Defesa da democracia não pode depender do Judiciário, diz pesquisador

Embora seja visto como uma barreira ao autoritarismo no Brasil e no exterior, o Judiciário tem poder limitado para proteger a democracia e os direitos individuais. A avaliação é do pesquisador britânico Chris Thornhill, professor de Direito na Universidade de Birmingham.

 

Especialista em Direito Constitucional Comparado, Thornhill lançou em dezembro passado o livro A Sociology of Post-Imperial Constitutions: Suppressed Civil War and Colonized Citizens, publicado pela editora da Universidade de Cambridge.

Na obra, que não foi lançada em português, o professor estuda a evolução das constituições pelo mundo desde o século 18. No livro, ele argumenta que os regimes constitucionais têm retomado, nos últimos anos, um caráter militarizado que era uma tendência histórica até a Segunda Guerra Mundial, mas que havia se enfraquecido.

O pesquisador, que está no Brasil como professor visitante do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), falou à revista eletrônica Consultor Jurídico sobre as constituições modernas, avaliou a solidez das democracias pelo mundo e tratou do papel e dos limites do Judiciário nesse processo.

“No Brasil, o Judiciário tem conseguido, em linhas gerais, preservar as condições institucionais, políticas e normativas para a democracia. Não digo que o STF acertou em tudo, mas tem sido melhor do que as supremas cortes em outras democracias ameaçadas ou sob pressão. Melhor do que a Suprema Corte dos EUA, por exemplo”, diz.

Thornhill sustenta que o Judiciário tem poder limitado para conter crises democráticas. “Os tribunais não conseguem fazer isso sozinhos. Se eles sofrem pressão política por um longo período, capitulam. E a composição desses tribunais pode ser alterada com muita facilidade. A capacidade das instituições judiciais de proteger os direitos individuais, que são um requisito básico da democracia, foi corroída ao longo do tempo.”

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Seu livro mais recente trata da história das constituições modernas. Pode resumir o teor da obra?
Chris Thornhill — O livro é uma tentativa de reconstruir o desenvolvimento do Direito Constitucional desde o século 18. Meu argumento, em essência, é que a elaboração de constituições é orientada por imperativos de segurança. As constituições refletem o ambiente internacional de segurança do momento histórico em que foram criadas.

Até o final da década de 1980 as constituições eram, em geral, guiadas pela necessidade de mobilizar a força militar para conflitos internacionais, um fenômeno que está ligado ao imperialismo. A partir desse período, início dos anos 1990, vimos um declínio da pressão do imperialismo sobre o Direito Constitucional. As constituições foram, então, estabilizadas com base em direitos individuais e no Estado de bem-estar social.

Esse panorama, porém, voltou a mudar em anos recentes. Podemos observar uma nova tendência de militarização nas constituições, ou formas de constitucionalismo em que os militares têm papel importante. O ambiente de segurança internacional está novamente influenciando o Direito Constitucional.

ConJur — Em que países ou regiões o sr. notou a retomada da militarização no Direito Constitucional?
Chris Thornhill — O livro faz uma distinção entre dois tipos de militarização: vertical e horizontal. Na vertical, que tem foco na segurança externa, os governos buscam legitimidade integrando os cidadãos aos exércitos regulares e tratando o conflito militar como a maior ameaça a essa legitimidade. Já a militarização horizontal é uma resposta a um possível conflito civil. Nesse caso, os governos se legitimam por meio da gestão desse conflito, ou tomando partido nele.

A dimensão vertical tem sido observada na Europa. Vários governos europeus caminham para uma remilitarização constitucional principalmente devido à guerra na Ucrânia, mas também pelas mudanças nas políticas de segurança dos EUA. Processos semelhantes têm aparecido na Índia e em países da Ásia Central.

Também temos exemplos a nível horizontal. Nos EUA, o aparato constitucional criado a partir de 1945 vive uma crise de legitimidade porque o governo promove o descrédito do Direito Internacional. O resultado disso é uma clara incubação de conflitos internos na sociedade americana. A democracia constitucional está mais ameaçada pela intensificação desses conflitos do que pela militarização externa.

ConJur — Como o Brasil se posiciona nessa análise?
Chris Thornhill — O Brasil é uma das democracias constitucionais mais importantes do mundo. Desde 1988, o sistema democrático no Brasil teve conquistas extraordinárias, particularmente no combate à pobreza. É um caso incomum de Constituição que não foi criada por pressões militares e lançou bases para um Estado de bem-estar social.

Mas podemos ver, nos últimos anos, que esse investimento no bem-estar social tornou-se um estopim para vários tipos de movimentos radicais. E estes movimentos assumem uma forma parcialmente militar, ou são apoiadas por atores com força militar.

ConJur — As democracias atuais têm conseguido preservar sua integridade?
Chris Thornhill — Acho importante não ser apocalíptico nessas análises. Não vejo, pelo menos por enquanto, uma crise constitucional global. Nos últimos anos, alguns Estados com grandes populações tornaram-se mais democráticos.

Mas muitos Estados tornaram-se menos democráticos. Eu diria que já é questionável se os EUA são uma democracia. A Rússia claramente não é mais uma democracia. E vários sistemas constitucionais na Europa não correm necessariamente o risco de um colapso democrático, mas podem enfraquecer as estruturas da democracia por influência de regimes populistas.

Já o Brasil, como sabemos, sobreviveu a um desafio muito sério à democracia. Em alguns aspectos, o sistema constitucional brasileiro se mostrou mais resistente que o de países europeus.

ConJur — O Judiciário tem conseguido exercer seu papel na preservação da democracia?
Chris Thornhill — Uma coisa que venho repetindo em minhas publicações, nos últimos anos, é que não sabemos muito sobre democracia. Não temos um arcabouço teórico muito forte sobre como ela se desenvolve e como pode ser estabilizada.

O que sabemos com bastante segurança é que a democracia geralmente tem dois pré-requisitos: ela precisa estar pautada pelo Direito Internacional dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, ter um sistema robusto de bem-estar social, que englobe renda, saúde e educação. A questão, portanto, é saber se os órgãos judiciais nacionais são capazes de preservar essas condições.

No Brasil, o Judiciário tem conseguido, em linhas gerais, proteger as condições institucionais, políticas e normativas para a democracia. Não digo que o STF acertou em tudo, mas tem sido melhor do que as supremas cortes em outras democracias ameaçadas ou sob pressão. Melhor do que a Suprema Corte dos EUA, por exemplo.

Mas o que podemos ver a nível global é que os tribunais não conseguem fazer isso sozinhos. Se eles sofrem pressão política por um longo período, capitulam. E a composição desses tribunais pode ser alterada com muita facilidade. A capacidade do Judiciário de preservar um requisito básico da democracia, que é a proteção dos direitos individuais, foi corroída ao longo do tempo.

O que podemos observar pelo mundo, de maneira praticamente invariável, é que ataques ao Judiciário são um sinalizador de crise democrática. Quando governos começam a se voltar contra a democracia, ou são influenciados por movimentos antidemocráticos, a hostilidade ao Judiciário é o primeiro indicador disso.

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O IRPF e o abatimento dos gastos com planos de saúde empresariais

É fato que os planos de saúde são caríssimos e que possuem uma política de negócios que concede descontos significativos se os contratos forem firmados por meio de uma pessoa jurídica. Caso membros de uma família sejam sócios de uma empresa, é usual que seu plano de saúde seja por ela custeado, sendo a despesa abatida no IR corporativo — me refiro às empresas em geral, inclusive os family office e as tributadas pelo lucro presumido ou pelo Simples.

O aspecto aqui analisado ocorre nas famílias que não possuem empresas para administrar seus negócios e criam uma pessoa jurídica apenas para aproveitarem os descontos ofertados pelos planos de saúde. Tais empresas serão pessoas jurídicas “formais”, pois não possuirão receita, nem operacional e nem financeira, tendo sido criadas apenas para a contratação do plano de saúde da família, aproveitando a substancial redução de preços ofertada no âmbito negocial. O problema está no fato de que o contrato é firmado com essa pessoa jurídica formal, e, como ela não possui receita, não tem como utilizar esse valor como despesa para fins de apuração de seu Imposto de Renda corporativo.

Haverá a possibilidade de abater esse valor do Imposto de Renda das pessoas físicas que efetivamente custeiam essa despesa, a despeito de o contrato ser firmado com uma pessoa jurídica com esse perfil?

A resposta será negativa caso seja reconhecida a prevalência da forma sobre a essência dessa operação negocial, pois o contrato será firmado com a pessoa jurídica, e o custeio deveria ser realizado por esta, com o correspondente aproveitamento da despesa para fins de apuração do Imposto de Renda corporativo — embora, na prática, isso não vá ocorrer, pois não possui receita.

Ao revés, a resposta será positiva caso seja reconhecida a prevalência da essência da operação negocial sobre a forma, pois o desembolso efetivo ocorreu pelas pessoas físicas que custearam os valores correspondentes ao plano de saúde. A comprovação dessa operação deverá se dar por meio de extratos bancários que demonstrem que as pessoas físicas pagaram os valores correspondentes; e que a pessoa jurídica formal — que não possui receita — não tinha como custeá-los, e, portanto, não utilizou dessa despesa em seu Imposto de Renda corporativo.

Como não estou entre aqueles que fazem prevalecer a forma dos negócios jurídicos sobre sua essência, admito a segunda hipótese, entendendo como válido o abatimento dos gastos com saúde nas declarações de ajuste do Imposto de Renda das pessoas físicas que efetivamente custearam aquela despesa, muito embora formalmente o contrato tenha sido firmado com uma pessoa jurídica.

Alguém poderá dizer que se trata de planejamento fiscal abusivo, atribuindo uma carga semântica negativa a essa expressão, carimbando-a como perniciosa ao Fisco. Trata-se de um engano.
O CTN, no parágrafo único do artigo 116, prescreve que “a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”.

