“É a mesma coisa que você pegar quatro delegados e quatro detentos para julgar um habeas corpus, sendo que o empate favorece o detento. Era isso o Carf.”
Fernando Haddad, ministro da Fazenda
Causou revolta nos meios jurídico e empresarial a forma leviana e preconceituosa com que o ministro da Fazenda comparou, em entrevista ao programa Canal Livre, da Rede Bandeirantes, contribuintes que estão legitimamente exercendo seu direito de defesa contra autuações fiscais com criminosos detidos pela autoridade policial, julgadores representantes dos mesmos contribuintes, profissionais indicados por confederações representativas de diferentes setores da economia, submetidos a rigorosos processos seletivos, com detentos, e julgadores auditores fiscais de carreira, exercendo a relevantíssima atividade de controle da legalidade dos atos de lançamento, com delegados de polícia. Nada contra os delegados de polícia, que desempenham papel fundamental no Estado democrático de Direito. Mas a questão aqui é de outra ordem.
Representantes dos contribuintes e do Fisco, comparados pelo ministro a detentos e delegados, são tão somente julgadores a quem compete o encargo constitucional de revisão do lançamento tributário, decidindo se o agente fiscal aplicou corretamente a lei aos fatos e, por isso, sua autuação fiscal deve ser confirmada ou se, ao contrário, deve ser anulada.
Com efeito, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) —antes e, para nós, eternamente, Conselho de Contribuintes, denominação que melhor designa a quem verdadeiramente se dirige e cujos interesses deve atender — é a última instância administrativa de controle da legalidade do ato administrativo de lançamento tributário. A sua existência enquanto instância recursal é garantia aos litigantes em processo administrativo prevista no artigo 5º, LV da Constituição.
O ato de lançamento praticado sob o comando normativo do artigo 142 do CTN será revisto, no âmbito federal, por impugnação de primeira instância dirigida às Delegacias de Julgamento e, por recurso voluntário e/ou de ofício, pelo Carf. Como pode um órgão de julgamento recursal de suma importância, integrado no rol de garantias constitucionais, ter seus julgadores e, principalmente, seus jurisdicionados, achincalhados em rede nacional de televisão pelo próprio chefe do ministério no qual se integra?
A debochada ironia do ministro Haddad veio a propósito da celebração da retomada do voto de qualidade pela Lei 14.689/2023. O voto de qualidade havia sido em boa hora extinto pelo parlamento em 2020, mas foi, à sorrelfa, por medida provisória, ressuscitado pelo governo Lula em janeiro desse ano. Sistema de desempate dos julgamentos do Carf, o voto de qualidade trata-se da atribuição de um duplo peso ao voto do presidente das turmas do conselho, sempre um representante fazendário, que costumeiramente decide favoravelmente à Fazenda Nacional.
O uso abusivo do voto de qualidade nos anos anteriores a 2020 se verificou especialmente nas causas envolvendo cobranças de valores estratosféricos, decorrentes de autuações com apoio em interpretações de cariz fiscalista, muitas sem base legal, construídas à luz de teorias de abuso de direito, violação da capacidade contributiva, fraude à lei, simulação com e sem fraude, entre outras tantas teorias, todas tendo em comum a defesa da existência de um suposto limite extralegal à liberdade de contratar e empreender que permitiria ao fisco requalificar os fatos e lançar tributos por analogia.
Isso sucedeu, por exemplo, em diversos casos envolvendo a glosa da dedução de despesas com ágio realizado em operações intragrupo, o chamado “ágio interno”, ou com ágio gerado em operações de reorganização societária que envolveram a constituição das chamadas “empresas veículo”, supostamente sem propósito negocial na visão das autoridades fiscais; também sucedeu nos casos de reduções de capital seguidas da venda de participações societárias com pagamento de menor tributação da que incidiria na venda direta e, ainda, nos casos da formação de grupos de empresas relacionadas que adotam o regime do lucro presumido ou mesmo na desconsideração da existência das pessoas jurídicas prestadoras de serviços de certas atividades profissionais para tributar diretamente seus sócios.
O voto de qualidade também serviu de esteio para fazer prevalecer interpretações mais restritivas do alcance de certas normas da legislação tributária interna, considerando haver ganho de capital imediatamente tributável nas operações de incorporação de ações e recusando o direito à compensação integral de prejuízos fiscais no período-base de extinção das pessoas jurídicas e, com isso, revertendo a jurisprudência pacífica da CSRF que havia servido de orientação para diversas operações de reorganização societária.
No âmbito das relações internacionais, o voto de qualidade validou a insatisfação do fisco com a isenção de retenção do IRF sobre afretamentos internacionais de embarcações nos casos de contratos coligados de afretamento e prestação serviços de perfuração. Com efeito, o Carf manteve autuações que tributaram as prestadoras de serviços, seja pela via oblíqua da indedutibilidade de despesas operacionais, seja pela tributação direta de empréstimos e aportes capital. E mais, também confirmaram autuações que exigiram a cobrança de Cide e IRF sobre as remessas de afretamento como se de serviços se tratassem.
