Royalties decorrentes da licença da propriedade intelectual em contratos mistos

Repercussões tributárias da não segregação de royalties

Comumente, os bens da propriedade intelectual são ofertados em conjunto com uma série de outras utilidades, não raras vezes mediante único contrato e único pagamento, que se submetem a regimes tributários diferenciados.

Portanto, é relevante identificar quais os critérios de individualização dos royalties pagos em contraprestação à licença da propriedade intelectual frente a outros valores que são submetidos a regimes tributários diferenciados.

Pretende-se, com isso, mensurar os royalties devidos em operações que dão ensejo a essa modalidade de rendimentos e estabelecer parâmetros para aferir os tributos que incidem sobre royalties, que utilizem essa medida para apuração de créditos ou que tenham sua apuração determinada em qualquer medida por essa cifra.

Isso porque a legislação tributária federal impõe segregar as repercussões econômicas de cada uma das utilidades fornecidas em contratos mistos.

A orientação vigente no âmbito da Receita Federal, inclusive, é a de que, se o contrato não for suficientemente claro para individualizar os componentes (prestação de serviços, licença de bens intangíveis etc.), segregando royalties dos demais rendimentos pagos, toda a base será considerada para uma finalidade ou outra.

Para incidência da Contribuição ao PIS e da Cofins sobre os rendimentos pela prestação de serviços, o entendimento é reiterado em diversas manifestações fazendárias.

A não segregação dos rendimentos se reflete não somente na incidência dessas contribuições sociais, mas também na determinação do regime aplicável das contribuições e, no caso do regime não cumulativo, na apuração dos créditos devidos.

O artigo 10, XV, c/c §2°, da Lei n° 10.833/2003, estabelece que a tributação da receita decorrente do licenciamento de software nacional deve mantida no regime cumulativo da Cofins. Nos termos do artigo 15, V, o mesmo se aplica à Contribuição ao PIS.

Do mesmo modo, tem-se a inviabilidade da apuração dos créditos devidos, pois as despesas somente poderiam ser deduzidas na proporção da receita submetida ao regime não cumulativo, nos termos do §§ 7° e 8°, II, do artigo 3°, das Leis n° 10.637/2002 e n° 10.833/2003.

O tema repercute, ainda, na determinação das regras aplicáveis para evitar a bitributação da renda. Diversas são as repercussões no âmbito da tributação internacional, como a impossibilidade de aplicação adequada das cláusulas de tax sparing e matching credit, geralmente, utilizadas pelo Brasil em relação aos dividendos, juros e royalties.

Consequências são verificadas ainda na definição da alíquota do IRRF e na apuração das deduções do IRPJ.

Nos termos do artigo 2°, da Lei n° 10.168/2000, fica reduzida para 15% a alíquota do IRRF incidente sobre as importâncias pagas, creditadas, entregues, empregadas ou remetidas ao exterior a título de remuneração de serviços de assistência administrativa e semelhante, que sofram a incidência da Cide-Remessas. Ademais, de acordo com o parágrafo único do artigo 44 da Lei n° 14.596/2023, as despesas com royalties não são dedutíveis da apuração do lucro real em determinadas circunstâncias.

O problema se revela, ainda, na aplicação das regras de preço de transferência. Com a revogação § 9º do artigo 18 da Lei nº 9.430/1996, passa-se a aplicar tais regras às transações que envolvem os pagamentos de royalties em transações controladas pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil e partes relacionadas no exterior.

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Outra repercussão está na possibilidade ou não de aderir ao regime da CPRB e do método de apuração dessa contribuição. O artigo 7°, I, da Lei n° 12.456/2011, com a redação dada pela Lei n° 13.670/2018, permite que as empresas que atuam no licenciamento de programas de computação (hipótese do § 4°, V, da Lei n° 11.774/2008) adiram ao regime especial da CPRB – evidentemente, submetendo a receita dessa atividade a esse regime.

Verifica-se, ainda, a relevância do tema na incidência ou não do II e do IPI. O artigo 1° do Decreto-Lei n° 37/1966, em consonância com o artigo 19 do CTN, estabelece que o II incide sobre a importação de produtos estrangeiros. O artigo 131 do Regulamento do IPI, aprovado pelo Decreto nº 4.544/2002 prevê que a base de cálculo do IPI será o valor total da operação de que decorrer a saída do estabelecimento industrial ou equiparado a industrial.