Iniciemos abstraindo o fato de que ainda não foi editada a lei ordinária mencionada no parágrafo único do artigo 116, CTN, o que compromete sua eficácia jurídica. Centremos a atenção na finalidade dessa norma, que é a de dissimular “a ocorrência do fato gerador do tributo” ou “a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”. O caso relatado não está presente em qualquer dessas duas hipóteses.

Não há “dissimulação”, pois a operação é claríssima, escancarada, e decorre de um modelo de negócios das empresas que comercializam planos de saúde.

Também não há o afastamento dos “elementos constitutivos da obrigação”, pois não existe duplicidade de aproveitamento da mesma despesa, o que ocorreria se a pessoa jurídica formal e a física se utilizassem dele ao mesmo tempo.

O que existe é uma operação efetiva daquele núcleo familiar com o plano de saúde que pratica esse modelo de negócios. Trata-se de uma operação negocial lícita, pois os contratantes têm o direito de organizar seus negócios da maneira que entendem mais adequada, consoante o modelo de negócios firmado entre partes privadas.

Observando com lupa: qual a perda do Fisco nessa operação? A empresa não terá utilizado a despesa (aspecto importante, pois, caso contrário, toda a análise jurídica é modificada) e os contribuintes pessoas físicas efetivamente pagaram aquela despesa (o que deve ser provado), obtendo o direito de a abater. Na prática, ocorre uma espécie de desconsideração da pessoa jurídica pelo contribuinte para contratação de um plano de saúde com maior desconto.

Trata-se de uma operação lícita caso existam provas da não utilização da despesa pela pessoa jurídica formal e do efetivo pagamento pela pessoa física, gerando para esta o direito de abater esses gastos com plano de saúde em sua declaração de ajuste do Imposto de Renda. Trata-se da prevalência da essência econômica da operação sobre a singela forma jurídica.

Última observação de cunho lateral: se uma situação como a descrita pode causar alguma confusão, imaginem se o PLP 1.087 for aprovado (analisado anteriormente aqui) e retornar a análise fiscal da distribuição disfarçada de lucros nas empresas que declaram pelo lucro presumido e pelo Simples. Será uma festa para a litigância tributária.

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O paradoxo Tostines, as redes sociais e o teste para brain rot: faça aqui!

Nem todos conhecem o “paradoxo Tostines”. Na época, a maioria chamou de “dilema Tostines”. Dilema é quando temos decisões a tomar e qualquer delas é trágica. Um exemplo é o dilema do trem, em que, para não matar dez pessoas, desvia-se o bólido e mata uma. Já o paradoxo trata de algo sobre o qual não podemos decidir.

Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho por que vende mais?  Trata-se de um paradoxo. Os mais jovens não sabem o que é, porque só frequentam redes sociais, com o que, paradoxalmente, em face do excesso de informações, acabam sem conhecimento algum. Como dizia T.S. Eliot, informação não é conhecimento; conhecimento não é saber; saber não é sabedoria.

Interessante notar que o número crescente de smartphones e quejandices tecnológicas, face à facilidade com que se tem acesso a informações, deveria diminuir o número de néscios e similares. Porém, mais informação, mais néscios. Informação demais é informação de menos. Eis aí outra questão paradoxal.

Voltando ao paradoxo Tostines: as redes sociais são superficiais e produtoras de ignorância porque se retroalimentam de ignorantes ou os ignorantes são assim porque frequentam as redes sociais?

Na mesma linha, o que veio primeiro? A agnotologia (produção deliberada de ignorância) ou o tik tok? Boa pergunta. De difícil ou impossível resposta.

A jornalista Becky Korich, em artigo na Folha de S.Paulo, faz uma ironia (ou sarcasmo) com os testes que aparecem nas redes sociais. Você pode testar seu QI (coeficiente de inteligência), seu índice de gordura, seu grau de cretinice, seu índice de alcoolismo, assim como fazer o teste para saber se você tem a doença da moda, o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção…). Korich alerta: além de confundir compreensão sobre transtornos, conteúdo de redes sociais enfraquece capacidade das pessoas de lidar com suas emoções.

E lá vem o teste:

(i) você esquece onde deixou as chaves do carro ou o celular? Check.

(ii) Tem dificuldade em manter o foco em tarefas entediantes? Check.

(iii) Lê vários livros ao mesmo tempo e demora para terminar? Check.

(iv) Sente incômodo com música alta quando está concentrado? Check.

(v) Esquece com frequência o que ia dizer? Check.

(vi) Sente sono pela manhã?

Korich conclui: mil checks. Sim para todas. Veredito: TDHA (transtorno do déficit de atenção por hiperatividade).

O resultado é instantâneo, mostra a jornalista: “os mestres em ‘medicina Tik Tok’ não sabem quem eu sou, de onde vim, se bebo, se fumo, se durmo bem – mas, de tão experts que são, sabem muito mais sobre mim. Funciona assim: uma lista de perguntas de ‘sim’ ou ‘não’ é lançada e o resultado vem no final, junto com a prescrição do remédio”.

Um estudo recente feito por pesquisadores da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, revelou um dado alarmante: dos sintomas relatados nos vídeos mais populares sobre TDAH no TikTok, que somam quase meio bilhão de visualizações, menos da metade se apoia em fontes confiáveis.  As redes sociais podem ser aliadas da saúde mental. Podem ajudar a espalhar informação de qualidade, aumentar a conscientização e combater estigmas e preconceitos. Mas, quando se trata de redes sociais, os likes são mais valiosos do que a ciência comprovada.

A jornalista conta que, em um vídeo, uma adolescente dança, aparece na tela uma relação de “sintomas” de autismo, como não gostar de usar meias, não misturar salada com o restante da comida e dormir com a TV ligada. “Coisas que eu achei que todo mundo fazia, mas na verdade são sintomas de autismo“, diz a legenda. Impressionante. A vítima do outro lado da tela deve abaixar os dedos da mão para cada característica com que se identifica. Se fechar os cinco dedos: bingo! Positivo para o espectro. Impressionante de novo.

E o espantoso de tudo isso, diz Korich, é que nos comentários muitos usuários engolem o diagnóstico: “Me identifiquei com todas, socorro“, “Sim para todas, mas fui diagnosticada como TDAH e agora estou confusa“, “estou descobrindo que sou autista com 56 anos“, “me identifiquei com 4, devo me preocupar?”.

Os vídeos sobre TEA (transtorno do espectro autista) e TDAH estão entre as dez hashtags relacionadas à saúde mais visualizadas do TikTok. Dos mais populares com a hashtag #autism, só 27% tinham informações precisas sobre o transtorno. Alguns prometem a “cura” para o autismo, oferecendo pulseiras magnéticas, óleos essenciais e outras tolices. Esqueceram as rezas de pastores. Ou Ora Pro Nobis. Até a ingestão de alvejantes foi recomendada como tratamento, que, pasme, alguns pais tiveram a insanidade de aplicar aos seus filhos.

As redes sociais são o lugar da charlatanice em grau semelhante ao das igrejas com cultos televisivos que todos os dias fazem “curas” até de Covid, como foi o caso de um missionário ou pastor que diz ter curado mais de 100 mil doentes de Covid. O problema é que ele mesmo foi entubado, mostrando que a realidade também produz ironias e sarcasmos. Será que ele esqueceu de orar? Ou de pagar o dízimo? Bom, deixem pra lá. Só estou fazendo perguntas. Ironia e fé às vezes se mesclam…!

Nestes tempos de cérebro podre ou apodrecimento cerebral (grupos de WhatsApp também colaboram para o brain rot), as redes sociais são um prato cheio para os pesquisadores. Redes: o lugar sem filtro. Em que um idiota se transforma em opinador.

Bom , nenhum pesquisador pode dizer que morre de tédio. Há de tudo nessa selva.

Talvez possamos fazer um teste para saber se o usuário da rede está com brain rot. Inventei o teste hoje. Vamos lá?

(i) Check 1: você não lê jornal e se informa no seu grupo de whatsapp e Instagram, Tik Tok ou X?

(ii) Check 2: fica mais de uma hora olhando filminhos de tik tok em um dia?

(iii) Check 3: há mais de dois anos não lê um livro?

(iv) Check 4: não resiste à tentação de esculhambar a postagem da qual não gostou?

(v) Check 5: é radicalmente a favor da linguagem simplificada (se você é da área jurídica ou do jornalismo a coisa é ainda mais grave) e tende a acreditar nas informações que circulam – resumidinhas – no Instagram e se sente atraído pelas imagens de sucesso?

Se você respondeu “sim” para as cinco checagens, você já está com brain rot em estágio avançado; se você respondeu quatro checagens afirmativamente, seu quadro é difícil, praticamente impossível de recuperar. Só tratamento de choque como ler livros pode lhe salvar.

Mas um adendo: livros que são genuinamente livros. Se for da área jurídica, não vale livro que reproduz o senso comum teórico jurídico. E não vale sinopse, resumidinho ou simplificado-mastigadinho. Nem musicado. Porque, se for algo desse tipo, o efeito é adverso: excesso de concursismo causa brain rot severo.

Dá para seguir no teste – um modelo premium:

(vi) Check 6: você acredita que “textão” é sinônimo de arrogância ou intelectualismo, e que qualquer ideia que exija mais de 30 segundos de atenção deve ser descartada?

(vii) Check 7: você compartilha frases de efeito sem saber quem disse (ou atribuindo a Clarice Lispector)?

(viii) Check 8: você é fofinho(a)/poliana nos grupos de whatsapp que participa, concordando com tudo e colocando emojis de positivo para qualquer platitude ou truismo?

(ix) Check 9: não sabe o que é platitude

(x) Check 10: você se sente satisfeito por “não saber dessas coisas aí” – sejam elas políticas, históricas, filosóficas ou qualquer assunto que não caiba em um meme? Parabéns, você é um entusiasta da agnotologia. Não tem cura.