Até a recusa da aplicação de disposição dos tratados contra a dupla tributação foi consagrada pelo Carf pelo voto de qualidade em diversos julgados que recusaram reconhecer o óbvio: a lei interna brasileira tributa — seja qual for o nomen iuris que se dê — o lucro apurado pela sociedade controlada no exterior e o artigo 7º de todos os tratados celebrados pelo Brasil não autorizam que o país tribute tais lucros enquanto não distribuídos.
Essa prática reiterada, que exigiu um oneroso e moroso recurso dos contribuintes ao Poder Judiciário após derrotados no Carf, conduziu à reação do Congresso para fazer com que em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário não mais se aplicasse o voto de qualidade, resolvendo-se a questão favoravelmente ao contribuinte.
Tenha-se presente que a esmagadora maioria das matérias indicadas acima, que vinham sendo resolvidas desfavoravelmente aos particulares pelo voto de qualidade, quando da introdução do sistema do empate pro contribuinte passaram a ser decididas no sentido oposto, até mesmo por maioria de votos.
Também no âmbito do Judiciário, as matérias decididas de forma desfavorável aos contribuintes têm sido decididas agora em seu favor. Exemplo recente, que foi tratado na semana passada aqui nesta coluna pela querida Elidie Bifano, foi o REsp nº 2.026.473-SC julgado pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Trata-se do caso Cremer, em que o Carf havia mantido glosa de dedução do ágio por entender serem válidas as razões apontadas no lançamento, quais sejam, o fato de operação ser realizada entre partes dependentes (“ágio interno”) e o contribuinte ter constituído uma empresa para aportar o investimento que seria objeto de alienação (“empresa veículo”), razões essas que não se encontravam previstas em lei.
A ementa do acórdão da relatoria do ministro Gurgel de Faria não poderia ter sido mais feliz e precisa ao equacionar a questão e mostrar a raiz do problema que os contribuintes têm vivenciado com a insatisfação fiscal traduzida em autuações arrecadatórias incondizentes com o princípio de legalidade que rege o direito tributário. Leia-se:
“(….)
4. A controvérsia principal dos autos consiste em saber se agiu bem o Fisco ao promover a glosa de despesa de ágio amortizado pela recorrida com fundamento nos arts. 7º e 8º da Lei n. 9.532/1997, sob o argumento de não ser possível a dedução do ágio decorrente de operações internas (entre sociedades empresárias dependentes) e mediante o emprego de ‘empresa-veículo’.
5. Ágio, segundo a legislação aplicável na época dos fatos narrados na inicial, consistiria na escrituração da diferença (para mais) entre o custo de aquisição do investimento (compra de participação societária) e o valor do patrimônio líquido na época da aquisição (art. 20 do Decreto-Lei n. 1.598/1977).
(……)
10. Embora seja justificável a preocupação quanto às organizações societárias exclusivamente artificiais, não é dado à Fazenda, alegando buscar extrair o ‘propósito negocial’ das operações, impedir a dedutibilidade, por si só, do ágio nas hipóteses em que o instituto é decorrente da relação entre ‘partes dependentes’ (ágio interno), ou quando o negócio jurídico é materializado via ‘empresa-veículo’; ou seja, não é cabível presumir, de maneira absoluta, que esses tipos de organizações são desprovidos de fundamento material/econômico.
11. Do ponto de vista lógico-jurídico, as premissas em que se baseia o Fisco não resultam automaticamente na conclusão de que o ‘ágio interno’ ou o ágio resultado de operação com o emprego de ‘empresa-veículo’ impediria a dedução do instituto em exame da base de cálculo do lucro real, especialmente porque, até 2014, a legislação era silente a esse respeito.
12. Quando desejou excluir, de plano, o ágio interno, o legislador o fez expressamente (com a inclusão do art. 22 da Lei n. 12.973/2014), a evidenciar que, anteriormente, não havia vedação a ele.
13. Se a preocupação da autoridade administrativa é quanto à existência de relações exclusivamente artificiais (como as absolutamente simuladas), compete ao Fisco, caso a caso, demonstrar a artificialidade das operações, mas jamais pressupor que o ágio entre partes dependentes ou com o emprego de “empresa-veículo” já seria, por si só, abusivo.” (grifos do colunista)
Que a única saída está na lei é evidenciado de forma cabal no caso do IRF sobre remessas de afretamentos de embarcações. Foi uma mudança legislativa que fez o Fisco retroceder e parar de autuar e que deveria, por isso, reverter favoravelmente aos contribuintes as cobranças administrativas e judiciais dirigidas às prestadoras de serviços de perfuração que atuam em conjunto com as empresas de afretamento ao abrigo de contratos coligados e foram injustificadamente tributadas, como visto, pela via oblíqua da indedutibilidade de despesas ou tributação de aportes ou empréstimos.
