No dia 31/10/23, a Câmara dos Deputados aprovou um Projeto de Lei que prevê o aumento de penas para furto, roubo, latrocínio e outros crimes. O texto, que aguarda apreciação pelo Senado, é um substitutivo do deputado Alfredo Gaspar para o Projeto de Lei idealizado pelo deputado Kim Kataguiri e outros. [1]
Com a mudança, a pena do roubo passaria de quatro a dez anos para seis a dez anos de reclusão. Além disso, haveria a inserção de duas novas causas de aumento: i) no caso de roubo de equipamentos ou instalações ligadas a serviços públicos e; ii) roubo de dispositivo eletrônico ou informático. Em relação ao latrocínio, a pena passaria de 7 (sete) a 18 (dezoito) anos para 16 (dezesseis) a 24 (vinte e quatro) anos, se o projeto virar lei.
No que tange ao furto simples, a pena passaria de um a quatro anos para dois a seis anos. Somado a isso, aumentar-se-ia a pena de metade se o furto fosse cometido durante o repouso noturno. Quanto ao furto qualificado, a pena passaria a ser de três a oito anos, adicionando ao rol de incisos mais uma hipótese qualificadora:
“a subtração de equipamento ou instalação que possa prejudicar o funcionamento de serviço de utilidade pública, como telecomunicações, energia elétrica, abastecimento de água, saúde e transporte público”.
A proposta visa, também, aumentar as penas previstas nos parágrafos 4º-B, 4º-C, 5º, 6º e 7º do artigo 155.
O crime de receptação também sofreria significativas alterações com o PL nº 3.780/2023.
Como é hoje
Hoje, pune-se o delito com pena de um a quatro anos e reclusão, no entanto, com o referido projeto de lei, passaria a ser punido com pena de dois a seis anos.
Para além disso, seria adicionado ao crime mais uma qualificadora, qual seja, a receptação que envolvesse equipamento ou instalação que prejudique o funcionamento de serviço de utilidade pública, punida com o dobro da pena do caput. No que tange a pena do crime de receptação animal, passaria a ser de três a oito anos.
Por fim, quanto ao artigo 171 do Código Penal (estelionato), seria adicionado ao texto legal a hipótese de fraude bancária e, ao crime de fraude eletrônica, a hipótese de duplicação de dispositivo eletrônico ou aplicação de internet.
A proposta desse breve artigo é refletir sobre uma obviedade, mas a partir de fundamentos de filosofia do Direito Penal que são, por sua natureza, complexos: afinal, qual a função da pena? Melhor dizendo: afinal, quais os limites às penas? E, ainda: aumentar penas significa, propriamente, diminuir crimes?
Por mais antiga que pareça essa discussão (e ela verdadeiramente o é! Sêneca que o diga!), a sensação é a de que não aprendemos nada sobre ela.
Não conseguimos, de fato, compreender os fundamentos filosóficos (para Ferrajoli, axiológicos) do Direito Penal, não conseguimos alcançar as críticas bem fundadas da Criminologia, e, pior de tudo, não desenvolvemos a capacidade de dar conta dos dados da realidade (a advertência vem de Zaffaroni).
Todas as alterações supracitadas refletem a visão equivocada e punitivista, fundada na prevenção geral negativa, de que o crime se combate com pena.
Não é de hoje, sob o argumento da impunidade, que o Direito Penal é utilizado, tanto pelo discurso do poder público, quanto pela fala comum, como salvador de uma sociedade aterrorizada e insegura.
Rubens Casara sustenta que isso se dá pela formação de um imaginário autoritário e um inconsciente inquisitorial de uma cultura que aposta na força como forma de solucionar problemas sociais:
Nos modelos autoritários, e o Estado Pós-Democrático tende ao autoritarismo, o Sistema de Justiça Criminal funciona como um aparelho voltado exclusivamente à imposição de penas. No Estado Pós-Democrático o que há é uma empresa punitiva. E a pena consiste, em última análise, sempre na imposição de um sofrimento, apresentado como resposta aos fatos rotulados como criminosos, a determinada pessoa de carne e osso. Em meio à confusão entre crime e pecado, entre direito e moralismo, os direitos e as garantias fundamentais, ainda quando previstos formalmente na legislação de um país, acabam percebidos e afastados como obstáculos à atividade repressiva do Estado [2].