Muito cuidado. O pior tipo de brain rot é o brain rot performático. Como se fosse bonito. Há algum tempo, ser estúpido era feio. Depois, passou a ser aceitável. Agora, o feio é estudar. E escrever textos difíceis (sic).

Bem, por hoje, é isso. Bocejei uma vez enquanto escrevia este texto. Deve ser TDAH! Check!

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Análise de impacto e o mito do atraso em decisões regulatórias

Quando o Brasil adotou a AIR (análise de impacto regulatório) como ferramenta obrigatória para subsidiar as decisões regulatórias no país, muitos tomadores de decisão temeram o impacto dessa obrigatoriedade sobre as rotinas das instituições. Ainda há muitos adeptos do entendimento de que a AIR é um procedimento burocrático, demorado e que atrasa a tomada de decisão.

Conforme já nos posicionamos no artigo “Por um uso mais racional da análise de impacto regulatório no Brasil”, a AIR é uma ferramenta valiosa que confere racionalidade e legitimidade às decisões regulatórias. No entanto, para que o seu uso seja compatível com a crescente demanda por soluções regulatórias e com a insuficiência de recursos nas autoridades regulatórias, é fundamental que o Brasil encontre um modelo proporcional de AIR, que priorize o seu uso em propostas regulatórias de maior impacto para a sociedade.

Observado o critério da proporcionalidade, um fator que pode, ainda assim, desencorajar gestores a realizar uma AIR é o tempo de sua elaboração. Como observado em artigos anteriores publicados nesta coluna, a urgência é um dos motivos que frequentemente é utilizado para a dispensa de AIR em casos em que sua realização seria recomendável.

Mensurando o tempo de realização de uma AIR

Mas, afinal, enquanto o Brasil busca o seu modelo ideal, a AIR tem provocado atrasos em decisões regulatórias? Quanto tempo tem sido gasto na elaboração de uma AIR? Em busca de contribuir com esse debate, a equipe de pesquisadores do Projeto Regulação em Números, da FGV Direito Rio, realizou levantamento e análise de 1.415 processos regulatórios, conduzidos entre abril de 2021 e abril de 2024, pelas 11 agências reguladoras federais. O objetivo do levantamento foi explorar os dados disponíveis para compreender o tempo de elaboração da AIR no Brasil.

O tempo de duração de qualquer ação pode ser medido pela sua data de conclusão, com desconto de sua data de início. No caso da AIR, a data de conclusão pode ser representada pela data da assinatura do Relatório de AIR. Mas como identificar o momento em que a AIR começou a ser elaborada? As instituições regulatórias nem sempre deixam registros dos primeiros esforços e discussões orientadas às etapas da AIR.

Diante dessa limitação, adotou-se como proxy do início da elaboração da AIR, a data de abertura do processo regulatório. Trata-se de adotar entendimento de que, em alguma medida, a partir da abertura do processo regulatório, esforços institucionais são dedicados ao estudo do tema, à participação social e à identificação de problemas e soluções, como partes integrantes da AIR. A partir desse entendimento, foi possível estimar o tempo de realização da AIR no Brasil (Tabela 1).

Tabela 1. Tempo gasto com a realização de AIR (mediana, em dias)

Agência Reguladora Federal (1)Tempo estimado (2)
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)543 (n=22)
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)473 (n=44)
Agência Nacional de Águas e Abastecimento (ANA)455 (n=25)
Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)252 (n=20)
Agência Nacional de Aviação Civil (Anac)234 (n=66)
Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT)188 (n=23)
Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP)86 (n=18)
Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)75 (n=13)

(1) A Agência Nacional do Cinema (Ancine), a Agência Nacional de Mineração (ANM) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) não apresentaram volume de AIRs suficiente para apuração dos seus resultados.

(2) O resultado foi apurado, em dias, a partir da diferença entre a data de assinatura do relatório de AIR e a data de abertura do processo regulatório. Foi adotada a mediana para amortecer os efeitos de processos atípicos sobre os resultados.

Os dados mostram importante variação no tempo gasto com a realização de AIR, nas diferentes agências. É possível agrupar as agências em 3 grupos distintos. No primeiro, estão a Aneel, a Anvisa e a ANA. As três agências dedicaram mais de 450 dias à realização de AIR. No segundo grupo, Anatel, Anac e ANTT dedicaram em torno de 200 dias para conduzir suas AIRs. E no terceiro grupo estão a ANP e ANS, que realizaram AIRs em menos de 100 dias.

O tempo gasto com a AIR é proporcionalmente menor do que se imagina

A interpretação desses resultados requer cuidado. Não se pode almejar, a priori, que um regulador se posicione no primeiro, no segundo ou no terceiro grupo. O tempo ideal de dedicação à AIR dependerá de inúmeros fatores, como a complexidade de cada processo regulatório, a disponibilidade de recursos para sua realização, bem como o nível de amadurecimento, informações e conhecimento pré-existentes.

Como já foi mencionado, o objetivo dos reguladores deve ser priorizar o uso de AIR em propostas de maior impacto e evitar o desperdício de recursos na realização de AIRs de menor relevância social. Considerando que algumas pesquisas correlacionam — positivamente — um maior tempo de dedicação à AIR com maior qualidade na análise, a estratégia ideal para os reguladores deve ser fazer boas escolhas sobre quais processos regulatórios merecem AIR e dedicar recursos e tempo para a realização de análises qualificadas.

Voltando à provocação que deu título a esse artigo. É comum que tomadores de decisão dispensem as AIRs ou pressionem suas equipes para que as elaborem rapidamente. Os decisores temem perder oportunidades decisórias e não querem que a AIR signifique atrasos nas respostas regulatórias demandadas pela sociedade. Mas afinal, a AIR tem gerado atrasos em decisões regulatórias?

Para tentar responder essa questão, é necessário adotar uma premissa. Deve-se considerar que o uso da AIR não implicará em atraso na decisão quando o tempo dedicado à sua elaboração for significativamente inferior ao tempo total do processo decisório (tempo necessário para a tomada de decisão). Em outras palavras, não é razoável acusar uma AIR, que levou poucos meses para ser elaborada, por ter atrasado uma decisão que precisou de anos para ser tomada.

Nesse sentido, a tabela 2 compara o tempo necessário para a tomada de decisão com o tempo gasto com a realização de AIR, nas agências reguladoras federais brasileiras.

Tabela 2. Comparativo de tempo gasto com AIR e com a tomada de decisão

Agência (1)Tempo gasto com a realização de AIR(2)Tempo necessário para a tomada de decisão (3)%
Aneel54369778%
ANA45572463%
ANS7518141%
Anvisa473129537%
ANTT18861031%
Anac23482928%
Anatel252109323%
ANP8648718%

(1) A Agência Nacional do Cinema (Ancine), a Agência Nacional de Mineração (ANM) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) não apresentaram volume de AIRs suficiente para apuração dos seus resultados.

(2) O resultado foi apurado, em dias, a partir da diferença entre a data de assinatura do relatório de AIR e a data de abertura do processo regulatório. Foi adotada a mediana para amortecer os efeitos de processos atípicos sobre os resultados.

(3) O resultado foi apurado, em dias, a partir da diferença entre a data do ato normativo e a data de abertura do processo regulatório. Considerou-se apenas os processos com AIR. Foi adotada a mediana para amortecer os efeitos de processos atípicos sobre os resultados.

Os resultados indicados na tabela 2 são esclarecedores. Em seis das oito agências avaliadas, o tempo gasto com as AIRs representou menos da metade do tempo necessário para a tomada de decisão. Mesmo na Aneel e ANA, as duas agências que investiram maior tempo relativo em AIR, foi identificado interstício de tempo superior a 150 dias entre a finalização da AIR e a decisão.

O que se depreende é que não há indícios de que o uso da AIR tenha gerado atrasos em decisões regulatórias. Se atrasos aconteceram, foram processos regulatórios pontuais e atípicos. A análise, a partir de grandes números, indica que houve um hiato entre o tempo que os reguladores precisaram para realizar AIRs e para tomar decisões. Os processos regulatórios podem estar sujeitos a forças, pressões e condições que exigem dos reguladores um amplo tempo para a tomada de decisão. A AIR não é a vilã, ao menos não nesse aspecto.

Este artigo se propôs a examinar alguns dados para inaugurar debate ainda não explorado no país. Examinar o tempo que foi gasto com a elaboração de AIR e se esse tempo repercutiu em atrasos nas decisões. Os resultados indicaram que o uso da AIR não se relacionou com atrasos nas decisões. De modo geral, as agências precisam de muito mais tempo para decidir do que precisam para realizar AIR.

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Ideias fora do lugar: a anistia entre o macro e o microjurídico

A distinção entre as perspectivas macro e micro é usual em diversas ciências. Na Física se estuda a macrofísica, envolvendo teorias como a da relatividade geral, e a microfísica, acerca do conjunto de temas não visíveis a olho nu, como as partículas subatômicas. Na Biologia se analisa a macrobiologia, relativamente aos grandes organismos vivos, e a microbiologia, para os microrganismos, como as células. Nas Ciências Sociais, o clássico livro de Michel Foucault A microfísica do poder analisa as relações interpessoais envolvendo pequenas áreas em que tal poder é exercido, diferentemente da perspectiva macro, que se relaciona às instituições, como o Estado e a Igreja. Essa distinção é usual na Economia, na qual é consagrado o uso das expressões microeconomia e macroeconomia. Tal diferenciação também é aplicável ao Direito, e diversos autores já a utilizaram, como Eros Grau, Gilberto Bercovici, Luiz Fernando Massonetto e Esteban Cottely, conforme expus em texto acadêmico.

