Sistematização processual das ações diretas de controle de constitucionalidade

A Constituição Federal de 1988 contemplou, como meio de controle judicial de constitucionalidade das leis, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou federal (Constituição Federal, artigo 102, I, a, c/c o artigo 103). A introdução desse mecanismo de controle abstrato de normas, com amplo rol de legitimados ativos, reforçou a jurisdição constitucional brasileira, como específico instrumento de aperfeiçoamento do modelo geral de fiscalização difusa e incidental.

Anos mais tarde, o controle abstrato e concentrado de constitucionalidade foi complementado pela Emenda Constitucional nº 3/1993, que disciplinou o instituto da ação declaratória de constitucionalidade.

Importa frisar que as ações diretas de controle de constitucionalidade, que se desenvolvem por meio do denominado processo objetivo, em particular, perante o Supremo Tribunal Federal, a despeito de sua inequívoca relevância, não obteve até hoje no nosso ordenamento jurídico um regramento legal unívoco. Esta lacuna legislativa de certo modo enseja na praxe forense inúmeras dúvidas, que acabam propiciando verdadeira insegurança jurídica.

Transcorridos mais de vinte anos desde a edição dos diplomas legais acima apontados, o notório avanço da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nesta matéria passou a exigir uma sistematização do regime processual das ações de controle concentrado.

Daí porque deve ser louvada a iniciativa do deputado Marcos Pereira (Republicanos-SP), que apresentou recentemente (31/7/2023) perante a Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 3.640/2023, específico sobre o processo e julgamento das ações de controle concentrado de constitucionalidade, incluindo algumas alterações no Código de Processo Civil.

Colhe-se da justificativa da proposta legislativa, que decorre ela do resultado de trabalho desenvolvido, desde novembro de 2020, por uma comissão de destacados juristas, presidida pelo ministro Gilmar Mendes e tendo como relator o professor Ingo Wolfgang Sarlet, com o objetivo de sistematizar as regras do processo constitucional brasileiro, mais especificamente, do processamento e respectivo julgamento, perante o Supremo Tribunal Federal, da ação direta de inconstitucionalidade (ADI), da ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO), da ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).

Em 60 artigos, o referido Projeto de Lei estabelece, no capítulo I, artigo 2º, entre as disposições processuais gerais, os “Princípios do Processo Constitucional Objetivo”, destacando-se a: “I – autonomia do processo constitucional; II – economia processual; III – instrumentalidade das formas; IV – abertura do processo objetivo e ampliação do espaço deliberativo; V – gratuidade do acesso à jurisdição constitucional; e VI – causa de pedir aberta“.

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Alusão especial merece o artigo 6º, ao prescrever que: “As ações de controle concentrado de constitucionalidade são fungíveis, podendo o relator ou o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, a qualquer tempo, de ofício ou a requerimento das partes, ordenar a modificação da autuação processual“.

Dada a inexistência de partes formais nos processos objetivos (art. 7º), o parágrafo único do artigo 7º determina que os artigos 144 e 145 do Código de Processo Civil, que catalogam respectivamente as causas de impedimento e de suspeição do juiz, não se aplicam às ações de controle concentrado de constitucionalidade.

O artigo 8º, a seu turno, preceitua que as ações de controle de constitucionalidade podem ser ajuizadas tendo como objeto:

“I – emenda constitucional, lei ordinária, lei complementar, lei delegada ou ato normativo federais ou estaduais dotados de generalidade e abstração, hipóteses de cabimento da Ação Direta de Inconstitucionalidade ou da Ação Declaratória de Constitucionalidade;

II – omissão inconstitucional total ou parcial quanto ao cumprimento de dever constitucional de legislar ou quanto à adoção de providência de índole administrativa, hipóteses de cabimento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão; e

III – ato do poder público, lei municipal ou ato normativo primário anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, que causem ou possam causar lesão a preceito fundamental, hipóteses de cabimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental”.

Os legitimados ativos para o ajuizamento das ações de controle concentrado de constitucionalidade estão arrolados no artigo 9º, que reproduz a redação do artigo 2º da Lei nº 9.868/99.

A estrutura da petição inicial se encontra prevista no artigo 10. O parágrafo único do artigo 11 autoriza, no prazo de cinco dias, a interposição de agravo interno contra a decisão que indeferir a petição inicial.