Muito já se disse sobre a total ineficácia dessa estratégia de aumentar as penas para gerar a sensação de segurança coletiva. Mais penas severas não significam menos crimes, somente mais gente presa. Parece de uma obviedade até simplória. Confundir punição com eficácia deveria estar fora de moda. Mas… como estamos em tempos em que obviedades precisam ser ditas…
Nosso ponto será o seguinte: ao se confundir punição com eficácia, confunde-se (ou ignora-se) o papel mesmo do Direito Penal.
Para que serve, ou melhor, para que deve servir?
A culpa — convenhamos — não é somente do senso comum! A própria doutrina do Direito Penal — ao não questionar certas premissas — reproduz a falácia.
Como o espaço desse artigo é pequeno, não vamos discutir todas as correntes da filosofia do Direito Penal sobre a justificação (ou não) do poder de punir.
Vamos nos centrar somente em uma única proposta: a prevenção geral negativa, pois é sobre ela que se fundamenta o projeto de lei mencionado acima, como, de modo geral, todo e qualquer discurso de incremento punitivo.
A chamada “prevenção geral negativa” integra o bloco utilitarista das justificações do poder de punir.
Parte do princípio de que os riscos sociais iminentes (crimes) precisam ser severamente reprimidos, por meio da elevação das sanções, como estratégia de coagir a coletividade (por isso, geral) a não praticar delitos (por isso, negativa).
A prevenção geral negativa, pois, apoia-se na noção de que a ameaça causada pelo crime precisa ser contida com a intimidação produzida pela pena, que seria, então, responsável por induzir temor e dissuadir as pessoas de uma futura prática delitiva [3].
Acredita-se que a pena exerceria uma coerção psicológica contra a “vontade” de ferir bens jurídicos alheios.
A argumentação de que a pena é capaz de impedir a prática de crimes nos levaria a um ponto extremo, com o total descontrole do poder de punir.
Ou seja, bastaria alegar uma emergência contra a sociedade, para autorizar o Estado a elevar as penas do suposto crime.
Quanto mais ameaçada se sentir a população, mais o Estado estará autorizado a impor penas, sem qualquer preocupação jurídica com a sua duração ou elasticidade.
Para Giuseppe Bettiol [4], o ponto de chegada da lógica da prevenção seria a pena de morte para todos os crimes, já que quanto maiores forem as penas maior será a “coação psicológica” para o não cometimento de um delito.
Porém, se para impedir crimes fosse necessário apenas punir severamente, o Brasil estaria livre dos delitos! Afinal, o que não nos faltam são leis penais gravosas e pessoas a entupir os cárceres! Contamos, atualmente, com quase 900 mil presos e, em 2023, alcançamos a maior população carcerária em toda a nossa história [5].
Logo se vê, como adverte Caetano, que “alguma coisa está fora da ordem”. Há alguns encaixes que precisamos fazer, para ter a exata noção teórica do que está por trás desse discurso fácil.
Garantismo
Apesar da má fama que carrega, de ser uma teoria caracterizada pela defesa da impunidade e de toda sorte de abrandamentos punitivos [6], não há dúvidas de que o Garantismo Jurídico-Penal de Luigi Ferrajoli é uma teoria legitimadora do poder punitivo.
Isso significa dizer que, dentre as doutrinas penais, o Garantismo encontra na punição alguma finalidade compatível com a justificação externa do Direito Penal.
A escolha do Garantismo, aqui nesse breve artigo, por evidente, não é aleatória. Ela se justifica por diversas razões, mas sobretudo, porque:
i) trata-se de uma teoria que propõe a limitação ao poder de punir;
ii) sendo de matriz positivista, separa claramente moral e direito e, assim, diferencia o que é daquilo que deve ser, afastando a tentação de se inviabilizar uma proposta de dever ser, tomando por base um fato empírico;
iii) embora sendo uma doutrina justificadora do poder punitivo, estabelece, claramente, dois escopos ao Direito Penal: a prevenção dos crimes e — mais importante — a prevenção das reações aos crimes, sejam as informais, sejam as formais.
As duas primeiras razões acima destacadas são de fundamental importância. O Garantismo está preocupado em conter a violência e, assim, limitar o poder punitivo. Ferrajoli, por sua vez, não é um teórico ingênuo. Todo o contrário.
Ele sabe, perfeitamente, a quantas andam os sistemas carcerários que temos. Porém, à parte essa consciência, Luigi Ferrajoli é um positivista, isto é, ele propõe um modelo (e como modelo, jamais totalmente realizável) de dever ser. O Direito deve ser assim ou assado, embora não seja. Porém, não é porque ele não é, que se vai atacar a proposta de dever ser. Lei de Hume: não se pode extrair conclusões normativas de premissas empíricas, nem vice versa! Simples assim! [7]
Trocando em miúdos: não é porque o Direito Penal não previne crimes, que não os deve prevenir. Não é porque o Direito Penal não evita penas infamantes, que não as deve evitar.