De forma simplista, pode-se dizer que são diferentes óticas sobre o mesmo objeto. Observado o fenômeno sob lentes de um microscópio, teremos uma visão micro daquele objeto; se utilizarmos lentes de um telescópio, a visão será macro. Não se pode afirmar que uma ótica é prevalente sobre a outra, mas que se constituem em diferentes métodos de análise, ambos válidos e que podem ser conjugados para se melhor compreender o objeto, que, na prática, se correlaciona com as duas visões, pois são intercambiantes.

Essa distinção é aplicável também ao direito sancionatório. De forma didática, pode-se dizer que as normas jurídicas advindas do Poder Legislativo regulam de forma macroscópica as condutas humanas, considerando os fatores gerais e abstratos relativos a uma determinada conduta. Por exemplo, o artigo 121 do Código Penal (que é uma lei – ato do Poder Legislativoprevê como crime a conduta de matar alguém. Porém, existem atenuantes e agravantes a essa conduta, tais como matar alguém por motivo fútil (o que agrava o crime) ou matar alguém no exercício regular de uma função (o que é até uma excludente na tipificação do crime). A análise dessa conduta no caso concreto é feita por decisão do Poder Judiciário (usualmente uma sentença), que individualiza a norma geral (lei) criada pelo Poder Legislativo. Aqui se vê o macro e o microjurídico colocados na previsão legislativa (macro) e na decisão judicial individual (micro).

Discute-se no Congresso Nacional a concessão de anistia política aos envolvidos nos eventos ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023. Para quem não recorda, trata-se de uma enorme sublevação da ordem na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, na qual foram depredados o patrimônio público na Praça dos Três Poderes, com um quebra-quebra generalizado nos prédios do Congresso Nacional e, em especial, no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal. Mais de 600 pessoas foram presas, a maior parte delas já foi julgada e os culpados foram condenados a penas diversas, obedecido o devido processo legal.

O mais recente ex-presidente da República, junto com outros representantes do alto escalão de seu governo, foram indiciados pela Polícia Federal. Os autos foram remetidos à PGR (Procuradoria Geral da República), que elaborou uma denúncia não se limitando aos fatos ocorridos no dia 8/1, mas demonstrando o desenrolar de um processo, ou seja, os diversos atos realizados ao longo do tempo visando alcançar uma finalidade determinada, que, segundo a peça processual, visavam abolir o Estado Democrático de Direito, dentre outros crimes ali capitulados. Pode-se dizer que a PGR analisou os fatos e os conectou, apresentando-os como um filme (visão macro), e não como uma fotografia estanque de um único evento em determinado local (visão micro). A denúncia foi recebida pelo STF e o julgamento desses réus deve ser iniciado em breve.

Parece óbvio que, considerado isoladamente, de forma microscópica, o uso de um batom para pichar uma estátua se insere como um crime menor, uma depredação leve do patrimônio público. Porém, analisada no contexto, isto é, adotada uma visão macrojurídica, esse ato isolado se conecta a muitos outros fatos, formando o conjunto analisado pelo STF. Não dá para isolar um ato (o uso do batom na estátua) de todos os demais fatos sob análise (a sublevação e a depredação com finalidade determinada), embora a pena seja individual.

Anistia sob lente telescópica

Retorna-se à anistia que está em debate no Congresso Nacional. Alega-se que outras já foram concedidas, com destaque para a veiculada em 1979 (Lei 6.683/79) que concedeu anistia “a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos”, incluindo os servidores públicos “punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”. Essa anistia foi reafirmada pela Emenda Constitucional 26/85, que convocou a Assembleia Nacional Constituinte.

No contexto comparativo direto, na qual se usa um microscópio para ver o fenômeno sob uma perspectiva microjurídica, tendo havido anistia em 1979, seria possível haver anistia semelhante em 2025; todavia, tal análise não esgota a matéria.

Deve-se analisar o contexto macro, isto é, usar lentes telescópicas para se ver com amplitude a cena completa. Em agosto de 1961 ocorreu a renúncia do ex-presidente Jânio Quadros, o que deu início ao processo promovido por militares para impedir a posse do vice-presidente João Goulart, e com reação por parte daqueles que buscavam a solução legalista. Nessa quadra histórica, o que ocorreu foi a busca de uma quebra do Estado Democrático de Direito que então existia, e que culminou com o golpe militar de 1964 e a profusão de atos institucionais e complementares que se seguiram. Olhando por essas lentes telescópicas, pode-se dizer que a anistia de 1979 perdoou (1) aqueles que cometeram crimes a partir de setembro de 1961 em busca da manutenção e da quebra do Estado Democrático de Direito que existia sob a égide da Constituição de 1946; (2) e daqueles cometeram crimes até agosto de 1979 contra e a favor do Estado Não-Democrático de Direito, que teve seu destaque após 1964.

O que se busca em 2025 é uma anistia para quem cometeu crimes tentando violar o Estado Democrático de Direito instaurado no país desde a Constituição de 1988. O cotejo entre os fatos apresenta uma situação completamente diferente, demonstrando o absurdo da equiparação entre as duas situações, a de 1979 com a de 2025. Anistia para os sublevados de 2025 é uma ideia fora do lugar, pois trata como iguais situações diversas. Em 1979 foram anistiados os dois polos antagônicos, embora um deles ainda permanecesse no poder até mesmo em 1985, quando aprovada a EC 26, e em 2025 busca-se uma anistia somente para quem se sublevou contra o Estado Democrático de Direito reinante, e que permanece vigente. Não há identidade entre as duas situações.

Caso o Congresso aprove uma emenda constitucional anistiando os atos ocorridos em 08/01/23, seguramente o STF será levado a se manifestar, gerando enorme tensão entre esses dois Poderes da República, pois não haverá nem mesmo a possibilidade de veto normativo por parte do Poder Executivo.

Haverá quem alegue que a anistia de 1979 foi referendada pela Emenda Constitucional 26/85, e a que se discute em 2025 também o será por meio de uma emenda constitucional. E ainda observar que o STF, em 2010, declarou improcedente a ADPF 153, centrada em debater o conceito de crimes conexos constante da Emenda Constitucional 26/85 (bem como na Lei 6.883/79).

Rota de colisão

Observemos novamente as semelhanças e as diferenças entre as duas situações, utilizando o mesmo método micro e macro.

Macroscopicamente haverá semelhança nas duas situações em face de ser possível uma emenda constitucional conceder anistia política, e que o STF já reconheceu que, sendo concedida por uma emenda constitucional, não há como reverter o ato político proferido (ADPF 153).

Microscopicamente haverá diferença ao se constatar que todos os votos (maioria e minoria do placar de 7×2, com uma ausência e um impedimento) embasaram-se no argumento de que a EC 26/85 havia inaugurado uma nova ordem constitucional no Brasil, após o período militar, fundando as bases da redemocratização, que deu ensejo à Constituição de 1988, fruto de um acordo político que não deveria ser objeto de revisão pelo STF – a dissidência ocorreu no âmbito do alcance semântico do texto acerca da expressão crimes conexos. A situação em 2025 não tem o mesmo status político, tornando-se essa emenda constitucional, caso venha a ser aprovada, apenas mais uma das mais de 130 já existentes, sem qualquer caráter fundante de uma nova ordem jurídico-política constitucional.

Se aprovada uma emenda constitucional anistiando os crimes cometidos em 8/1, haverá no Brasil uma rota de colisão entre o Congresso Nacional e o STF, com o Poder Executivo de mãos atadas. É bem possível que o STF trilhe o caminho relacionado, admitindo a ação que seguramente será proposta por qualquer dos diversos legitimados a fazê-la, e possivelmente decidirá pela inconstitucionalidade da emenda constitucional da anistia. Crise complexa à vista, que paralisará as instituições e dificultará a governabilidade e a economia. Repito: aprovar uma emenda constitucional de anistia para os crimes ocorridos em 8/1 é uma ideia fora do lugar, para usar a consagrada expressão de Roberto Schwarz.

Identificado o iceberg, não precisamos rumar direto para ele. Não somos o Titanic e não devemos colocar em xeque nossa jovem democracia. Desviemos a rota, pois existem muitos problemas reais a serem enfrentados, como o recente tarifaço do presidente Trump, dos Estados Unidos. Não precisamos de uma crise artificial, que está sendo enfrentada de conformidade com as normas do Estado Democrático de Direito.

Em tempo: embora este texto seja centrado na anistia política em debate no Congresso, que seria para todos os envolvidos nos eventos de 8/1 (foco macrojurídico), está sendo usado como argumento retórico a revisão das penas, que é algo a ser feito caso a caso pelo STF (foco microjurídico).

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Participante de estudo clínico que ficou com sequelas deve ser indenizada

A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, confirmou a condenação de um laboratório a pagar R$ 300 mil de indenização para a participante de uma pesquisa clínica que desenvolveu doença dermatológica rara e incapacitante.

A mulher relatou os primeiros sinais da doença dez dias após a segunda rodada de aplicação do medicamento drospirenona + etinilestradiol, uma formulação amplamente utilizada em anticoncepcionais orais.

O estudo visava avaliar a biodisponibilidade e a eficácia de um medicamento similar, que seria lançado pelo laboratório.

Diante dos problemas, ela acionou a Justiça para obter o custeio integral dos tratamentos dermatológico, psicológico e psiquiátrico, além de indenizações por danos morais, estéticos e psicológicos.

O Tribunal de Justiça de Goiás reconheceu o nexo causal entre o uso do medicamento e o surgimento da doença e condenou o laboratório a indenizar a vítima em R$ 300 mil, além de pagar pensão vitalícia de cinco salários mínimos devido à redução da capacidade de trabalho causada pelas sequelas irreversíveis.

Ao STJ, o laboratório alegou que o TJ-GO inverteu indevidamente o ônus da prova, exigindo a produção de uma prova negativa, o que seria impossível.

Além disso, argumentou que os valores da condenação deveriam ser reduzidos, pois a renda da vítima era inferior a um salário mínimo antes da pesquisa, e a manutenção integral da decisão do TJ-GO representaria enriquecimento ilícito, contrariando a própria jurisprudência da corte superior.