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A Seção V do Projeto dispõe sobre as medidas cautelares (artigos 15 a 17), temática de expressiva importância para a jurisdição constitucional brasileira, uma vez que, como ressaltado na Exposição de Motivos (do Anteprojeto), “a suspensão de uma lei carece de legitimidade democrática imediata e deve obtê-la por meio da exaustiva fundamentação. Ademais disso, não raras vezes cautelares são concedidas ou negadas sem que sejam consideradas suas consequências práticas”.

O texto legal proposto, no que concerne à concessão de medidas cautelares, ostenta dois propósitos bem nítidos. De um lado, “trata, em primeiro lugar, do estabelecimento de critérios mais rígidos e objetivos, tais como (i) fundamentação específica quanto à necessidade de concessão da cautelar e impossibilidade de submissão do feito ao rito abreviado; (ii) fundamentação com base em entendimento do Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, caso existente. Mantendo a atual sistemática (Lei da ADI, artigo 11, parágrafo 1º), as decisões proferidas em sede cautelar seguem dotadas de eficácia erga omnes e efeito ex nunc, salvo decisão do Tribunal em sentido contrário (artigo 16, parágrafo 1º)”.

Verifica-se, por outro lado, “a submissão automática ao referendo do colegiado na primeira sessão de julgamento subsequente à sua prolação (artigo 17, parágrafo 3º) e sua concessão monocrática apenas em situações muito excepcionais (artigo 17, caput), previsões que privilegiam a colegialidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal”.

Nessa mesma linha, deve-se ressaltar que o projeto de lei em apreço preocupa-se com a repercussão e consequência das decisões proferidas no cenário da jurisdição constitucional, à luz do disposto no artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Esta cautela com as consequências sociais dos atos decisórios estende-se igualmente à modulação de seus respectivos efeitos, inclusive no que toca à modulação da eficácia do ato normativo ou do ato do poder público impugnado (artigo 51).

Infere-se outrossim importante novidade do mencionado Projeto de Lei. À luz da jurisprudência mais recente da Suprema Corte, os artigos 55 e 56 contemplam a possibilidade, desde que atendidos determinados requisitos, de celebração de transação no âmbito dos processos objetivos. A justificar esta inovação, a Exposição de Motivos salienta que: “a recente controvérsia envolvendo os planos econômicos, a Lei Kandir (QO ADO 25) e a destinação das verbas arrecadadas pelo então declarado inconstitucional ‘Fundo Lava-Jato’ (ADPF 568), não deixam dúvidas quanto ao direcionamento do Supremo Tribunal Federal no sentido da possibilidade de transações, desde que realizados de forma plural e submetidos ao seu juízo homologatório. A possibilidade de transacionar no âmbito da jurisdição constitucional assume ainda maior relevo quando se verifica que, não raras vezes, discussões acerca da constitucionalidade de determinados dispositivos legais tramitam por décadas no Supremo Tribunal Federal. O resultado, com a mesma frequência, costuma ser insatisfatório, justamente por vir a destempo. Nesse sentido, o projeto toma posição muito clara quanto a eficácia prática das decisões do Supremo Tribunal Federal, que tem como função atemporal, como já destacamos, a proteção de direitos fundamentais. Na atual quadra histórica não há mais que falar — pelo menos em boa parte dos casos — de indisponibilidade absoluta e integral dos direitos e garantias fundamentais em causa nas controvérsias submetidas ao Supremo Tribunal Federal. Desde que devidamente supervisionados e entabulados após ampla discussão de todos os interessados (públicos e privados), acordos em sede de jurisdição constitucional buscam evitar inconstitucionalidades ainda mais gravosas advindas de uma eventual decisão de inconstitucionalidade. Por diversas vezes, como já é notório, o interesse social é melhor atendido mediante celebração de acordos do que por meio de uma decisão judicial de cariz definitivo”.

Entre as regras finais e transitórias, reza o artigo 57 que: As disposições desta Lei se aplicam, no que couber, à declaração de inconstitucionalidade incidental realizada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de ações de sua competência originária e do Recurso Extraordinário”.

Em conclusão, entendo que a aprovação do referido texto normativo proposto contribuirá em muito para o fortalecimento do sistema brasileiro de controle concentrado de constitucionalidade.

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Fonte: Conjur

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