Não é porque o Processo Penal não consegue assegurar plenamente a presunção de inocência, que não deve fazê-lo! Não é porque o sistema de saúde vai mal que devemos matar os doentes!
O Garantismo, pois, conhece (e reconhece) as mazelas do cárcere, mas acredita que a forma adequada (e racionalmente indicada) para enfrentá-las é por meio do próprio Direito, admitindo a legitimidade do exercício do poder de punir, se e somente se a violência for, de fato, reduzida.
Ou, dito de outra forma, se e somente sim as regras do jogo forem respeitadas, Punir é democrático, mas punir de qualquer forma é tirânico.
E aí chegamos ao ponto do presente ensaio: o utilitarismo garantista (ou reformado) de Luigi Ferrajoli. A ele, pois.
Ferrajoli é um utilitarista? Sim! Porém, não um utilitarista clássico, que está preocupado somente com o bem-estar da maioria. Lembremos que, para o Garantismo, a regra de maioria é muito, mas está longe de ser tudo!
Ferrajoli defende um aspecto material da democracia, que significa o respeito às diferenças e tutela de direitos de todos, ainda que, porventura, não configurem eventual maioria [8].
Os desviantes, os investigados, os imputados, enfim, pessoas atingidas pelo braço pesado do Estado-Penal, não configuram maioria, Na verdade, talvez uma maioria quisesse até mesmo aniquilá-los.
Para o Garantismo, porém, são sujeitos de direito e, nessa condição, precisam ser olhados. Daí porque um utilitarismo garantista, além de mirar ao bem estar da maioria (ao defender que crimes precisam ser prevenidos), mira — e com muito mais vigor — ao bem estar da minoria (ao defender que reações violentas aos crimes precisam ser prevenidas).
Ferrajoli propõe, dessa forma, uma revisão da prevenção geral negativa, sustentando o que chama de utilitarismo reformado.
A pena deve, além de evitar a prática de crimes, refrear as reações violentas [9]. Isso significa dizer que a minoria desviante, ao passar por um processo judicial, estaria segura das reações populares que seriam ainda mais violentas que a pena, ou seja, linchamentos sumários, execuções etc.
Sobre isso:
Esse é o utilitarismo revisitado pelo garantismo. Sugerindo um segundo parâmetro de utilidade, Ferrajoli propõe que ao máximo bem-estar possível dos não desviados, corresponda o mínimo mal-estar necessário aos desviados, acreditando que o outro fim do Direito Penal (além de prevenir delitos) é evitar a maior reação informal que a falta da pena poderia provocar na parte ofendida ou em forças sociais ou institucionais solidária com ela. Enfim, o Direito Penal presta-se para prevenir não apenas os delitos, mas também os castigos injustos; protege não somente o ofendido, mas também o ofensor (frifos nossos) [10].
O Direito Penal assume, portanto, uma dupla função: 1) prevenção dos delitos, ao estabelecer um limite mínimo de pena atendendo os anseios da maioria não desviada; e 2) prevenção das penas arbitrárias, ao estabelecer o limite máximo das penas, refletindo os interesses da minoria (os imputados).
Trazendo a discussão para o projeto de lei mencionado no início desse breve artigo, vemos que a ideia ali colocada diz somente com um dos escopos do Direito Penal (evitar crimes), sem qualquer preocupação com o outro (evitar penas arbitrárias), o que nos leva a uma visão totalmente capenga de eficácia! Sobretudo, quando constatamos que a sanha de punição constante do projeto possui como foco, exatamente, o patrimônio privado!
De mais a mais, todos os códigos penais e processuais penais que vigoraram no Brasil trazem consigo uma tradição marcadamente patrimonialista, comportando-se como instrumentos de proteção a determinados segmentos da sociedade [11].
Se o Código Criminal do Império de 1830 tinha como principal objetivo a proteção dos senhores e de seu patrimônio, sem nenhuma inibição, focalizando suas forças aos escravizados e ex-escravizados [12], o Código Penal de 1940 — ainda em vigor — também o faz, mas com sutileza aparente.
Descreve-se o inimigo com maior cautela nos tipos penais, porém, protege-se o patrimônio com a mesma intensidade secular [13], na tentativa de escamotear o real objetivo da tradição autoritária de nossos códigos, verdadeira constante no que diz respeito à proteção patrimonial.