Condições de tratamento

A relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, afirmou que a fragilidade da perícia produzida impediu a confirmação, com grau de certeza, do nexo causal entre a administração do medicamento e o desenvolvimento da doença.

No entanto, a ministra enfatizou que o TJ-GO, ao considerar outros elementos que endossavam as alegações da vítima, atribuiu ao laboratório o risco pelo insucesso da perícia, determinando que arcasse com as consequências de não ter demonstrado a inexistência do nexo causal — prova que lhe seria favorável, conforme a dimensão objetiva do ônus da prova.

Além disso, a ministra destacou que a RDC 9/2015 da Anvisa, em seu artigo 12, estabelece que o patrocinador é responsável por todas as despesas necessárias para a resolução de eventos adversos decorrentes do estudo clínico, como exames, tratamentos e internação.

Nancy Andrighi também apontou que a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde exige que as pesquisas com seres humanos, em qualquer área do conhecimento, garantam acompanhamento, tratamento, assistência integral e orientação aos participantes, inclusive nas pesquisas de rastreamento.

Segundo ela, a resolução “responsabiliza o pesquisador, o patrocinador e as instituições e/ou organizações envolvidas nas diferentes fases da pesquisa pela assistência integral aos participantes, no que se refere às complicações e aos danos decorrentes, prevendo, inclusive, o direito à indenização”.

Pensão vitalícia

Por fim, a relatora destacou que o pensionamento mensal de cinco salários mínimos não configura enriquecimento sem causa, uma vez que, ao determiná-lo, o TJ-GO levou em consideração não apenas a subsistência da autora, mas também o valor necessário para cobrir os tratamentos médicos exigidos pelo seu quadro.

“Reconhecida a incapacidade permanente da autora, é devido o arbitramento de pensão vitalícia em seu favor, segundo a orientação jurisprudencial do STJ, não havendo, pois, o limitador da expectativa de vida”, concluiu ela ao negar provimento ao recurso. Com informações da assessoria de imprensa do STJ. 

Clique aqui para ver o acórdão
Processo  2.145.132

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Tributação disfarçada de dividendos e distribuição disfarçada de lucros

Foi enviado ao Congresso em março de 2025 o projeto de lei (PLP 1.087/25) que trata de ajustes na tabela do Imposto de Renda das Pessoas Físicas, isentando quem recebe até R$ 5 mil/mês e criando normas financeiras compensatórias decorrentes dessa redução de arrecadação. Reduzir a tributação para essa faixa de renda é meritório, mas tudo seria mais simples se fosse corrigida a tabela do IR, o que não ocorreu por uma opção política inadequada.

O ponto sob análise é a verdadeira “tucanagem” que foi feita para tributar os dividendos, isto é, os lucros que as empresas distribuem aos seus sócios ou acionistas, para compensar a redução da arrecadação. O que está sendo feito é criar uma tributação disfarçada de dividendos, o que acarretará o retorno da distribuição disfarçada de lucros. De farsa em farsa, demonstremos o que está ocorrendo.

Ao invés de estabelecer que os dividendos passarão a ser tributados, com todo o peso político dessa decisão, o governo decidiu criar um mecanismo complexo, via declaração de ajuste no IRPF, que contém diversas imprecisões, várias delas expostas em um dos painéis do recente IV Congresso do Instituto de Aplicação do Tributo (IAT), coordenado por Paulo Ayres Barreto e com a participação das advogadas Karen Jureidini Dias, Mary Elbe Queiroz e Daniel Loria, e dos representantes da Receita Federal Adriana Gomes Rego e Fernando Mombelli.

Em dezembro de 2024, quando o projeto foi aventado pela imprensa, publiquei nesta ConJur que a tributação incidiria sobre a alíquota efetiva, aquela que aparece no “último clique” da declaração de IRPF. Isso incluiria diversas receitas consideradas “isentas” ou “com tributação exclusiva”. Bingo – é o que consta do PLP.

Onde estão alguns dos problemas?

Norma isentiva anterior passará a ser desconsiderada por norma impositiva posterior, como no caso dos dividendos, derrogando o artigo 10 da Lei 9.249/95. Não seria mais simples revogar ao invés de derrogar? Ocorre que o impacto político da revogação seria muito maior, o que levou o governo a optar por essa tucanagem.

O PLP estabelece como limite para essa incidência a alíquota de 34%, que é a maior alíquota para as pessoas jurídicas. Ocorre que se busca tributar as pessoas físicas, cuja maior alíquota é de 27,5%. Dentre outras, essa pertinente crítica foi feita por Misabel Derzi e Fernando Moura nesta ConJurElidie Bifano, também na ConJur, aponta para a injustiça que se cometerá para com as empresas integrantes do Simples, que terão seus dividendos sobre onerados com essa alíquota de 34%.

No fundo, constata-se que o PLP é pleno de boas intenções, mas está tecnicamente incorreto, em face das diversas análises efetuadas nos comentários aqui relacionados.

Uma solução para sua adequação é distinguir as sociedade de pessoas das sociedades de capitalconforme exposto anteriormente nesta ConJur em novembro de 2022 e em novembro de 2024, este com severas críticas à análise efetuada pelo economista Samuel Gobetti, que dá amparo teórico ao PLP, e que foi louvada por Samuel Pessoa.

O ponto central é que existe uma diferença entre as sociedades de capital, usualmente sociedades anônimas que apuram o IRPJ pelo lucro real e são auditadas, distribuindo dividendos pelos seus acionistas; e as empresas de pessoas, usualmente sociedades limitadas que congregam sócios que apuram o IRPJ pelo sistema de lucro presumido, muitas delas sob o manto do Simples. Colocar essas diferentes situações fáticas e concretas dentro do mesmo balaio tributário será uma enorme injustiça fiscal e gerará muitos debates judiciais.

Na prática, o PLP adota o nominalismo, carretando que os rendimentos do trabalho serão tributados como se fossem lucros, pois, nas sociedades de pessoas, o trabalho dos sócios é remunerado utilizando-se o nomen juris de dividendos. A incidência tributária deve distinguir o que é remuneração de capital do que é remuneração do trabalho, embora, nos dois casos, sejam batizados de dividendos. O idêntico nomen juris não muda a natureza jurídica daquele rendimento. Um acionista da Petrobras investiu capital e recebe dividendos, embora jamais tenha trabalhado naquela empresa; um sócio da uma empresa do Simples também recebe dividendos, que decorre de seu trabalho, e não de capital investido sem trabalho. Salta aos olhos a diferença fática nas duas situações, que está no valor do trabalho para a apuração dos lucros distribuídos.

Mantida a situação prevista no PLP, a consequência será a redução dos lucros das sociedades de pessoas, pois os sócios retornarão ao sistema pré-1995, quando os dividendos eram tributados, e ocorria a distribuição disfarçada de lucros, com indevida majoração das despesas dos sócios bancadas pela pessoa jurídica. Isso acarretará o retorno da fiscalização para dentro das empresas, com enormes dificuldades para todos os envolvidos.

É possível que haja alguma complexidade para implementar a solução proposta, mas estou seguro de que os sistemas de inteligência da Receita Federal podem muito bem desenhar um PLP mais condizente com a realidade e a nossa Constituição.

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Caso fortuito gera restituição integral de passagens, diz juíza

O cancelamento de uma viagem por recomendação médica configura caso fortuito e não prejudica a operadora do voo se for comunicado com antecedência.

Com esse entendimento, a juíza Marian Najjar Abdo, da 4ª Vara Cível do Foro Regional de Santo Amaro (SP), determinou o reembolso de R$ 47 mil a uma família que precisou cancelar viagem a Paris.

A decisão atendeu parcialmente à ação movida contra a agência de viagens que vendeu as passagens e as duas companhias aéreas que operaram os voos. Os autores também pediram indenização por danos morais, que foi rejeitada.

Segundo o processo, a família comprou, em dezembro de 2023, seis passagens de ida e volta para a capital francesa. A viagem foi marcada para agosto de 2024, com saída de São Paulo. Contudo, a matriarca foi diagnosticada com câncer no fígado em julho. Por indicação médica, cancelou a viagem para tratar a doença.

Os autores então pediram o cancelamento da viagem e o reembolso do valor 40 dias antes do primeiro voo. As rés negaram a devolução do valor integral. Ofereceram a restituição de 10% da quantia, argumentando que o restante seria usado para abater a multa pelo cancelamento.

A agência de viagens alegou ilegitimidade passiva, pois as políticas de reembolso seriam definidas pelas companhias aéreas. Já a empresa que operava o voo de ida argumentou que o tipo de passagem escolhido pela família não dava direito a cancelamento, que só poderia ser feito até 24 horas depois da compra. Por fim, a segunda companhia aérea alegou ausência de nexo de causalidade por conduta exclusiva da primeira empresa.

Tempo de sobra

Para a magistrada, como a família comunicou a impossibilidade de viajar com mais de 30 dias de antecedência, as empresas teriam tempo suficiente para comercializar de novo as passagens e evitar prejuízo material.

“Ainda que a solicitação tenha partido dos consumidores, é certo que se tratou de caso fortuito, o qual autoriza a restituição integral dos valores, sem incidência de multa, e tendo em vista que o passageiro foi impedido de viajar por fato alheio à sua vontade, com recomendação médica para início de tratamento”, escreveu.

A advogada, diretora jurídica do Instituto de Defesa do Consumidor e do Contribuinte (IDC) e integrante da Comissão de Direito do Consumidor da OAB-SP, Renata Abalém, representou a família na causa.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 
1069318-13.2024.8.26.0002

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Lei das Bets: a falta de debate multissetorial no processo legislativo e as suas consequências

A Lei 14.790/2023, popularmente conhecida como Lei das Bets, teve origem no Projeto de Lei 3.626/23, do Poder Executivo, aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. Ela está entre as medidas do governo para aumentar a arrecadação e contribuir para a meta de déficit zero.

