“Direitos Humanos e Tecnologia” é o tema do II Prêmio Nacional de Jornalismo do Poder Judiciário

Estão abertas, até 30 de junho, as inscrições para o II Prêmio Nacional de Jornalismo do Poder Judiciário, promovido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), pelo Conselho da Justiça Federal (CJF) e pelos demais tribunais superiores. Em cerimônia prevista para 10 de setembro, haverá a entrega de prêmios de R$ 5 mil para os autores dos melhores trabalhos.

O tema desta segunda edição do concurso, “Direitos Humanos e Tecnologia”, é dividido em dois eixos temáticos: direitos humanos, cidadania e meio ambiente; e inteligência artificial, inclusão digital e desinformação.

Poderão ser inscritos trabalhos divulgados nos meios de comunicação entre 1º de fevereiro de 2024 e 31 de janeiro de 2025. Cada candidato só poderá inscrever um trabalho por eixo temático, optando por apenas uma das cinco categorias do prêmio: jornalismo escrito (impresso ou online), vídeo, áudio, fotojornalismo e jornalismo regional.

A premiação tem como objetivo incentivar a produção de conteúdos jornalísticos que destaquem o papel do Poder Judiciário na promoção da cidadania, dos direitos humanos e da justiça social.

Mais informações podem ser obtidas no edital do concurso.

Fonte: STJ

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Judicialização de terapias CAR-T: papel do Judiciário no acesso à saúde

A judicialização da saúde vem crescendo no Brasil, tanto no âmbito da saúde pública quanto na suplementar.

Na saúde suplementar, a judicialização possui um papel importante diante das frequentes negativas de cobertura de certos tratamentos pelas operadoras de planos de saúde. Especificamente no campo da oncologia, a judicialização é ainda mais evidente com o surgimento de terapias avançadas, como aquelas com CAR-T (Chimeric Antigen Receptor T-cell therapy).

As negativas de cobertura têm se tornado tão frequentes que aos pacientes não restam alternativas, senão acionar o Judiciário, que vem acertadamente pautando-se no que dispõe a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998 (Lei dos Planos de Saúde), para garantir o acesso ao tratamento prescrito.

Terapia CAR-T: tratamento inovador não experimental

A terapia CAR-T representa uma abordagem inovadora de tratamento oncológico, envolvendo a alteração genética de células T do próprio paciente, as quais desempenham um papel fundamental na defesa e no combate a doenças, para que elas passem a reconhecer e atacar as células tumorais.

As terapias CAR-T são o resultado de mais de 60 anos de estudos e avanços em imunoterapia e biotecnologia. No Brasil, diversas terapias CAR-T, enquadradas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como uma categoria especial de medicamentos novos [1], já passaram por um rigoroso processo de avaliação e aprovação de registro [2] perante a agência até a sua disponibilização no mercado brasileiro.

Assim, o fato de terapias CAR-T já registradas serem resultado de pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias não pode ser confundido com o atributo experimental.

Como se sabe, medicamentos experimentais são aqueles que só podem ser disponibilizados aos pacientes sob condições determinadas, que incluem a participação em pesquisas clínicas, antes da aprovação de seu registro na Anvisa, ou por meio de programas específicos, como o uso compassivo ou acesso expandido. Essas restrições visam garantir o acesso seguro a tratamentos promissores, mas ainda em fase de desenvolvimento — o que não é o caso de terapias CAR-T já registradas.

Obrigação dos planos de saúde

Apesar de diversas terapias avançadas já serem aprovadas pela Anvisa há anos, o que se nota é um movimento das operadoras de negativa de cobertura de tais medicamentos, sob a argumentação de que seriam medicamentos (i) de caráter experimental, (ii) de alto custo e (iii) não previstos no Rol da ANS.

Como mencionado, o primeiro argumento é equivocado em razão do registro das terapias CAR-T na Anvisa. E o segundo argumento não é suficiente nem aceitável para motivar uma negativa de cobertura. [3] Afinal, o teto dos preços de comercialização desses medicamentos no país é definido pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed). Além disso, o pressuposto econômico da operação de planos e seguros de saúde é justamente pulverizar os riscos dentre uma massa de beneficiários para que o acesso a tratamentos de alto custo para um indivíduo seja acessível àqueles que tiverem prescrição médica e cobertura contratual para tanto.

