Tema 865: STF diz que indenização na desapropriação é prévia, mas nem tanto

Em 19/10/2023, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou o mérito do Recurso Extraordinário 922.144 (relator: ministro Roberto Barroso), para reconhecer, em repercussão geral, que “no caso de necessidade de complementação da indenização, ao final do processo expropriatório, deverá o pagamento ser feito mediante depósito judicial direto se o poder público não estiver em dia com os precatórios” (Tema 865).

Aqui nesta ConJur, em 3/3/2016, um dos subscritos deste ensaio publicou uma coluna que fazia alusão à importância desse julgamento [1]. Nela, sustentou que a complementação da indenização, determinada pelo Poder Judiciário na ação expropriatória, por força da previalidade ditada pela Constituição, caracterizava-se como obrigação de fazer e não como obrigação de dar. Como consequência, o pagamento da diferença determinada em ação judicial desapropriatória escaparia do pagamento da indenização complementar pelas raias do precatório judicial, conforme previsto no artigo 100 da Constituição [2].

O entendimento foi adotado, com menção expressa à coluna da ConJur, no voto do ministro Edson Fachin no RE 922.144 [3], que contou com acompanhamento de outros três dos ministros do STF (Carmem Lúcia, Rosa Weber e Luiz Fux), empatando o placar com a posição defendida pelo ministro Gilmar Mendes (Dias Toffoli, Nunes Marques e André Mendonça), que sustentou a necessidade do precatório em qualquer caso [4]. O empate deu ensejo à prevalência do voto médio do ministro Roberto Barroso (Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski), consagrando o verbete do Tema 865 do STF [5].

Contradição

A posição prevalecente no STF é, registrando-se vênias, curiosa. É que se a Constituição garante que a indenização na desapropriação deve ser prévia, e se a imissão provisória na posse já priva o proprietário dos atributos típicos do domínio [6], qual seria a razão para que a indenização complementar, que decorre de uma avaliação equivocada do bem por parte do expropriante, devesse esperar o término do processo judicial (sem depósito judicial do valor complementar apontado pela perícia no curso da instrução), para seguir o curso da execução pelo precatório?

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A resposta exige que se adira à crítica de Fernando Scaff, para quem:

 “[…] se o pagamento por meio de precatório não é prévio, por qual razão utilizá-lo, se o regime de pagamento precatorial estiver em dia? Nada justifica a exceção inserida na Tese. Trata-se de uma contradição em seus próprios termos” [7].

Obrigação adicional e espécies de desapropriação

Acresce, como argumento, que o artigo 16, §4º, II da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) estabelece uma obrigação adicional ao expropriante no ato da declaração desapropriatória, de que a desapropriação de imóveis urbanos referida no § 3º do artigo 182 da Constituição (“as desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro”), deva ser acompanhada de dois requisitos, vertidos exatamente à garantia da necessária amarração orçamentária para efeito de preservar o pagamento da indenização prévia ao expropriado:

(a) estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subsequentes;

(b) declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.

A despeito de a LRF mencionar apenas a desapropriação direcionada a imóveis urbanos, sustenta-se que ao dispositivo se deve atribuir interpretação extensiva, a fim de abranger quaisquer espécies de desapropriação cujo pagamento tenha que ser realizado em dinheiro, seja de imóveis urbanos ou rurais ou de outros bens susceptíveis de desapropriação ordinária.

Com efeito, cingir a necessidade de compatibilização orçamentária aos imóveis urbanos (excluindo os rurais e outros) é um discriminem injustificado à determinação legislativa de planejamento dos gastos destinados à indenização prévia dos bens desapropriados. Além disso, não estender a intepretação significa criar requisitos diferentes para situações igualmente qualificadas pela Constituição (desapropriação ordinária de imóveis urbanos e rurais, que devem contar com indenização prévia, justa e em dinheiro).

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Ao que se vê, como se não bastasse a determinação constitucional de indenização prévia e a constatação de que a imissão provisória determina a perda fática da propriedade, a LRF impõe deveres ao poder público, exigindo que as medidas de desapropriação sejam decorrentes de um planejamento orçamentário-financeiro adequado, argumentos sobre os quais se assenta a crítica ao “meio termo” constante do Tema 865 do STF.


