Recentemente, a imprensa repercutiu fortemente a decisão tomada pela 2ª Turma do STF no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 1.393.219 (j. 28/6/24), no qual foi decidido que “em que pese o Supremo Tribunal Federal tenha autorizado o compartilhamento de relatórios de inteligência financeira da UIF e de procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil com os órgãos de persecução penal, não permitiu que o Ministério Público requisitasse diretamente dados bancários ou fiscais para fins de investigação ou ação penal sem autorização judicial prévia”.
Marcelo Camargo/Agência Brasil
A decisão, no ponto, é acertadíssima: apesar de o MP ter poder requisitório de determinadas informações (artigo 129, VI, CF/88 e artigo 8º, II, LC nº 75/93), os dados fiscais e bancários dizem respeito à intimidade e vida privada das pessoas, cuja inviolabilidade é uma garantia constitucional (artigo 5º, X, XII e LXXIX), que só pode ser afastada nas hipóteses e na forma prevista na lei — isto segundo lei de mesma hierarquia da LC nº 73/93, maior especificidade e mais recente: o sigilo bancário no artigo 1º, § 4º, da LC nº 105/2001 e o fiscal no artigo 198, § 1º, I, do CTN, adicionado pela LC nº 104/2001.
O STF, portanto, só reafirmou o que dizem a Constituição e a lei sobre o sigilo fiscal e o que sempre foi o entendimento dos tribunais: a sua flexibilização se justifica em excepcionais situações previstas em lei e, na hipótese de a “demanda” partir de um órgão persecutório, depende de autorização judicial prévia. Não há inovação e nem imposição de maiores dificuldades. Ao contrário, trata-se do correto e necessário equilíbrio entre a legítima persecução penal de fatos criminosos e o respeito às garantias constitucionais, por meio do filtro judicial que autoriza o acesso aos dados quando isto for cabível e desautoriza eventuais devassas sem razão.
A decisão, porém, aprofundou a confusão generalizada feita sobre o que, afinal, o plenário do STF decidiu ao julgar o Tema nº 990 de Repercussão Geral e evidenciou que a Corte trata com menos rigor a proteção do sigilo bancário, comparativamente ao fiscal. E isto sem razão, pois a Constituição e a legislação não estabelecem esse tratamento diferenciado.
Como dito, os dados fiscais e bancários são igualmente protegidos por sigilo, e o seu acesso pelas autoridades encarregadas pela persecução penal é, de igual modo, condicionado à autorização judicial.
No caso do sigilo fiscal, essa regra é excepcionada, pela própria lei, para autorizar que a Receita Federal compartilhe com as autoridades penais dados fiscais quando, depois do procedimento administrativo, constatar supressão de tributo possivelmente caracterizadora de crime tributário, hipótese em que espontaneamente envia a essas autoridades uma representação fiscal para fins penais (artigo 198, § 3º, I, CTN e artigo 83, Lei nº 9.430/96), contendo dados fiscais, independentemente de autorização judicial.
Ao julgar o RE nº 1.055.941 (Tema 990/RG), o STF fixou que essa possibilidade não contraria qualquer norma constitucional e, nesta decisão mais recente no AgRg no RE nº 1.393.219, esclareceu que, apesar disso, o MP não pode requisitar esses dados fiscais.
Até aqui, tudo perfeito.
Porém, no mesmo julgamento do RE nº 1.055.941 — que a princípio apenas tratava do sigilo fiscal — o STF, por maioria apertada, aumentou o escopo da decisão para tratar também da difusão de relatórios de inteligência pelo Coaf sem autorização judicial.
Coaf pode compartilhar relatórios com a Justiça
Como se sabe, os RIFs são elaborados pelo Coaf a partir de informações recebidas pelos sujeitos obrigados listados no artigo 9º da Lei de lavagem de dinheiro. Entre esses sujeitos, estão as instituições financeiras, que comunicam ao órgão operações bancárias atípicas, ou seja, com um grau de suspeição sobre a ocorrência, ou não, de lavagem de dinheiro. Assim, tais RIFs, quando elaborados com informações prestadas por instituições financeiras, contêm alguns dados bancários (operações ativas e passivas), protegidos por sigilo nos termos do artigo 1º da Lei Complementar nº 105/2001 [1].