Por fim, o último argumento também não encontra suporte na legislação. Por se enquadrarem como medicamentos e não possuírem caráter experimental, as terapias CAR-T devem ter sua cobertura assegurada pelas operadoras de planos de saúde, o que inclusive decorre de diversos dispositivos legais da Lei dos Planos de Saúde.

Primeiramente, para os planos que incluem a cobertura de internação hospitalar, o artigo 12, II, “d” [4], da referida lei prevê a cobertura obrigatória dos medicamentos administrados durante a internação conforme prescrição do médico assistente.

Essa previsão é reforçada pelo artigo 8º, III, [5] da Resolução Normativa nº 465/2021 (“RN nº 465/2021”) da ANS, ao estabelecer a obrigatoriedade de cobertura de medicamentos com registro na Anvisa, ainda que não listados expressamente no Rol da ANS, quando (i) utilizados em procedimentos com cobertura obrigatória, no caso de planos de segmentação ambulatorial, ou (ii) ministrados durante o período de internação, quando o plano incluir internação hospitalar, como é o caso da administração das terapias avançadas.

Não bastasse isso, é evidente a intenção, na Lei de Planos de Saúde, de que haja ampla cobertura para tratamentos antineoplásicos, ou seja, oncológicos. Nesse sentido, a Lei estabelece a obrigatoriedade de cobertura de tais tratamentos como exigência mínima tanto nos planos da segmentação ambulatorial (artigo 12, I, “c” [6]), quanto nos planos da segmentação hospitalar (artigo 12, II, “g” [7]).

E essas não são as únicas hipóteses legais que suportam a obrigação de cobertura das terapias CAR-T por operadoras de planos de saúde. Com a alteração legislativa promovida pela Lei nº 14.454/2022, foi acrescentado o §13 ao artig 10 da Lei nº 9.656/1998, que expressamente obriga as operadoras de planos de saúde a cobrir procedimentos/tratamentos fora do Rol da ANS, sempre que prescritos por médicos e atendidos os seguintes critérios: (i) houver comprovação de eficácia com base em evidências científicas e plano terapêutico; ou (ii) houver recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) ou de órgão internacional de renome, desde que também aprovadas para seus nacionais.

Nesse contexto, inclusive, a jurisprudência [8] do Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou a reconhecer que a natureza do Rol de ANS é de taxatividade mitigada.

Diante dessas previsões legais e dos critérios estabelecidos, em caso de negativas abusivas por parte das operadoras, decisões judiciais que determinam o fornecimento de terapias CAR-T não são arbitrárias ou infundadas. Longe disso, estão em consonância com o ordenamento jurídico.

Atuação judicial pautada na legalidade

A análise das demandas envolvendo o fornecimento de terapia CAR-T evidencia que o Poder Judiciário vem atuando de forma técnica e criteriosa, assegurando a efetividade do direito à saúde nos casos em que estão presentes requisitos objetivos para tanto, o que impede decisões arbitrárias e realça o caráter técnico das intervenções judiciais.

Nas decisões que determinam a obrigação de fornecer o medicamento de terapia avançada ao paciente, o Judiciário considera a existência de registro vigente da terapia na Anvisa, o que afasta qualquer alegação quanto ao seu caráter experimental e assegura a sua regularidade para comercialização no mercado brasileiro.

O Judiciário também tem exigido a apresentação de prescrição médica, acompanhada de laudo clínico, que atestem a pertinência da terapia solicitada no caso concreto, considerando a inexistência de alternativas eficazes, especialmente nos casos de doenças raras e refratárias a tratamentos convencionalmente indicados. Isso demonstra a diligência do Judiciário para que a obrigação de fornecimento se dê nos casos devidamente justificados [9].

Soma-se a isso a importância das Notas Técnicas emitidas pelos Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NatJus), que vêm se posicionando favoravelmente à terapia em diversos casos, com destaque à sua eficácia comprovada em evidências científicas [10].

Outro aspecto examinado pelo Judiciário é a eficácia da terapia CAR-T atestada por outras agências reguladoras como o Food and Drug Administration (FDA) nos Estados Unidos, que aprovou a primeira terapia no país após décadas de estudos com resultados positivos [11].

