1. O relato de um caso de desvio hermenêutico de sentidos
O advogado José Ramiro Pimentel Cordeiro de Almeida escreveu interessante artigo aqui na ConJur (ver aqui). Mostrou um interessante caso de desvio hermenêutico de sentidos. O caso demonstra o modo como, no estado atual do relativismo interpretativo em que nos encontramos, até os casos fáceis (easy cases), em que qualquer olhar textual resolveria, transforma-se, por meio de voluntarismos hermenêuticos, em tragic cases.
O caso: oriundo da Subseção II Especializada em Dissídio Individuais do Tribunal Superior do Trabalho (ROT – 298-02.2018.5.05.0000), tratou-se de acórdão proferido em recurso ordinário contra decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região que acolheu a decadência e extinguiu uma ação rescisória.
Para o TRT-5, era um easy case: o termo inicial do prazo decadencial para ajuizamento da ação rescisória conta-se da data do trânsito em julgado da decisão rescindenda. O TRT-5 tão-somente leu corretamente o que diz o CPC (artigo 975). Para explicar: segundo o TRT-5, o prazo decadencial começou exatamente no dia do trânsito e não no dia seguinte. A parte perdeu porque ingressou com a rescisória contando o prazo a partir do dia seguinte do trânsito. Essa questão de “um dia” fez toda a diferença. E, por isso, foi ao TST.
2. Onde está escrito x, leu-se y: o entendimento da SDI-II do TST
O que aconteceu? Ao julgar o recurso ordinário do autor, a Subseção II Especializada em Dissídio Individuais do TST entendeu que o prazo decadencial para a propositura da ação desconstitutiva iniciou-se no dia seguinte ao trânsito em julgado. Por isso, não estaria configurada a decadência. Isto é, haveria um dia a mais. E, assim, a rescisória estaria no prazo.
O TST citou a seu favor precedente do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do AgRg na AR 3.792/PR, 1ª Seção, de 2014, relator o ministro Mauro Campbell Marques, assim como a Súmula 100, I, do próprio Tribunal, de edição anterior ao CPC-2015. Além do julgado do ministro Campbell ser anterior ao CPC, tratou de caso distinto, falando da contagem do prazo apenas em obiter dictum porque a questão central a ser decidida era a aplicabilidade do prazo em dobro para procuradores diversos que haviam sido constituídos no transcurso do processo.
No caso do precedente citado, a decisão que se postulava rescindir foi publicada no Diário de Justiça da União em 23 de maio de 2005, transitando em julgado na data de 7 de junho de 2005, após escoar-se o prazo para interposição de recurso extraordinário, e a ação rescisória somente foi protocolada em 22 de junho de 2007. Portanto, neste caso já havia passado o prazo da rescisória; de qualquer sorte, só seria cabível em caso de prazo dobrado em razão dos procuradores diversos.
Aqui surge um problema: quando se dá efetivamente o trânsito em julgado. A decisão do STJ referida é de 2014 e o acórdão que transitou em julgado é 2005. Portanto, é anterior a Lei n° 11.419/06, que regulamentou o processo eletrônico, a qual é expressamente referida no caso julgado pelo TST. No caso do STJ os autos eram físicos, no caso do TST os autos são digitais.
Como o trânsito em julgado nos autos digitais se dá no dia subsequente ao fim do prazo de interposição de recurso, o TST aplicou a Súmula 100 do tribunal, que diz em seu inciso ‘I’: “O prazo de decadência, na ação rescisória, conta-se do dia imediatamente subsequente ao trânsito em julgado da última decisão proferida na causa, seja de mérito ou não”.
Quanto à Súmula 100, o TST já se manifestou por diversas vezes referindo que esta permanece hígida e que não há antinomia entre a súmula e a nova redação do código de processo civil (A compatibilidade entre as novas diretrizes do CPC e a Súmula nº 100 já foi tema enfrentado por esta SBDI-II, que concluiu inexistir antinomia jurídica alguma entre eles. [Ação Rescisória nº 1000481-86.2021.5.00.0000, rel. min. Amaury Rodrigues Pinto Junior, julgada em 14/09/2021]).
Portanto, de um lado existe o TST invocando uma antiga súmula; de outro, o STJ (e o CPC). Quando do julgamento do Tema 552 (19/11/2014), rel. min. Laurita Vaz, estabeleceu-se que: “O termo “a quo” para o ajuizamento da ação rescisória coincide com a data do trânsito em julgado da decisão rescindenda. O trânsito em julgado, por sua vez, se dá no dia imediatamente subsequente ao último dia do prazo para o recurso em tese cabível”. Portanto, para o STJ o prazo começa a fluir do dia efetivo do trânsito em julgado, com o efetivo computo do dia; enquanto o TST entende que o prazo passa fluir a partir do dia seguinte.
De todo modo, mesmo em tempos de crescente jurisprudencialização do direito legislado, (o direito que vale é o que os tribunais decidem), vale ler o artigo 975 do CPC: “O direito à rescisão se extingue em 2 (dois) anos contados do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo”.
A literalidade também faz parte do direito. Não é proibido fazer coincidir texto e sentido do texto, mormente quando se trata de datas e aferição de prazos. Por exemplo, se o prazo é de 15 dias, não pode ser 16. Há casos claros no direito. E não há proibição de sinonímias. No caso em discussão, contar do trânsito em julgado não admite dizer “no dia seguinte à data do trânsito em julgado”. Há, ademais, vários julgados do STJ nesse sentido [1].
Em suma: para além dos casos concretos, parece claro que o que deve valer é a dicção do artigo 974 do CPC.
3. O problema dos limites textuais
Afinal, o que é interpretar? É dar sentido. Mas não qualquer sentido. Deixemos sempre que o texto nos diga algo, antes de qualquer outra coisa.
Aqui não se pode nem dizer que haja divergência de opiniões entre o TST e o STJ, uma vez que o TST está utilizando uma sumula que contraria previsão expressa do CPC. E isso é inadequado em termos hermenêuticos. Divergência existe quando é possível que qualquer das duas teses tenha plausibilidade. No caso, é impossível dizer que a Sumula 100, I, valha mais do que o artigo 975 do CPC. Mesmo que a súmula estivesse “correta”, ainda assim não se pode deixar de dar validade à lei. O sistema jurídico ainda é civil law. Não existe antinomia entre o CPC e uma súmula do TST.
Ou isso ou perderemos a dignidade epistemológica da legislação. E então deveremos assumir que o sentido do direito é o que o Tribunal diz, mesmo que esse sentido contrarie a lei.
Estas reflexões pretendem contribuir para o debate. Um debate sobre o valor da lei e da dignidade da legislação. E questionar a crescente jurisprudencialização do direito. O objetivo central é esse.
Precisamos falar sobre esse assunto. E tantos outros. Os advogados que o digam.
Por isso, o processo em pauta, trazido pelo causídico José Ramiro, pode ser um importante marco na discussão dos limites hermenêuticos.
[1] AR 5.931/SP, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Ratificação de voto; 2ª Seção, DJe 21/06/2018), na Ação Rescisória Nº 7667 – SE (2024/0038681-8), relator ministro Herman Benjamin (DJ 27/02/2024) e Agravo em Recurso Especial nº 2.473.909 – PR (2023/0317312-1), relator ministro Herman Benjamin (DJ 11/3/2024).
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