No julgamento do RE nº 1.055.941, o STF expressamente decidiu ser constitucional a possibilidade de o Coaf compartilhar os RIFs com as autoridades penais ao constatar a possível ocorrência de crime de lavagem de dinheiro, sem autorização judicial, nos termos do disposto no artigo 15 da Lei nº 9.613/98 [2]. Segundo argumentou o plenário da Suprema Corte, dado que o RIF não continha movimentações globais dos correntistas, o sigilo bancário teria reduzida incidência, de modo que seria possível o compartilhamento direto.
A partir disso, porém, surgiu generalizada confusão sobre se o MP ou a polícia poderiam solicitar ou requisitar acesso a esses RIFs sem autorização judicial, pois o dispositivo da decisão e a tese fixada não esclareciam essa possibilidade e apenas alguns ministros se manifestaram favoravelmente a ela.
Com analogia à lógica há anos estabelecida para o sigilo fiscal e confirmada pela 2ª Turma do STF no julgamento mais recente, o STJ decidiu que era ilegal a solicitação ou requisição, pelas autoridades penais, de confecção e compartilhamento de RIFs: o Coaf poderia, tal como a Receita, espontaneamente compartilhar esses dados quando, no exercício da sua função, notar a possível ocorrência de crime, mas o MP não pode pedir acesso direto sem autorização judicial (RHC 147.707, j. 15.08.23).
A 1ª Turma do STF, porém, cassou essa decisão dizendo que, embora não se tenha autorizado a requisição (obrigatoriamente deve ser atendida) dos RIFs com dados bancários, autorizou-se a sua solicitação pelas autoridades penais e o atendimento pelo Coaf, independentemente de autorização judicial (AgRg na RCL nº 61.944, j. 02.04.24). Um jogo de palavras que termina por fulminar a proteção ao sigilo dos dados bancários. Muda-se, no corpo do ofício endereçado ao Coaf, a denominação de requisição para solicitação e, voilà, a devassa está autorizada.
No mais, essa compreensão evidencia o tratamento diferenciado e incoerente dos sigilos fiscal e bancário pelo STF: de um lado, (1) os dados fiscais podem ser compartilhados espontaneamente pela Receita, mas não podem ser requisitados pelo MP sem autorização judicial, não havendo qualquer referência à possibilidade da tal “solicitação”; de outro lado, (2) as operações ativas e passivas em instituições financeiras, que consistem em dados bancários (artigo 1º LC 105/2001) podem ser compartilhadas espontaneamente pelo Coaf, mas, além disso e incoerentemente, admite-se que eles sejam diretamente solicitados pelas autoridades penais sem autorização judicial.
A decisão mais recente, no AgRg no RE nº 1.393.219, talvez já percebendo a incoerência entre os julgados, adianta-se para dizer ser “importante ressaltar que o relatório de inteligência financeira (RIF) a pedido não se confunde com requisição, porquanto compete à autoridade fiscal decidir se compartilha ou não a informação com o órgão responsável pela persecução penal”.
O argumento, contudo, é frágil por diversos aspectos. Além de se resumir, na prática e como já dito, a uma singela troca de etiquetas (apaga-se o termo requisição e coloca-se solicitação, mas a natureza das informações e o seu fluxo seguem os mesmos), é risível imaginar que o órgão administrativo vá negar o pedido ministerial, seja ele batizado de solicitação, requisição, requerimento, demanda ou postulação.
Menos rigor ao sigilo bancário
Ainda, a alegação de que, por ser uma mera “solicitação”, competiria ao Coaf decidir se compartilha ou não a informação com o órgão responsável pela persecução penal, termina por transferir ilegalmente para uma decisão administrativa, o que a lei federal condiciona à decisão judicial. Pela lógica, então, o MP poderia solicitar à Receita os dados fiscais do contribuinte e, querendo, o órgão fiscal os compartilharia livremente independentemente de autorização judicial?
Claro que não, e o STF, evidentemente, nunca disse o contrário.