Por fim, os tribunais também reconhecem que a negativa de cobertura de medicamento registrado na Anvisa pelas operadoras, sem a existência de alternativa terapêutica, consiste em violação ao objeto contratual e ainda coloca o consumidor em extrema desvantagem em ofensa ao Código de Defesa do Consumidor [12].

Todos esses critérios adotados comprovam que a construção das decisões favoráveis ao fornecimento das terapias CAR-T não é aleatória, mas consequência direta de uma análise fundamentada em aspectos legais, técnicos e constitucionais, em especial o direito à vida e à saúde.

Conclusão

Como visto, considerando as previsões e hipóteses da Lei nº 14.454/2022, em especial a evidente intenção do legislador de que haja ampla cobertura de tratamentos antineoplásicos/oncológicos (artigo 12, I, “c” e II, “g”) e o disposto no artigo 12, II, “d”, que já determina o fornecimento de medicamentos durante o período de internação hospitalar, as operadoras devem fornecer obrigatoriamente terapias CAR-T registradas que tenham sido prescritas por médicos aos pacientes, independentemente de sua inclusão específica no Rol da ANS. Ou seja, a obrigação de fornecimento já decorre da leitura da própria Lei dos Planos de Saúde.

Nesse contexto, longe de decisões simplesmente voluntaristas ou meramente dotadas de critérios subjetivos, o Judiciário tem exarado decisões mais técnicas e responsáveis, o que assegura uma assistência mais efetiva à saúde dos cidadãos e maior previsibilidade às operadoras.

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Referências

[1] Nos termos do inciso XVIII do art. 4º da Diretoria Colegiada nº 505, de 27 de maio de 2021 (“RDC nº 505/2021”).

[2] Terapias CAR-T registradas na ANVISA: Yescarta (registro nº 109290013); Kymriah (registro nº 100681180); Tecartus (registro nº 109290014);

[3] Especialmente porque a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed) – órgão responsável por precificar os medicamentos – adota critérios rigorosos, como a comparação com preços aprovados em outros países e avaliação de impacto orçamentário, propiciando que os preços sejam aprovados de forma compatível ao sistema de saúde brasileiro.

[4] Art. 12.  São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas:   (…) II – quando incluir internação hospitalar: (…) d) cobertura de exames complementares indispensáveis para o controle da evolução da doença e elucidação diagnóstica, fornecimento de medicamentos, anestésicos, gases medicinais, transfusões e sessões de quimioterapia e radioterapia, conforme prescrição do médico assistente, realizados ou ministrados durante o período de internação hospitalar;

[5] Art. 8º Nos procedimentos e eventos previstos nesta Resolução Normativa e seus Anexos, se houver indicação do profissional assistente, na forma do artigo 6º, §1º, respeitando-se os critérios de credenciamento, referenciamento, reembolso ou qualquer tipo de relação entre a operadora e prestadores de serviços de saúde, fica assegurada a cobertura para: (…) III – taxas, materiais, contrastes, medicamentos, e demais insumos necessários para sua realização, desde que estejam regularizados e/ou registrados e suas indicações constem da bula/manual perante a ANVISA ou disponibilizado pelo fabricante.

[6] Art. 12.  São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas:

I – quando incluir atendimento ambulatorial:
[…]
c) cobertura de tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral, incluindo medicamentos para o controle de efeitos adversos relacionados ao tratamento e adjuvantes;

[7] II – quando incluir internação hospitalar:

[…]
g) cobertura para tratamentos antineoplásicos ambulatoriais e domiciliares de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e hemoterapia, na qualidade de procedimentos cuja necessidade esteja relacionada à continuidade da assistência prestada em âmbito de internação hospitalar;

[9] TJSP; Apelação Cível 1169606-97.2023.8.26.0100; Relator (a): Schmitt Corrêa; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 03/09/2024; Data de Registro: 03/09/2024

[10] TJSP; Apelação Cível 1061341-64.2024.8.26.0100; Relator (a): Domingos de Siqueira Frascino; Órgão Julgador: Núcleo de Justiça 4.0 em Segundo Grau – Turma IV (Direito Privado 1); Foro Central Cível – 43ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/03/2025; Data de Registro: 28/03/2025

[11] TJSP; Apelação Cível 1035146-28.2013.8.26.0100; Relator (a): João Batista Vilhena; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 27ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/05/2024; Data de Registro: 26/07/2024

[12] Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (…) IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; (…)   § 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: (…) II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;

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A proteção à marca e a liberdade religiosa

Uma igreja registra a marca no INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) e, anos depois, move ação judicial contra outra congregação que utiliza denominação semelhante. O caso, aparentemente simples, esconde uma complexa questão jurídica: até que ponto o direito de propriedade industrial pode limitar a liberdade religiosa?