Em suma: trata-se de uma proposta que mira o patrimônio (repetindo a lógica patrimonialista, racista e estamental de toda a nossa tradição jurídico-penal), ignorando, por completo, a necessidade de limitação ao poder de punir, para evitar reações arbitrárias (escopo garantista do direito penal).
Falta uma séria teoria de bem jurídico, para — afinal de contas — elencar prioridades na repressão penal e fata, principalmente, uma concepção teórica densa sobre os fins do Direito penal, num Estado Democrático de Direito.
Se não sabemos para que serve o Direito Penal, seguiremos engolindo respostas fáceis para problemas complexos. Um Direito Penal eficaz somente se dará por meio do respeito intransigente dos direitos fundamentais de toda a pessoa. A eficácia espelhada no aumento das penas é tão mitológica, quanto mentirosa. Como, de resto, costumam ser todos os mitos…
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REFERÊNCIAS
BETTIOL, Giuseppe. O problema penal. Trad. Fernando de Miranda. Coimbra: Coimbra Editora, 1967.
CASARA, R. R. R. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 67.
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta, 2000.
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 1995.
FERRAJOLI, Luigi. El derecho como sistema de garantías. In: ______. Derechos y Garantías: La ley del más fuerte. Madrid: Trotta, 1999.
PINHO, Ana Cláudia Bastos de; ALBUQUERQUE, Fernando da Silva. Precisamos falar sobre garantismo: limites e resistência ao poder de punir. São Paulo: Empório do Direito, 2019
SALES, José Edvaldo Pereira. Autoritarismo e Garantismo: tensões na tradição brasileira. 1 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021
[1] Disponível aqui.
[2] CASARA, R. R. R. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 67.
[3]PINHO, Ana Cláudia Bastos de; ALBUQUERQUE, Fernando da Silva. Precisamos falar sobre garantismo: limites e resistência ao poder de punir. São Paulo: Empório do Direito, 2019, p. 23.
[4] BETTIOL, Giuseppe. O problema penal. Trad. Fernando de Miranda. Coimbra: Coimbra Editora, 1967.
[5] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasil-tem-832-mil-presos-populacao-carceraria-e-maior-que-a-de-99-dos-municipios-brasileiros.shtml.>. Acesso em: 02 nov 2023.
[6] “Garantismo è parola svilita, deturpata dall’abuso.Spesso, e comprensibilmente, suscita sospetto, insofferenza. Evoca, nell’immaginario di molti, cavilli procedurali e scaltrezze curiali”. In: IPPOLITO, Dario. Lo spirito del garantismo: Montesquieu e il potere di punire. Roma: Donzelli editore, 2016, p. 10.
[7] Em nota de rodapé (nº 15), Ferrajoli explicita que por “Lei de Hume” deve-se entender como a tese segundo a qual não podem derivar logicamente conclusões prescritivas ou morais de premissas descritivas ou fáticas, nem inversamente (FERRAJOLI, 1995, p. 241). Além disso, ao estabelecer as suas teses teóricas sobre a separação direito x moral, Ferrajoli atribui destaque à tese meta-lógica derivada da aplicação da denominada “Lei de Hume”. Isso significa dizer que é vedada a derivação do direito válido do direito justo, assim como a derivação do direito justo do direito válido, sendo consideradas “falácias ideológicas” todas as argumentações que cometam esse erro.
[8] Ferrajoli entende que nem tudo pode ser decidido com base na regra da maioria. O respeito e a tutela dos direitos fundamentais de toda e qualquer pessoa funcionam como um limite substancial ao poder de decisão das maiorias democráticas. Os direitos fundamentais funcionam, portanto, como um freio ao poder de maioria (FERRAJOLI, p. 15-45, 1999).
[9]FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta, 2000, p. 331.
[10]PINHO, Ana Cláudia Bastos de; ALBUQUERQUE, Fernando da Silva. Precisamos falar sobre garantismo: limites e resistência ao poder de punir. São Paulo: Empório do Direito, 2019, p. 59
[11] SALES, José Edvaldo Pereira. Autoritarismo e Garantismo: tensões na tradição brasileira. 1 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021. P. 131.
[12] SALES, José Edvaldo Pereira. Autoritarismo e Garantismo: tensões na tradição brasileira. 1 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021. P. 94
[13] SALES, José Edvaldo Pereira. Autoritarismo e Garantismo: tensões na tradição brasileira. 1 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021. P. 102.
Fonte: Conjur