Na prática, então, o STF trata com menos rigor o sigilo bancário, permitindo que ele seja relativizado por decisão de órgão administrativo e não judicial, enquanto trata com o rigor adequado, estipulado por lei federal, o sigilo fiscal.
E há razão que o justifique? Não há.
Primeiro, porque a disciplina legal no ponto é idêntica: (1) a proteção sigilo bancário e ao fiscal é extraída dos mesmos dispositivos constitucionais (artigo 5º, X e XI); (2) não há, nem no artigo 198 do CTN (exceções sigilo fiscal) e nem no artigo 15 da Lei nº 9.613/98 (exceção sigilo bancário), hipótese de exceção para compartilhamento por solicitação ou requisição. Em nenhum dos casos deveria ser autorizada.
Segundo, porque as recomendações do Gafi (Grupo de Ação Financeira Internacional), normalmente mencionadas pelo STF como justificativa para a exceção, (1) embora sugiram a possibilidade de elaboração de RIFs a pedido (solicitação), não vedam que esse pedido esteja condicionado à prévia autorização judicial, então não há conflito entre a recomendação e a legislação interna e, sim, complementação possível. E, (2) de qualquer modo, ainda que houvesse conflito, a recomendação não é impositiva e nem tem a força de lei derrogatória do artigo 1º, § 4º, da LC nº 105/2001, que prevalece sobre ela.
Terceiro, e por fim, porque os dados bancários são, por sua própria natureza, ainda mais sensíveis do que os dados fiscais: (i) de informações fiscais se inferem dados mais ou menos amplos, relativos à evolução patrimonial anual, quais negócios jurídicos tributáveis foram entabulados durante o ano etc.; (ii) de informações bancárias, diferentemente, é possível inferir uma gama muito maior de dados, como as transferências feitas diariamente ou hora a hora, dentro de um mesmo dia, as terceiras pessoas envolvidas nas transações, em alguns casos o local da transação e também o seu conteúdo, enfim, uma maior sensibilidade.
Portanto, se o tratamento era para ser diferente, deveria se restringir mais o acesso aos dados bancários, em razão da sua maior sensibilidade, e não o contrário.
Diante disso, o que se espera é que no julgamento da ADI nº 7.624 — proposta pelo CFOAB, que sustenta justamente a ilegalidade do pedido de RIF sem autorização judicial —, o STF faça nova reflexão sobre o tema, mais aprofundada e, agora sim, em uma ação em que a questão é especificamente discutida, os pontos relevantes são colocados e há substrato fático que permita à Corte entender as nuances da questão.
E que, ao fazê-lo, perceba que deve se dar ao tratamento do sigilo bancário o mesmo rigor dado ao sigilo fiscal: estes dados apenas podem ser acessados, a pedido, com autorização judicial, pois o atual entendimento da Corte tem legitimado a instauração de inquéritos policiais — às vezes, provocados por denúncia anônima —em que o primeiro ato é a solicitação de elaboração de RIFs com acesso direto aos dados bancários do investigado.
[1] Importante destacar que, de acordo com informações do Relatório de gestão Integrada do COAF, foram recebidas, em 2023, 7,6 milhões de comunicações dos sujeitos obrigados. Destas, quase 5 milhòes foram oriundas dos bancos, o que permite concluir que a maioria das informações que subsidiam a confecção dos RIFs são bancárias. Fonte: https://www.gov.br/coaf/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/publicacoes-do-coaf-1/rig-coaf-2023.pdf, acesso em 20 de agosto de 2024.
[2] Sobre o tema, importante ver as considerações feitas por Heloísa Estellita, no sentido de que, tratando-se de dados bancários, subsiste o questionamento se tal autorização dependeria de lei complementar o que condicionaria a interpretação do artigo 15 da lei de lavagem aos limites do quanto disposto na LC 105/2001. ESTELLITA, H. O RE 1.055.941: um pretexto para explorar alguns limites à transmissão, distribuição, comunicação, transferência e difusão de dados pessoais pelo COAF. Direito Público, [S. l.], v. 18, n. 100, 2022. DOI: 10.11117/rdp.v18i100.5991. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/5991. Acesso em: 20 ago. 2024.
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