Ainda, o Artigo VII do Acordo de Valoração Aduaneira, promulgado pelo Decreto nº 1.355/1994, estabelece que o valor aduaneiro, que serve de base de cálculo a tributos incidentes na importação, deve ser determinado pelo valor de transação, que, de acordo com o artigo 1°, corresponde ao preço efetivamente pago ou a pagar pela mercadoria importada, ajustado segundo as disposições do artigo 8 do AVA.

Outra consequência é verificada no regime da Cide-Remessas, que, nos termos da Lei n° 10.168/2000, é devida não somente pela adquirente de tecnologia estrangeira, mas também é devida pelas pessoas jurídicas signatárias de contratos que remeterem royalties, a qualquer título, a beneficiários residentes ou domiciliados no exterior.

Em todos esses casos, a não individualização dos royalties distorce a base de cálculo de incidência dos tributos ou dos créditos apurados nas operações. Verifica-se, portanto, a existência de inúmeras repercussões da correta ou incorreta mensuração desses rendimentos.

Trata-se de um problema que merece uma análise detida e uma solução concreta.

Há determinadas prescrições contábeis que auxiliam na mensuração dos royalties, especificamente, aquelas constantes do Pronunciamento CPC n° 47 e que, portanto, conduzem esta análise.

Alocação de preços e segregação de receitas

O artigo 58 da Lei n° 12.973/2014 determina que a modificação ou adoção de métodos e critérios contábeis posteriores à sua publicação não terá implicação na apuração de tributos federais até que a legislação tributária regule a matéria.

Por força desse dispositivo, a Receita se manifestou a respeito da aplicabilidade do CPC 47 para fins tributários, através da Instrução Normativa n° 1771/2017, que aprovou o Anexo IV da Instrução Normativa n° 1.753/2017.

Nessa norma, segregou-se as regras do CPC 47 em três grupos distintos: a) aquelas que “não contemplam modificação ou adoção de novos métodos ou critérios contábeis ou não têm efeito na apuração dos tributos federais”; b) aquelas que “contemplam métodos ou critérios contábeis que divergem da legislação tributária”; e c) aquelas que “contemplam modificação ou adoção de novos métodos ou critérios contábeis”, estas admitidas para fins tributários.

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Neste último se encontram as regras sobre “a aplicação dos critérios para a alocação do preço de transação às obrigações de desempenho”.

Portanto, de acordo com a manifestação da Receita na IN n° 1.771/2017, não há nenhum óbice para a aplicação das regras do CPC 47 sobre alocação de preços para fins de tributação federal.

O CPC 47 tem como objetivo estabelecer métodos para o devido reconhecimento de receitas pela entidade quando esta transfere utilidades para os clientes, em valor que corresponda à contraprestação pelo qual a entidade espera ter direito, com base no contrato.

Para essa finalidade, o CPC 47 prevê 5 etapas: identificar o contrato com o cliente; identificar as obrigações de performance; determinar o preço da transação; alocar os preços da transação por cada obrigação de performance; e reconhecer a receita quando cada obrigação de performance for satisfeita.

Interessa à presente análise, em especial, a etapa n° 4, em que se aplicam as regras para alocação dos preços da transação para cada obrigação de performance. Isso porque pretende-se verificar a possibilidade de individualização da licença de propriedade intelectual que é remunerada por royalties como uma obrigação de performance autônoma, que não se confunde com outras operações realizadas simultaneamente e baseadas no mesmo contrato.

Para verificar a etapa 4, é necessário discorrer, brevemente, sobre as demais etapas.

A primeira etapa trata da identificação do contrato com cliente, que corresponde a um acordo individual formalizado por escrito, verbalmente ou sugerido pelas práticas usuais, que estabelece direitos e obrigações executáveis, cuja respectiva receita é de provável recebimento.

A segunda etapa dispõe que que cumpre identificar as obrigações de performance, que corresponde à “obrigação da entidade vendedora desempenhar a sua obrigação de repassar o controle do bem ou serviço à entidade compradora”. O CPC 47 indica, ainda, a possibilidade de que o contrato inclua entre os bens e serviços outras utilidades, dentre elas, a “concessão de licença”, que corresponde aos direitos à propriedade intelectual da entidade.