[1] FERRAZ, Luciano. Indenização por desapropriação tem novidades legislativas e jurisprudenciais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-mar-03/interesse-publico-indenizacao-desapropriacao-novidades-legislativas-jurisprudenciais/ Acesso em 24.04.2024.

[2] Essa posição considerava evidentemente a realidade das ações expropriatórias, cuja previsão de imissão provisória na posse (art. 15 do Decreto-lei 3.365/41) determina um fenômeno denominado “perda fática da propriedade”.

[3] Em seu voto no julgamento do RE 922144, o ministro Fachin concluiu que: “Não há conformidade entre a garantia de pagamento prévio com o regime do art. 100 da CRFB. A sistemática dos precatórios apresenta-se como a opção do legislador constituinte para a quitação das dívidas reconhecidas judicialmente contra a Fazenda Pública, mas não permite pagamento da indenização prévia”. (STF – RE 922144, Relator(a): LUÍS ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 19-10-2023, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-s/n. DIVULG. 06-02-2024, PUBLIC. 07-02-2024).

[4] O ministro Gilmar Mendes fundamentou seu voto no RE 922144 no seguinte sentido: “Assim, qualquer dispêndio de recurso público deve estrita observância à lei orçamentária e à categoria correspondente à sua programação e unidade administrativa (órgãos desconcentrado e descentralizado – parágrafo único do art. 22) (…). Não havendo essa previsão legislativa, não é cabível ao Poder Judiciário determinar, em ação de desapropriação, o depósito complementar em dinheiro da diferença entre a quantia fixada judicialmente e o valor depositado de forma prévia, tampouco o bloqueio/sequestro/arresto de numerário dissociado da correspondente espécie de despesa da unidade administrativa, sob pena de grave ofensa ao postulado orçamentário”. (STF – RE 922144, Relator(a): LUÍS ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 19-10-2023, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-s/n. DIVULG 06-02-2024, PUBLIC 07-02-2024).

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[5] No julgamento do RE 944.122, o voto do ministro Roberto Barroso expõe que: “O Estado tem o dever de ser correto com seus cidadãos. A indenização da desapropriação não pode constituir um calote disfarçado ou o reconhecimento vazio de uma dívida. Em abstrato, é possível argumentar que a submissão da desapropriação ao regime de precatórios não viola o comando constitucional de indenização prévia e justa do art. 5º, XXIV. O estado de mora no pagamento de requisitórios, contudo, desconstrói essa premissa. O atraso no pagamento, portanto, deslegitima o Poder Público, desnatura a natureza prévia da indenização e esvazia o conteúdo do direito de propriedade.” (STF – RE 922144, Relator(a): LUÍS ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 19-10-2023, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO. DJe-s/n. DIVULG. 06-02-2024, PUBLIC. 07-02-2024).

[6] O voto do ministro Roberto Barroso reconhece essa peculiaridade do processo expropriatório, ao dissertar que: “instituto da desapropriação demonstra que a imissão provisória da posse antecipa os efeitos práticos da desapropriação, demandando que a indenização prévia exigida pela Constituição também seja antecipada, não podendo aguardar a demora inerente ao regime de precatórios.” (STF – RE 922144, Relator(a): LUÍS ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 19-10-2023, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO. DJe-s/n. DIVULG. 06-02-2024, PUBLIC. 07-02-2024).

[7] SCAFF, Fernando Facury. Complementação de desapropriação não exige precatório (Tema 865/STF). Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-02/complementacao-de-desapropriacao-nao-exige-precatorio-tema-865-stf/. Para corroborar com o afirmado por SCAFF, o voto do Ministro Barroso ainda registra a seguinte passagem: “se o ente expropriante não estiver em dia com o pagamento dos precatórios – como boa parte dos Estados e Municípios não está –, não tenho dúvidas de que a indenização não será prévia.” (STF – RE 922144, Relator(a): LUÍS ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 19-10-2023, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO. DJe-s/n. DIVULG. 06-02-2024, PUBLIC. 07-02-2024).

Fonte: Conjur

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