Por ter sido uma proposição apresentada pelo Executivo, a mesma chegou à Câmara Baixa em regime de urgência constitucional, previsto no §1º do artigo 64 da Constituição. No decorrer da discussão, foi deliberado que a lei seria regulamentada, apenas, pelo Ministério da Fazenda (artigo 4º e seguintes da Lei).

Outro ponto relevante a ser trazido é o fato de que, antes elaboração do parecer preliminar de plenário, a Mesa Diretora da Câmara determinou que houvesse o debate nas Comissões de Finanças e Tributação (CFT) e Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), ficando de fora a Comissão de Saúde.

No plenário da Câmara, das 40 emendas apresentadas, apenas sete demonstraram preocupações quanto à publicidade ao público jovem e ao combate à dependência que o jogo poderia causar [1].

Dentre estas, se destacam as emendas 30 [2] e 31 [3], do deputado Aureo Ribeiro, que solicitavam, respectivamente, a destinação para o tratamento de dependentes compulsivos em jogos e apostas, no mínimo, 20% do valor gasto pelo agente operador em publicidade e propaganda, e que a soma das apostas de quota fixa realizadas no mês não poderá ultrapassar 10% do salário-mínimo por CPF, em cada agência operadora de apostas. Ambas aprovadas, em sua integralidade, pelo relator, deputado Adolfo Viana.

No Senado, o PL foi encaminhado para as Comissões do Esporte e de Assuntos Econômicos, tendo neste local sido realizada a única audiência pública [4], em 19/10/2023, onde os convidados representaram a Associação Nacional dos Auditores Fiscais de Receita Federal do Brasil (Anfip); o Ministério da Fazenda; a Receita Federal do Brasil; a Associação Nacional de Lotéricos (Alspi) e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

Das 67 emendas apresentadas na Comissão de Esportes, apenas três tinham como finalidade a destinação de percentuais arrecadados para fins de combate ao danos sociais advindos pela prática de jogos [5] e, também, vetar pessoa portadora de ludopatia de participar na condição de apostador [6].

Das 71 emendas apresentadas na Comissão de Assuntos Econômicos, apenas duas foram destinadas para investimento em medidas de prevenção, controle e mitigação de danos sociais advindos da prática de jogos nas áreas de saúde [7] e ações informativas de conscientização dos apostadores de prevenção do transtorno do jogo patológico.

Por fim, das 23 emendas de plenário apresentadas, apenas uma previa que o Ministério da Fazenda regulamentasse a obrigatoriedade para que os operadores desenvolvam sistemas e processos eficazes para monitorar a atividade do cliente para identificar danos ou danos potenciais associados ao jogo [8].

Desta forma, se mostra latente que os temas delicados, envolvendo a saúde pública, não foram discutidas no espaço ideal, como audiência pública ou grupo de trabalho, mas sim em emendas de comissão e de plenário.

Riscos à saúde pública e à integridade dos apostadores

Trata-se de um tema extremamente delicado. A Organização Mundial da Saúde (OMS), classifica o vício nos jogos de azar como ludopatia. De acordo com o artigo Addictive behaviour [9], disponível na própria página virtual daquela organização, estudos em nível nacional de países da Oceania indicam que os danos potenciais devido ao jogo são comparáveis aos danos devido à depressão e aos transtornos por uso de álcool. Os danos impactam negativamente os próprios jogadores/apostadores, bem como suas famílias e comunidade.

Tendo em vista a sua relevância, esperava-se forte atuação do Ministério da Saúde para a regulamentação da lei. De acordo com as informações levantadas pela organização Fiquem Sabendo, ocorreram pelo menos 209 encontros entre autoridades do Executivo Federal e agentes privados de março a setembro de 2024. Contudo, a pasta da Saúde participara de apenas de dois encontros [10].

Com base nas omissões, tanto do Legislativo quanto do Executivo, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), ajuizou a Ação Direta de Constitucionalidade (ADI) nº 7.721, a fim de obter a suspensão cautelar e a declaração de inconstitucionalidade da Lei das Bets.

Em suas razões, a confederação aponta que a legislação em questão não contém medidas suficientes para prevenir e combater os efeitos nocivos à saúde mental, como transtornos de ansiedade, depressão e até mesmo o desenvolvimento de dependência patológica ao jogo.

A relatoria foi distribuída para o ministro Luiz Fux por prevenção [11], que ao verificar o periculum in mora na evidente proteção insuficiente, com efeitos imediatos deletérios, sobretudo em crianças, adolescentes e nos orçamentos familiares de beneficiários de programas assistenciais, determinou que sejam implementadas medidas imediatas de proteção especial que impeçam a participação nas apostas de quota fixa com recursos provenientes de programas sociais e assistenciais como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada e congêneres até decisão em definitivo.

Em novembro de 2024, o procurador-geral da República Paulo Gonet também questionou a Lei das Bets, através da ADI 7.749, até o momento sem decisão proferida pelo ministro Fux. Assim como a demanda movida pela CNC, o PGR demonstrou receios com a atividade, pois apresenta riscos à saúde pública e à integridade física e psíquica de seus usuários, inclusive entre adolescentes. Em conclusão, pleiteou a suspensão da eficácia das normas questionadas na inicial e posterior reconhecimento do retorno à vigência da legislação que torna ilícita a atividade.

Análise de impacto legislativo

Em outubro de 2022, o professor Victor Marcel Pinheiro publicou o interessantíssimo artigo Por que a análise de impacto legislativo ainda não é realidade no Brasil? [12], no qual afirmou que os desafios sobre a sua aplicabilidade estão em três fatores: a) a falta de institucionalização normativa da AIL, b) uma cultura de elaboração de legislação ainda fundada em uma visão voluntarista do exercício do poder político e c) o receio de apropriação da decisão política por agentes técnicos.

Tanto a análise de impacto legislativo (ex ante) quanto a avaliação de impacto legislativo (ex post[13] são amplamente debatidas no plano da legística material que, segundo Blanco de Morais [14], consiste no sistema de ação integrado por um conjunto de métodos e técnicas de gestão do conteúdo normativo, que busca assegurar a observância dos requisitos de qualidade.

Tendo em vista a ação judicial citada anteriormente, o autor do presente trabalho se reserva a aprofundar acerca da análise ex ante. Sobre esse instituto, é pertinente a sua definição do ponto de vista dos Autores Jonathan Verschuuren e Rob Gestel:

“Pesquisa orientada para o futuro sobre os efeitos esperados e efeitos colaterais da nova legislação potencial, seguindo um procedimento estruturado e formalizado, levando a um relatório escrito. Essa pesquisa inclui um estudo dos possíveis efeitos e efeitos colaterais das alternativas, incluindo a alternativa de não regulamentar” [15] (grifo do colunista).

Comparativo

A título de Direito Comparado com Portugal, o Guia de Avaliação de Impacto Normativo [16] daquele país, tal termo é nomeado como Avaliação Prévia de Impacto Normativo, sendo esta uma análise dos efeitos potenciais de normas jurídicas em formação, a ser realizada no momento anterior à aprovação da proposição, para salvaguardar a ocorrência de constrangimentos práticos ou a tomada de decisões políticas que limitam a profundidade da análise a efetuar.

Um bom exemplo para demonstrar, na prática, as metodologias setoriais usadas para uma proposição, é a Lei nº 4/2018, de 9 de fevereiro, que institui o Regime Jurídico da Avaliação de Impacto de Género de Atos Normativos em Portugal [17], cuja finalidade sob a perspectiva de gênero ajuda a indicar se as necessidades de homens e mulheres são igualmente levadas em consideração e incluídas em uma determinada proposta; permitindo que os tomadores de decisão elaborem políticas com um conhecimento da realidade socioeconômica de mulheres e homens, bem como o desenvolvimento de políticas que levem em conta as diferenças em questão.

Contudo, no Brasil ainda anda a passos lentos o prévio debate multissetorial.

Acerca da falta de cuidado do processo legislativo, o professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho [18] explica que, ao elaborar às pressas para atender a contingência de momento, sem esperar a maturação da regra para promulgá-la, trazem leis com estigma da leviandade, por necessitarem de outras para completá-las, explicá-las e remendá-las.

Fernando Meneguin e Ana Paula Andrade de Melo [19] afirmam que, na produção normativa atual, existe a promoção de intervenções sem qualquer evidência, contrariando análises e pesquisas fundamentadas. Logo, concluem a necessidade da disseminação da análise de impacto legislativo a fim de combater essas situações, pois agrega informações pertinentes e qualifica o debate, propiciando uma melhor matriz institucional e impulsionando o desenvolvimento econômico do país.

Desta forma, o efeito da falta de esmero quanto ao processo legislativo resulta em judicialização, podendo posteriormente resultar na suspensão da eficácia da lei então promulgada e publicada.

Tal como o caso das bets, a falta de maturação, tanto do projeto de lei quanto a sua regulamentação, já levou o STF a suspender a efetividade da lei que previa o reajuste do piso salarial da enfermagem [20], quando o então relator, ministro Barroso, entendeu que o Legislativo aprovou o projeto e o Executivo o sancionou sem cuidarem das providências que viabilizariam a sua execução, como, por exemplo, o aumento da tabela de reembolso do SUS à rede conveniada. Nessa hipótese, teriam querido ter o bônus da benesse sem o ônus do aumento das próprias despesas, terceirizando a conta.

Portanto, a fim de evitar os desencontros analisados, que possam gerar, inclusive, tensões entre poderes, se mostra necessário o debate amplo, multilateral, sobre a análise e a avaliação de impacto legislativo para trazer maior tecnicidade e segurança jurídica, sem o receio de apropriação da decisão política por agentes técnicos, como exposto no decorrer deste artigo.