Com efeito, a Lei nº 13.586/2017, alterou a Lei nº 9.481/1997, estabelecendo uma limitação à aplicação da alíquota 0% do IRF sobre as remessas ao exterior quando ocorrer execução simultânea de contrato de afretamento ou aluguel de embarcações marítimas e de contrato de prestação de serviço relacionados à exploração e produção de petróleo ou de gás natural, celebrados com pessoas jurídicas vinculadas entre si.
Dispõe, assim, o novo §9º do artigo 2º da Lei nº 9.481/97:
“§ 9º. A partir de 1º de janeiro de 2018, a redução a 0% (zero por cento) da alíquota do imposto sobre a renda na fonte, na hipótese prevista no § 2º deste artigo, fica limitada aos seguintes percentuais:
I – 70% (setenta por cento), quanto às embarcações com sistemas flutuantes de produção ou armazenamento e descarga;
II – 65% (sessenta e cinco por cento), quanto às embarcações com sistema do tipo sonda para perfuração, completação e manutenção de poços; e
III – 50% (cinquenta por cento), quanto aos demais tipos de embarcações.”
Ou seja, caso a remuneração do afretamento exceda aos percentuais acima, a porção excedente será tributada pelo IRF de 15%, resolvendo, assim, a insatisfação fiscal com os casos de split de remuneração contratual que eram da ordem de 80% para os afretamentos dos sistemas de perfuração, completação e manutenção e poços e agora foram forçados, pela limitação da isenção, para o patamar de 65%.
A virulência das autuações fiscais sem base legal, que conduziu à reação dos parlamentares para extinguir o voto de qualidade e a reintrodução autoritária do sistema pelo executivo por medida provisória acabou, como se viu, de início, criando uma grande tensão entre fisco e contribuintes, que resultou em uma solução intermediária consistente na Lei nº 14.689/2023.
De acordo com a nova legislação o empate na votação, com o uso do voto de qualidade em favor da Fazenda Pública, dará ensejo ao: (1) cancelamento automático das multas de lançamento de ofício e de qualquer outra natureza exigidas no processo administrativo; (2) cancelamento da representação fiscal para fins penais; (3) direito do contribuinte ao pagamento do débito, em até 90 dias, sem juros de mora, em até 12 prestações e com a possibilidade de utilização de prejuízos fiscais e bases negativas de CSLL.
A lei reconhece, assim, que o empate na votação traduz uma dúvida legítima quanto à procedência da exigência fiscal. Pode afirmar-se que se trata corolários do princípio in dubio pro contribuinte, princípio de proteção do direito de propriedade tutelado pela Constituição, tal como o da liberdade individual, que informa o in dubio pro reo, princípios comezinhos que o ministro da Fazenda lamentavelmente desdenha e parece ignorar ao equiparar contribuintes que estão exercendo seu direito de defesa a detentos.
Mas não pensem que esse novo regramento foi facilmente obtido. Deveu-se à aguerrida atuação junto aos congressistas das entidades representativas dos “contribuintes-detentos”, que lutaram para reverter a duríssima MP original que simplesmente ressuscitava o regime anterior, sem qualquer consequência favorável para os particulares em caso de empate nas votações.
A melhor solução para os contribuintes, porém, é muito simples. Basta que o Fisco, antes de qualquer julgamento, na prática do lançamento, atue dentro dos estritos limites da legalidade, como bem registrou, com profunda indignação, do alto de seus 30 anos de magistério, o juiz federal Marcelo Guerra Martins, da 13ª Vara Cível Federal de São Paulo, em sentença proferida no processo 50145538-74.2021.4.03.6100:
“Infelizmente, após mais de 30 (trinta) anos lidando com o direito, venho constatando um crescente menoscabo dos preceitos legais, venho constatando que autoridades públicas estão desconsiderando e ou incluindo dizeres não pronunciados pelo legislador, o que é muito grave, ainda mais em se tratando da tributação que, em suma, atinge o patrimônio das pessoas físicas e jurídicas tornando-as menos capazes de satisfazerem suas necessidades e desejos.
É preciso, ao menos na seara do direito público, resgatar o princípio da legalidade em seus termos estritos, numa revalorização da vetusta interpretação gramatical da norma tanto desprezada nos últimos tempos por supostas doutrinas ditas progressistas, arrojadas, libertárias etc. O resultado é este que se vê atualmente, ou seja, crescente insegurança jurídica, opacidade de fronteiras entre o lícito e o ilícito, aumento dos custos de transação e as consequências daí decorrentes”.
Fonte: Conjur