A situação se repete em alguns tribunais do país. Organizações religiosas, munidas de registros marcários, buscam impedir que outras comunidades de fé utilizem nomes que consideram similares aos seus. Do outro lado, congregações argumentam que termos bíblicos e expressões de significado espiritual não podem ser monopolizados por uma única entidade.

O conflito revela uma tensão fundamental: a proteção da propriedade intelectual versus o direito fundamental à liberdade religiosa. Este texto examina como a doutrina e Superior Tribunal de Justiça têm enfrentado essa questão, buscando um equilíbrio que respeite tanto os interesses da propriedade intelectual quanto os valores inerentes à liberdade de expressão religiosa.

Diversas são as nuances jurídicas que permeiam tais disputas, explorando a natureza das marcas evocativas ou fracas, a especificidade do registro de marcas mistas, a aplicabilidade da teoria da distância e as implicações relativas à liberdade de crença e culto. A problemática central reside em harmonizar a proteção conferida ao titular de uma marca, que visa garantir a distintividade e evitar a concorrência desleal, com a garantia fundamental da liberdade religiosa, que abrange a autonomia na escolha do nome pelo qual uma comunidade de fé se identifica.

Direito fundamental à liberdade religiosa e a identidade das comunidades de fé

A liberdade religiosa, consagrada no artigo 5º, inciso VI, da Constituição, é um pilar do Estado democrático de Direito, assegurando a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, o livre exercício dos cultos e a proteção aos seus locais. Este direito transcende a esfera íntima do indivíduo, projetando-se na dimensão coletiva por meio da formação de comunidades religiosas. A escolha do nome de uma entidade de fé, neste contexto, não é uma mera designação comercial; ela carrega um significado profundo, refletindo a identidade, a doutrina e a missão do grupo.

Como ensina o ministro Luís Roberto Barroso [1], a dignidade da pessoa humana, fundamento da República, possui uma origem intrinsecamente ligada à tradição religiosa, sendo o alicerce e a finalidade dos direitos fundamentais. A liberdade religiosa, portanto, está absolutamente relacionada com a dignidade, e o respeito à opção religiosa de cada um é condição para a cidadania plena.

A doutrina jurídica defende uma indissociabilidade entre os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana, uma vez que esta “é tanto o fundamento quanto o fim dos direitos fundamentais, para os quais atua como paradigma e por meio dos quais aflora concretamente.” [2]

Assim como os demais direitos fundamentais, portanto, a liberdade religiosa “está absolutamente relacionada com a dignidade da pessoa humana e com a cidadania” [3] e, “para que um indivíduo possa se considerar cidadão e portador de dignidade juridicamente protegida, a sua opção religiosa deve ser respeitada, como parte de sua liberdade de consciência” [4].

O exercício da fé é uma expressão do direito à personalidade, merecendo especial tutela constitucional e infraconstitucional, conforme o artigo 11 do Código Civil. Restringir indevidamente o uso de uma nomenclatura escolhida por uma comunidade religiosa, especialmente quando baseada em textos sagrados, pode configurar um cerceamento desproporcional da liberdade de crença e de culto.

Muito embora a propriedade intelectual tenha amparo constitucional, é preciso reconhecer que essa proteção não pode representar um embaraço absoluto ao exercício da liberdade religiosa. Nesse norte de ideias, assim como a proteção da marca, a livre profissão da fé também encontra respaldo constitucional, devendo ambos os direitos coexistirem de forma equilibrada e harmoniosa  (artig 5º, VI e XXIX, da Constituição).

A disputa, nestes casos, não é puramente mercantilista, mas atinge o cerne da autonomia e da expressão identitária de grupos religiosos. A utilização de nomes para designar igrejas está, assim, diretamente ligada ao exercício coletivo do direito fundamental à liberdade religiosa. O Estado laico tem o dever de proteger o livre exercício das diversas religiões, garantindo tratamento isonômico. Embora o direito de propriedade intelectual sobre marcas também possua guarida constitucional (artigo 5º, XXIX, CF/88), sua aplicação no contexto religioso deve ser ponderada com a liberdade de fé, buscando a coexistência harmônica desses direitos.