[1]Emendas 4, do Deputado Prof. Paulo Fernando (acolhida), 17, do Deputado Coronel Meira (rejeitada), 29, 30, 31 e 32, do Deputado Aureo Ribeiro (29 rejeitada, 30 e 31 acolhidas, 32 rejeitada), e 40, do Deputado Fernando Monteiro (rejeitada).

[2]BRASIL. Câmara dos Deputados. EMP 30 => PL 3626/2023. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2387636 Acesso em 02.fev.25

[3]BRASIL. Câmara dos Deputados. EMP 31 => PL 3626/2023. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2387639 Acesso em 02.fev.25

[4]BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n° 3626, de 2023. Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/160197 Acesso em 13.jan.25

[5]Emendas 22, do Senador Mecias de Jesus (acolhida parcialmente) e 39, do Senador Eduardo Girão (acolhida parcialmente).

[6]Emenda 23, do Senador Mecias de Jesus (acolhida parcialmente).

[7]Emenda 95, do Senador Alan Rick (acolhida parcialmente), e 110, do Senador Carlos Viana (acolhida).

[8]Emenda 161, do Senador Eduardo Girão(acolhida)

[9]Addictive Behaviour. World Health Organization. Disponível em https://www.who.int/health-topics/addictive-behaviour#tab=tab_1 Acesso em 13.jan.25

[10]Ministério da Saúde participou de apenas duas das 209 reuniões sobre a regulamentação das bets. Disponível em https://fiquemsabendo.com.br/saude/ministerio-da-saude-participou-de-apenas-duas-das-209-reunioes-sobre-a-regulamentacao-das-bets Acesso em 13.jan.25

[11]Antes da ADI ajuizada pela CNC, o Ministro Fux fora sorteado para a relatoria da ADI 7.640, apresentada pelos governadores de São Paulo, Minas Gerais, Acre, Paraná, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e do Distrito Federal, cuja causa de pedir questiona uma norma específica que restringe que o mesmo grupo econômico possa obter concessão para explorar serviços lotéricos em mais de um estado.

[12]BRASIL. Por que a análise de impacto legislativo ainda não é realidade no Brasil? Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-out-18/fabrica-leis-analise-impacto-legislativo-nao-realidade-pais> Acesso em: 13.jan.2025.

[13]Ambas as terminologias adotadas com base no Decreto 10.411/2020. BRASIL. <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/d10411.htm> Acesso em: 29.jan.2025.

[14]MORAIS, Carlos Blanco de; Manual de Legística; Verbo, 2007 p. 211.

[15]Tradução feita pelo Autor do seguinte trecho original: “Future oriented research into the expected effects and side-effects of potential new legislation following a structured and formalised procedure, leading to a written report. Such research includes a study of the possible effects and side-effects of alternatives, including the alternative of not regulating at all” VERSCHUUREN, Jonathan; VAN GESTEL, Rob. Ex Ante Evaluation on Legislation: An Introduction. In: VERSCHUUREN, Jonathan (Ed.). The Impact of Legislation. A Critical Analysis of Ex Ante Evaluation. Boston: Martinus Nijhoof Publishers, 2009. Chapter 1. p. 3- 12.

[16]MORAIS, Carlos Blanco. Guia de avaliação de impacto normativo. Coimbra: Edições Almedina, 2010.p. 18, 22.

[17]PORTUGAL. Assembleia da República. Disponível em <https://www.parlamento.pt/Legislacao/Documents/Legislacao_Anotada/AvaliacaoatosNormativos_Simples.pdf> Acesso em: 29.jan.2025.

[18]FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves Do processo legislativo / Manoel Gonçalves Ferreira Filho. – 7. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2012, p. 35.

[19]MENEGUIN, Fernando B.; MELO, Ana Paula Andrade de. Análise de Impacto para Além das Regulações. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Outubro 2020 (Texto para Discussão nº 286). Disponível em < www.senado.leg.br/estudos > Acesso em: 29.jan.25

[20]BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 7222. Disponível em:<https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6455667> Acesso em 13.jan.25

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Hierarquia administrativa e seus dois maridos

A hierarquia administrativa é mais que uma pirâmide de órgãos: é uma relação jurídica dinâmica, associada indissoluvelmente a dois conceitos fundamentais: organização administrativa escalonada e processo decisório multinível.

Não existe hierarquia administrativa se há apenas um estrato na organização. Mas tampouco a hierarquia é estado de fato ou a posição topográfica de órgãos na organização. É jurídica a relação que une órgãos em vínculos de direção e subordinação, comando e obediência, dependência e supremacia. Hierarquia é relação jurídica interorgânica que exige esses dois “maridos conceituais”.

A hierarquia nunca é vínculo de ordem e obediência absolutos nem admite que em seu nome ilegalidades sejam consumadas. Embute prerrogativas, mas igualmente deveres e responsabilidades. Seu contorno atual exige olhar analítico, resumido aqui ao essencial.

Pressuposto da hierarquia: a desconcentração

Hierarquia vem do grego hierarkhía, que se refere ao “comando de um alto sacerdote” e é composta por hiera (ritos sagrados) e arkhein (comando, governar) [1]. Com o tempo, a palavra hierarquia foi transposta do domínio eclesiástico para as estruturas de Estado, carregando consigo a noção de autoridade legitimada pelo escalão orgânico.

A hierarquia pressupõe repartição de competências entre órgãos, pois a concentração de poder em um órgão único inviabiliza a relação de hierarquia. Hierarquia pressupõe desconcentraçãoa repartição de competências entre órgãos distintos dentro de uma mesma pessoa jurídica. A desconcentração constitui a multiplicidades de órgãos decisórios e viabiliza a relação jurídica entre eles, conformada por normas jurídicas, na intimidade de uma mesma pessoa administrativa (político-administrativa ou exclusivamente administrativa).

Porém, duas observações cobram atenção.

A primeira. Ao contrário do que ocorre em outros sistemas jurídicos, no Direito brasileiro a desconcentração é sempre vínculo entre sujeitos de direito administrativo despersonalizados (órgãos). A legislação brasileira não prevê desconcentração entre pessoas administrativas. No Brasil, o vínculo organizativo entre pessoas administrativas denomina-se descentralização.

A segunda. A hierarquia sempre vem acompanhada da desconcentração, mas a recíproca não é necessária. Entender isso exige distinguir entre desconcentração horizontal e desconcentração vertical.

desconcentração vertical, assentada na hierarquia, vincula órgãos superiores e inferiores em estrutura escalonada e dentro da mesma pessoa jurídica: a exemplo da relação entre o Ministério da Educação e seus órgãos regionais ou setoriais. Mas há também a desconcentração horizontal, que não conhece hierarquia, pois coordena órgãos autônomos ou independentes, como o vínculo entre os Tribunais de Contas e o Poder Executivo. Na desconcentração horizontal vigoram relações paritárias, mesmo quando há em causa competências de controle (STF, ADI 3.329) [2].

Há crescente número de relações paritárias dentro de uma mesma pessoa jurídico administrativa. Órgão administrativos de extração constitucional, como o Ministério Público, os Tribunais de Contas, o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público desconhecem sujeição hierárquica em face do órgão administrativo central, embora não sejam pessoas jurídicas. Possuem orçamento próprio, pessoal próprio, competências próprias, e ordenação interna própria, não sujeita a ordem e comando do chefe do Poder Executivo. Entre esses órgãos autônomos – e outros, autonomizados funcionalmente pelo legislador – vigem relações laterais ou cooperativas e não relações verticais ou hierárquicas. Entre órgãos de igual hierarquia, os vínculos que se estabeleçam são igualmente paritários. E há órgãos inferiores que, pelas próprias funções, não se sujeitam funcionalmente à hierarquia, pois perderiam a razão de existirem se abrigados a ordens de serviço e comandos específicos, embora não possuam matriz constitucional (por exemplo, os órgãos consultivos e técnicos-representativos).

Em síntese: a hierarquia é relação interorgânica residente na intimidade de uma mesma pessoa administrativa e não relação interadministrativas; não impõe uma subordinação total necessária entre órgãos superiores e subalternos e tampouco é logicamente compatível com vínculos de desconcentração administrativa horizontal, que envolvam órgãos funcionalmente independentes ou de equivalente escalão orgânico.

Quando há mais de uma pessoa administrativa em causa não há relação de hierarquia nem tampouco desconcentração. Entre pessoas administrativas pode haver superintendência ou controle legal, que a velha doutrina francesa denominava tutela. Entre pessoas administrativas são possíveis relações interadministrativas e relações de descentralização [3].

Hierarquia e a organização administrativa escalonada

A estrutura escalonada representa a dimensão estática da hierarquia. Pirâmides organizacionais, organogramas, matrizes de distribuição de competências e cargos configuram o pressuposto organizacional da relação hierárquica escalonada. Este primeiro componente conceitual da hierarquia – a organização em escalões – materializa-se em decretos de estrutura, leis orgânicas e regimentos internos.

O escalonamento, porém, não representa mera disposição de cargos e órgãos. Constitui gradação jurídica de competências e responsabilidades, distribuição racional de atribuições segundo critérios de especialização, abrangência territorial decisória ou proximidade com o poder político.

Nessa dimensão deve ser reconhecida a discricionariedade organizatória do gestor na estruturação e distribuição de competências no interior da administração, observado o limite da impossibilidade de criar cargos sem lei e de reestruturar carreiras sem autorização legal específica. Fora isso, podem órgãos sofrer cisão, aglutinação, concentração temporária de competências e outras medidas diretamente relacionadas à estruturação e organização internas, sem reflexo em direitos e deveres de terceiros (artigo 5º c/c artigo 84, da Constituição) [4].

