impacto ao custo total da importação.

Sabe-se que o tema de concessão e permissão de serviços públicos é complexo, visto que o Estado espera que os privados assumam função pública de forma muito mais eficiente do que era feito sob a gestão governamental e tragam investimentos e modernizações para o setor, ao passo que os usuários sempre exigirão que a contraprestação seja mínima e controlada.

Trata-se de uma equação delicada, mas que somente pode ser devidamente balanceada se houver, por um lado, preocupação real com os custos envolvidos e com a necessidade de que os prestadores dos serviços sejam remunerados de forma adequada (nem menos, nem mais do que o aceitável) e que os valores cobrados não sejam abusivos ou altos o suficiente para provocarem distorções sobre os preços de importação e exportação efetivamente praticados.

Como resolver?

O discurso parece ser claro, mas e a prática? Sabemos que os problemas do comércio exterior são complexos e não cabem em um mero artigo de coluna.

Dito isso, artigos como o ora publicado podem não possuir extensão e envergadura para “terminar” um tema, mas possuem, certamente, espaço para lançar ideias e provocações que possam abrir debates sérios, relevantes e possíveis.

Na coluna de 09/08/2022, escrevi sobre Onde fica o Direito Aduaneiro na discussão sobre o THC2? e defendi que Antaq, Cade e TCU esqueciam que o tema, embora enquadrado sob o véu marítimo-portuário, possuía significativos aspectos aduaneiros e, portanto, deveria ser avaliado também sob o prisma das regras das regras da OMC, em especial, do Acordo sobre a Facilitação do Comércio (Decreto nº 9.326/2018) no que se referia a proibição de que as taxas relacionadas a importação fossem arbitrárias e não guardassem relação com o custo dos serviços efetivamente prestados.

Passados quase três anos, a sugestão de que a precificação de serviços essenciais ao comércio exterior e sobre os quais não há forma efetiva de ingerência dos usuários na negociação seja balizada pelo custo do que for efetivamente prestado ainda parece válida.

Afinal, o momento atual engloba diversas situações preocupantes: (1) a greve dos auditores da RFB, que contribui para o aumento dos casos de cobrança de demurrage e taxas extras de armazenagem; (2) a existência de mais de 20 mil ações tramitando no Poder Judiciário discutindo a abusividade do modelo vigente de sobrestadia; (3)  a validação de cobranças de demurrage que superam o próprio valor da carga transportada; e (4) o fato do governo ainda defender que não existem fundamentos sólidos para a imposição, regulamentação e monitoramento dos valores, condições e práticas relativas a esses temas[3].

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Alguém já se questionou por que a Antaq é convidada para eventos de comércio exterior, aduaneiros inclusive, que vem negociando participação dentro do Programa OEA-Integrado, mas que nunca ocupou assento no Comitê Nacional de Facilitação do Comércio (Confac)? Que embora diversas agências regulatórias façam parte da lista de intervenientes do comércio exterior, como Anvisa, Anatel, Ancine e ANP e que, em tal condição, sejam chamadas a cooperar com as regras e diretrizes voltadas à facilitação do comércio, da transparência e da redução dos custos de fronteiras, isso não ocorre com a Antaq?

O que isso quer dizer?

Esses questionamentos e preocupações não são uma crítica ao modelo de gestão da Antaq e de outros órgãos envolvidos em seu universo. Sabe-se o quanto a Agência trabalha, dialoga e busca construir pontes com o setor privado em prol de um melhor ambiente regulatório – além de contar com equipe técnica e atualizada. O ponto é que isso é feito de forma completamente isolada dos demais órgãos que interferem no comércio exterior e, consequentemente, sob premissas e regras que, muitas vezes, não estão alinhadas ao que o mundo aduaneiro necessita.

Se o foco de qualquer gestão regulatória, independentemente do assunto, é garantir soluções coordenadas, transparentes e voltadas ao interesse público, torna-se indispensável garantir que todos os elos da cadeia, públicos e privados, estejam alinhados e engajados em torno de princípios, estruturas e objetivos comuns.

O que, por que e para que se regula? No caso do comércio exterior, verifica-se que essas respostas estão longe de serem respondidas de forma coerente e uníssona. E, até que todos os entes envolvidos passem se comunicar e a alinhar condutas e objetivos de forma clara, avanços concretos continuarão a ser apenas promessas.


[1] De acordo com dados oficiais do Comextat, em 2024, 88% do valor em USD comercializado com o exterior foi escoado pela via marítima, ao passo que, quando o parâmetro é peso (kg), o total movido pela via marítima sobre para 98% do total do comércio exterior.

[2] Para discussões mais profundas e versem sobre autonomia do Direito Aduaneiro, recomenda-se as seguintes obras: BASALDÚA, Ricardo. Introduccion al Derecho Aduanero. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2008; BERR, Claude. Introduction au Droit Douanier. Paris: Economica, 2008; PONCE, Andrés. Derecho Aduanero Mexicano. Ciudad de Mexico: ISEF, 2002; e COTTER, Juan. Derecho Aduanero y Comercio Internacional. Buenos Aires: IARA, 2018.

[3] A exemplo do que restou decidido no Acórdão ANTAQ n. 120/2023.

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