Mitigação da exclusividade marcária: marcas evocativas, fracas e a possibilidade de convivência

A Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96), em seu artigo 124, incisos XIX e XXIII, condiciona a violação do direito de marca à possibilidade de gerar confusão no consumidor ou associação indevida. No âmbito religioso, é comum o uso de termos extraídos de textos sagrados ou de conceitos espirituais amplamente difundidos.

Tais expressões, por sua natureza, podem ser consideradas “fracas” ou “evocativas”, pois possuem baixo grau de distintividade intrínseca ao sugerirem características do “serviço” religioso. A apropriação exclusiva de termos como “Nova Aliança”, “Cruz do Calvário” ou “Pentecostes”, dentre milhares de outros exemplos, presentes em diversos textos bíblicos, por uma única instituição, é questionável, pois poderia configurar uma afronta à liberdade de crença e ao livre acesso ao patrimônio espiritual comum.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem se consolidado no sentido de que marcas fracas, sugestivas ou evocativas, por constituírem expressão de uso comum, atraem a mitigação da regra de exclusividade, admitindo-se sua utilização por terceiros de boa-fé.

Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça destacou que marcas registradas com termos que remetem à própria religião devem coexistir, mitigando-se a exclusividade:

RECURSO ESPECIAL. MARCA. ABSTENÇÃO DE USO E INDENIZAÇÃO. SINAL SUGESTIVO. EXCLUSIVIDADE. MITIGAÇÃO. CONCORRÊNCIA DESLEAL. CONFUSÃO. NÃO OCORRÊNCIA.
Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
Cinge-se a controvérsia a saber se o detentor do domínio vozesmormons.com.br na internet viola o direito de propriedade da marca mormon, registrada pel’A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.
A jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça entende que marcas fracas, sugestivas ou evocativas, que constituem expressão de uso comum, de pouca originalidade, atraem a mitigação da regra de exclusividade decorrente do registro, admitindo-se a sua utilização por terceiros de boa-fé. Precedentes.
No caso, o sinal distintivo não tem ligação direta com a entidade que a registrou, mas remete à própria religião por ela professada e, principalmente, aos seus adeptos, o que caracteriza um sinal meramente sugestivo, devendo a coexistência ser tolerada.
Na hipótese, rever o entendimento do Tribunal de origem, que concluiu que a confusão nos fiéis e a concorrência desleal não se caracterizaram, exigiria o reexame de provas, procedimento vedado pela Súmula nº 7/STJ.
Recurso especial não provido.
(STJ – REsp: 1912519 SP 2020/0337381-8, Data de Julgamento: 14/06/2022, T3 – TERCEIRA TURMA, Rel. Min. MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA. Data de Publicação: DJe 17/06/2022)

Este entendimento é crucial. Se uma denominação está intimamente ligada à doutrina de uma comunidade, fundamentada em textos sagrados, e se o seu uso é anterior ao registro por outra entidade, ou se atuam em contextos geográficos distintos, a coexistência dos nomes pode ser a solução mais equilibrada. A boa-fé e a ausência de confusão real entre os fiéis são fatores determinantes para permitir a convivência, harmonizando a propriedade intelectual com a liberdade religiosa.

Proteção da marca mista e análise conjunta dos elementos

Muitas entidades religiosas registram suas marcas na modalidade “mista”, que combina elementos nominativos (palavras) e figurativos (logotipos). Nestes casos, a proteção conferida pelo INPI abrange o conjunto, e não cada elemento isoladamente. Quando o titular de uma marca mista busca impedir o uso de um nome semelhante, a análise de colidência não deve se restringir à comparação do elemento nominativo.

Deve-se considerar o conjunto marcário como um todo, incluindo a logomarca, as cores e a estilização. Se os elementos figurativos são significativamente diferentes, a ponto de tornar os conjuntos inconfundíveis para o público-alvo, a mera semelhança parcial no nome pode não ser suficiente para caracterizar violação de marca.