A jurisprudência do STF tem reiteradamente reconhecido a discricionariedade administrativa na configuração organizacional, embora estabeleça limites quanto à criação de cargos (ADI 3.602/GO) e reestruturação de carreiras (RE 642.895)

Hierarquia e processo decisório multinível

Se a estrutura escalonada representa a dimensão estática pressuposta pela hierarquia, o processo decisório multinível constitui a dimensão dinâmica da hierarquia administrativa. Esta segunda dimensão do conceito manifesta-se em fluxos de comando, supervisão, inspeção, revisão, solução de conflitos, avocação e delegação. Expressa-se em instruções normativas, ordens de serviço, homologações e decisão de recursos hierárquicos.

O processo decisório multinível traduz-se em poderes hierárquicos clássicos: poder de direção, poder de inspeção, poder disciplinar, poder de revisão e poder de delegação e avocação. Estes poderes, contudo, não são absolutos nem incondicionados. Encontram limites no próprio ordenamento jurídico e nas finalidades públicas a que devem servir.

Não pode o superior hierárquico, por exemplo, reformar atos administrativos emitidos em competência vinculada por autoridade subordinada. Tampouco pode avocar competências quando a lei reservar determinada competência a autoridade específica (competência exclusiva) [5].

Essa cadeia decisória pode envolver decisões organizatórias e decisões funcionais. Por vezes a lei autoriza uma espécie de decisão e nega a outra. Outras vezes, a lei autoriza decisões gerais e não decisões específicas. Por exemplo, no Ministério Público a Chefia Institucional – os procuradores gerais dos estados ou o procurador geral da República – não podem determinar decisões concretas ou substituir a decisão dos demais agentes do MP, que gozam de autonomia funcional, mas podem decidir sobre conflito de atribuições, definindo o agente competente para conhecer determinado caso. Além disso, embora não emitam ordens de serviço concretas para casos determinados, podem editar diretrizes, planos e programas funcionais gerais.

A hierarquia administrativa oferece ao gestor uma prerrogativa de vigilância sobre as decisões dos órgãos subordinados ou vinculados na dimensão de sua aplicação. Essa prerrogativa de controle pode ativar a competência disciplinar ou, quando couber, a substituição da decisão do inferior hierárquico em sede de decisão de recursos hierárquicos.

As patologias da relação hierárquica

A hierarquia administrativa, como qualquer relação jurídica, está sujeita a patologias e distorções. O autoritarismo hierárquico, o abuso de poder disciplinar, a interferência indevida em competências técnicas e a instrumentalização política da cadeia de comando representam desvios frequentes.

Mas a “cega obediência hierárquica” perdeu vigência na administração civil. O artigo 116, IV, da Lei 8.112/90, por exemplo, estabelece o dever de obediência dos servidores públicos às ordens superiores, mas dispensa do dever o cumprimento a ordens ilegais. A insubordinação grave e imotivada pode conduzir à demissão (artigo 132, VI), mas a resistência às ordens diretas ilegais é legítima e protegida, sendo assegurado ao servidor o direito de representação (artigo 116, XII, da Lei 8.112/90). Em paralelo, o Código Penal, em seu artigo 22, exclui a culpabilidade do servidor se cometer crime sob coação irresistível ou em obediência a uma ordem superior, desde que esta não seja manifestamente ilegal [6]. Se a ilegalidade for evidente, não resistir pode caracterizar o crime de prevaricação (artigo 319 do CP).

No âmbito da administração militar, no entanto, a compreensão do dever de resistência a ordens ilegais é menos abrangente: entende-se que a única ordem que não deve ser cumprida é a ordem manifestamente criminosa. Os militares devem cumprir as ordens emanadas dos seus superiores, caso não sejam criminosas, constituindo crime a recusa de obediência conforme previsto no artigo 163 do Código Penal Militar [7]. O fundamento para essa aplicação estrita decorre da singularidade da administração e da carreira militar, submetidas a exigências de hierarquia e disciplina rigorosas (Artigo 142, da CF) cujas limitações “visam a atender à supremacia do bem coletivo em detrimento de interesses particulares, até pela força, se necessário” (STF, ADI nº 6.595).

A hierarquia administrativa na era da governança pública

A concepção tradicional de hierarquia administrativa vem sendo desafiada pelos novos paradigmas de governança pública. A rigidez hierárquica mostra-se insuficiente diante da complexidade dos problemas contemporâneas, que exigem coordenação intersetorial, sistemas transversais de informação e participação social direta.

Emergem, assim, estruturas administrativas pós-hierárquicas: colegiados interinstitucionais, redes de políticas públicas, estruturas matriciais unificadas por projetos e outros mecanismos de governança colaborativa presenciais e digitais. Estes arranjos não eliminam a hierarquia como categoria conceitual ou como vínculo jurídico, mas restringem a sua aplicação no conjunto da organização administrativa.

Algumas dessas estruturas são temporárias, como o Comitê Gestor da Copa do Mundo Fifa 2014 e Comitê Gestor dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. Outras devem ser permanentes, apoiadas inclusive no artigo 10, da Constituição, que assegura a “participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação”.

A atuação integrada horizontal entre órgãos e as entidades envolvidos na prestação e no controle dos serviços públicos constitui ainda princípio e diretriz do Governo Digital (Artigo 2º, IX, da Lei 14.129/2021). Sem alarde, em alguns domínios, a administração civil assume a forma de uma trama de redes.

A dimensão constitucional da hierarquia administrativa

A Constituição de 1988 não menciona explicitamente o princípio hierárquico entre os princípios gerais da administração pública, diferentemente de outros princípios referidos na cabeça do artigo 37. A hierarquia é considerada inerente, generalizada e estrutural apenas para a administração militar (artigo 142). Essa ausência da hierarquia no pórtico dos princípios gerais não é acidental: reflete a relativização da hierarquia como princípio estruturante da organização administrativa contemporânea.

A hierarquia administrativa, como vínculo jurídico complexo, permanece importante sobretudo na administração direta. Contudo, seus contornos transformaram-se para acomodar exigências de ampliação no número de órgãos com autonomia funcional, de órgãos de caráter intersetorial em regime paritário de funcionamento, de órgãos de representação social e de órgãos técnicos de assessoramento e deliberação colegiada.

A metáfora dos “dois maridos” ou componentes conceituais – estrutura escalonada e processo decisório multinível – evidencia a natureza multidimensional desse instituto. Ambas as dimensões requerem reconfiguração para que a hierarquia administrativa não se converta em anacrônico resquício autoritário, mas em ferramenta sintonizada com a gestão pública contemporânea.

A hierarquia na organização administrativa de nossos dias deve conciliar valores aparentemente contraditórios: coesão e participação; coordenação central e autonomia técnica; estabilidade estrutural e flexibilidade operacional. Esse equilíbrio dinâmico constitui um dos grandes desafios do Direito Administrativo no século 21: repensar a hierarquia e o funcionamento pluralista e aberto da administração sem abdicar de valores estratégicos fundamentais, como a responsabilidade, a eficiência, a unidade e a coordenação da ação estatal.

A hierarquia, assim ressignificada, deixa de ser um dado assumido como inevitável para tornar-se instrumento de realização dos fins constitucionais que legitimam a sua própria existência. Hierarquia não é palavra mágica para autorizar abusos de poder e o exercício irracional da autoridade. É relação organizativa estruturada, finalista, passível de disciplina flexível, cuja exploração rigorosa merece ser renovada tanto pelo legislador quanto pela doutrina.


[1] MACHADO, José Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, III, Volume 7.ª Edição. Lisboa: Livros Horizonte, 1995, pág. 223. Ver ainda: VESCHI, Benjamin,  https://etimologia.com.br/hierarquia/ e TREVIJANO FOS, J. A. Garcia. Tratado de Derecho Amnistrativo, Tomo II, Vol. I, 2ª.ed, Ed. Rev. de Direito Privado, 1971, p. 426.

[2] No acordão referido, decidiu o STF ser inconstitucional norma legal do Estado de Santa Catarina que permitia a avocação de inquérito policial pelo Ministério Público. Decidiu a Corte que, a atribuição de controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, de acordo com o artigo 129, VII, da Constituição Federal, não importa em relação de hierarquia entre o MP e a Polícia. (ADI 3329, Rel. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe- 28-06-2024)

[3] Não se deve confundir pessoa administrativa e sujeito de direito administrativo. Órgãos podem ser sujeitos de direito administrativo, mas nunca são pessoas administrativas. Órgãos são unidades de atuação jurídica despersonalizadas (artigo 1º, §2º, I, da Lei nº 9.784/1999). Não são pessoas jurídicas e, portanto, não possuem aptidão genérica para direitos, deveres e obrigações, mas são sujeitos de direito (centros unitários de imputação de direitos e deveres) e, como tais, gozam de aptidão limitada ou parcial para direitos, deveres e obrigações. Desenvolvi o tema em vários textos inseridos em MODESTO, Paulo. Direito administrativo da experimentação. 2ª. Ed. São Paulo: Juspodium, 2025 (vg. p.59-61 e 273 e segs). Ver, ainda, VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 4ed. São Paulo: Ed. RT, 2000, p. 275 e segs.

[4] A hipótese foi prevista no art. 6º, do Anteprojeto de Normas Gerais de Reforma da Organização Administrativa Federal, porém decorre do art. 84, VI, da Constituição, com a redação da EC 32/01.

[5] A Lei 9784/99 não é expressa quanto a este último aspecto. No entanto, se não é possível delegar competência exclusiva do órgão subordinado (art. 13, III), penso que tampouco é possível avocar temporariamente competência exclusiva de órgão ou autoridade subalterna, competência exercida (consumada) ou competência do subalterno no curso do processo administrativo iniciado. Ver, sob a última hipótese, MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo. 5ª.ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p.403.

[6] Art. 22, do Código Penal: “Se o fato é cometido sob coação moral irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem.”

[7] Cf. MARREIROS, Adriano Alves; ROCHA, Guilherme; FREITAS, Ricardo. Direito Penal Militar. Teoria Crítica & Prática. São Paulo: Método, 2015, p. 629.

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