A terceira etapa prevê regras para definir o preço da transação. A entidade, com base no contrato firmado e nas práticas usuais do negócio, deverá estipular o valor da contraprestação devida pela transferência dos bens ou serviços ao cliente. Aqui, pretende-se estabelecer o valor global da transação, valor esperado a ser recebido pela entidade.

Então, tem-se a quarta etapa: alocar os preços da transação para cada obrigação de performance. Nesse momento, a entidade deve determinar o preço pelo qual a entidade ofertaria cada utilidade ao cliente separadamente e estabelecer, a participação de cada um desses preços, de forma proporcional, no preço da transação.

Para estabelecer o preço individual não diretamente observável pela entidade, ela deverá estima-lo e alguns métodos são estabelecidos pelo CPC 47 nesse sentido.

O primeiro método é a “abordagem de avaliação de mercado ajustada”, mediante a qual a entidade avalia no mercado em que está inserido o preço estimado que os clientes estão dispostos a pagar. Para tanto, a entidade pode recorrer aos preços aplicados pelos seus concorrentes ou tomar por base o preço de utilidades semelhantes e ajustá-las.

O segundo método é a “abordagem do custo esperado mais margem”, através do qual a entidade estabelece o custo que incorre para cumprir com a sua obrigação de performance e adiciona a margem que entende devida pela utilidade ofertada.

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O terceiro método consiste em uma “abordagem residual”. A entidade subtrai do preço total da transação o valor da soma dos preços observáveis das demais obrigações de performance. Para utilizar esse método, a entidade deverá atender a alguns requisitos: oferecer a mesma utilidade a diferentes clientes, simultaneamente, por valores variados, nos casos em que os preços são altamente variáveis, não sendo depreendidos a partir de evidências observáveis; ou não ter a entidade estabelecido qualquer preço para a utilidade, que jamais foi ofertada individualmente pela entidade.

Determinada a alocação dos preços por obrigação de desempenho, tem-se a quinta etapa: reconhecer a receita quando cada obrigação de performance for satisfeita, quando há transferência do controle dos bens ou serviços ao cliente e não mais quando se transfere os riscos e benefícios da utilidade ofertada.

Ultrapassadas as cinco etapas, tem-se, então, a possibilidade de reconhecimento individualizado das receitas decorrentes de contrato com oferta de múltiplas utilidades.

Conclusão

Em contratos em que têm, simultaneamente, ofertas de serviços e bens tangíveis e intangíveis, podem ser aplicadas as regras para alocação do preço de cada operação.

A licença de bens intangíveis remunerada por royalties, enquanto operação para oferta de um bem deve ser interpretada como uma obrigação de performance. Em cada contrato, deverão ser analisadas as possibilidades de individualização dessa obrigação em cotejo com as demais utilidades.

Mediante as regras previstas pelo pronunciamento contábil que foram recepcionadas pela Receita, torna-se possível precisar os royalties devidos pela licença de bens intangíveis que são ofertados de forma conjunta com serviços e mercadorias.

Com tal esforço, tem-se uma proposta de solução para os problemas que surgem na aplicação da legislação tributária federal quando não há precisa individualização dos rendimentos de royalties.

Do ponto de vista dos tributos federais, a solução encontrada para tal problema pode ser encontrada na segregação de receitas entre cada uma das obrigações identificadas em um contrato híbrido. Essa segregação, como constatado, pode ser realizada mediante as técnicas de alocação de preços, previstas no CPC 47, que foi, neste ponto, acolhido pela Receita Federal.

A adoção da segregação tal como proposto, assim como viabiliza estabelecer com precisão a aplicação de diversas normas jurídico-tributárias que atribuem efeitos específicos ao reconhecimento e à mensuração de royalties, igualmente, impõe um esforço diferenciado aos contribuintes e ao fisco. Àqueles, pois deverão despender maiores esforços no sentido de aplicar corretamente os métodos de alocação de preço para fins tributários, além de expor a precificação das suas ofertas. Estes, porque deverão verificar se as informações prestadas pelo contribuinte são legítimas.

Não obstante se reconheça que esses fatores possam influenciar a consolidação das práticas jurídicas, a dificuldade intrínseca à tarefa não justifica a dispensa da sua adoção. Como visto, o sistema tributário nacional demanda que a segregação das receitas seja implementada.

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