O Superior Tribunal de Justiça preconiza a análise do conjunto marcário como um todo indivisível, considerando a percepção do público consumidor:

RECURSO ESPECIAL. PROPRIEDADE INDUSTRIAL. AÇÃO DE NULIDADE DE REGISTRO DE MARCA E DE ABSTENÇÃO DE USO. COLORÊ / YOPA COLORES. ANÁLISE DO CONJUNTO MARCÁRIO. TODO INDIVISÍVEL. POSSIBILIDADE DE CONVIVÊNCIA. AUSÊNCIA DE RISCO DE CONFUSÃO OU ASSOCIAÇÃO INDEVIDA. DIFERENÇA FONÉTICA. FAMÍLIA DE MARCAS. FUNÇÃO SECUNDÁRIA DA EXPRESSÃO COLORES. MARCA MISTA X MARCA NOMINATIVA. DISTINGUIBILIDADE SUFICIENTE. NULIDADE DO ACÓRDÃO. PREJUDICIALIDADE. PRIMAZIA DO JULGAMENTO DO MÉRITO. (…) 8. Não se pode fragmentar a análise da marca a ponto de quebrar sua unidade e a forma pela qual o público consumidor a percebe, sendo de rigor que se proceda a uma análise global do conjunto. Doutrina. (…)
(STJ – REsp: 1924788 RJ 2020/0077290-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 08/06/2021, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/06/2021)

O que se vê é que em disputas envolvendo marcas mistas de entidades religiosas, se o elemento nominativo é semelhante, mas os elementos figurativos são distintos, a possibilidade de confusão diminui consideravelmente, abrindo espaço para a convivência, especialmente se as entidades atuam em localidades distantes e não há evidência de aproveitamento parasitário.

Teoria da Distância e diminuição da força distintiva da marca

teoria da distância postula que a análise de colidência entre duas marcas deve considerar o grau de distintividade que elas possuem quando comparadas com as demais já existentes em seu segmento. Essa teoria se refere ao distanciamento linguístico entre os sinais marcários, e não à distância física entre os respectivos titulares das marcas [5].

Se um termo já é utilizado por diversas marcas no mesmo nicho de mercado (serviços religiosos), ocorre um fenômeno de diminuição da sua força distintiva. Com isso, o titular de uma marca que contenha tal expressão não pode exigir que novas marcas concorrentes sejam mais diferentes da sua do que a sua própria é das preexistentes.

Em outras palavras, se as marcas de um mercado têm aparência gráfica semelhante, uma nova marca pode seguir esse padrão visual sem precisar ser muito diferente. Isso não causaria confusão, pois o consumidor já está acostumado com esse estilo no segmento. Impedir isso poderia, inclusive, limitar a concorrência no mesmo mercado [6].

A presença de múltiplos registros no INPI contendo termos como “Igreja” ou “Cristo” na classe de serviços religiosos evidencia que tais vocábulos são de uso comum, o que enfraquece a possibilidade de erro do consumidor e exige uma análise mais detalhada dos elementos distintivos. É o que o STJ também vem adotando em casos julgados sobre o tema:

RECURSO ESPECIAL. PROPRIEDADE INDUSTRIAL. AÇÃO DE NULIDADE DE REGISTRO DE MARCA E DE ABSTENÇÃO DE USO. ELLE / ELLE ELLA. POSSIBILIDADE DE CONVIVÊNCIA. AUSÊNCIA DE RISCO DE CONFUSÃO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. TEORIA DA DISTÂNCIA. (…) 5. O fato de existirem diversas marcas em vigor também formadas pela expressão ELLE atrai a aplicação da teoria da distância, fenômeno segundo a qual não se exige de uma nova marca que guarde distância desproporcional em relação ao grupo de marcas semelhantes já difundidas na sociedade. (…)
(REsp 1819060/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/02/2020, DJe 26/02/2020).

A comparação se dá não somente entre as marcas em disputa, mas também quanto ao mercado pertinente, conforme a lição da doutrina:

“(…) Desenvolvida na Alemanha, a teoria da distância também se vale da ideia de marcas imersas em campos de proteção com magnetismo variado. Seu postulado consiste no princípio segundo o qual a análise de colidência entre duas marcas deve levar em consideração o maior ou menor grau de distintividade que elas possuem, quando comparadas com as demais marcas já existentes em seu segmento. A possibilidade ou não de confusão é estabelecida não só com base no nível de semelhança que as marcas tidas como semelhantes observam entre si, mas também na similaridade que têm com as demais marcas de seu ramo de atividade” (SCHMIDT,  Lélio Denicoli. A distintividade das marcas: secondary meaning, vulgarização e teoria da distância. São Paulo: Saraiva, 2013, edição eletrônica).

Se diversas entidades religiosas já utilizam expressões comuns, a exigência de abstenção de uso por uma nova entidade, com base apenas na semelhança parcial do nome, pode ser desproporcional, especialmente se não houver risco concreto de confusão, considerando todos os elementos distintivos, como logomarca e localização geográfica.

Conclusão

A análise dos conflitos entre o direito de marca e o uso de nomes por entidades religiosas revela uma tensão que demanda uma ponderação cuidadosa. A aplicação rígida das normas de propriedade industrial, sem considerar as particularidades do contexto religioso, pode levar a um cerceamento indevido da liberdade de crença e culto. A utilização de termos de origem bíblica ou de significado espiritual comum pode caracterizar marcas como fracas ou evocativas, cuja exclusividade deve ser mitigada, permitindo a convivência pacífica.

A análise de marcas mistas deve considerar o conjunto dos elementos, onde a distintividade dos logotipos pode suplantar a semelhança nominativa. Ademais, a teoria da distância e a ausência de prova de ato ilícito, confusão ou dano concreto podem afastar a responsabilidade civil.

A solução para tais litígios deve buscar o equilíbrio, privilegiando a coexistência das diferentes manifestações de fé, em respeito à pluralidade religiosa. A propriedade intelectual, embora relevante, não pode se sobrepor de forma absoluta a um direito humano fundamental como a liberdade religiosa, especialmente quando a disputa envolve expressões que pertencem ao patrimônio comum da fé.

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[1] BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado, 2010. Disponível aqui.

[2] TAIAR, Rogério. Direito internacional dos direitos humanos: uma discussão sobre a relativização da soberania face à efetivação da proteção internacional dos direitos humanos. São Paulo: Faculdade de Direito da USP, 2009. Disponível aqui.

[3] CHEHOUD, Heloísa Sanches Querino. A liberdade Religiosa nos Estados Modernos. São Paulo: Almedina, 2012. p. 94.

[4] CHEHOUD, 2012, p. 95.

[5] TAUK, Caroline Somesom; SANTOS, Celso Araújo. Lei da Propriedade Industrial interpretada: comentários e jurisprudências. São Paulo: Editora Juspodivm, 2024, p. 500.

[6] Ibid.

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Com maioria, STF retoma quarta-feira julgamento sobre redes sociais

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem marcada para a próxima quarta-feira (25) a retomada do julgamento sobre a responsabilidade das redes sociais por publicações ilegais feitas por usuários em suas plataformas.

Em sessão anterior neste mês, o plenário formou maioria de 7 a 1 pela possibilidade de responsabilização, na esfera cível, das empresas caso permitam que seus usuários publiquem mensagens que violem a lei.

Essas mensagens podem conter, por exemplo, conteúdos racistas, homofóbicos, misóginos, de ódio étnico, contra a honra ou antidemocráticos, entre outros tipos de crimes cometidos online.

O alcance real do entendimento da maioria e como ele deve ser aplicado são questões que ainda devem ser esclarecidas ao final do julgamento, uma vez que cada ministro votou de forma própria.

Na essência, porém, a maioria entende que as empresas de tecnologia têm responsabilidade pelo que é publicado em suas plataformas, podendo ser punidas a pagar indenizações. Votaram nesse sentido os ministros Dias Toffoli, Luiz Fux, Flavio Dino, Cristiano Zanin, Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes.

O único a divergir até o momento foi André Mendonça, para quem as plataformas não têm responsabilidade pelo exercício da liberdade de expressão feito por seus usuários. Ainda devem votar os ministros Edson Fachi e Cármen Lúcia.

O plenário julga dois recursos que questionam o artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). O dispositivo prevê que, “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”, as empresas provedoras de aplicações na internet somente podem ser responsabilizadas civilmente por publicações de terceiros se descumprirem alguma ordem judicial prévia de retirada.

Os recursos em julgamento têm repercussão geral. Isso significa que o plenário do Supremo vai estabelecer uma tese vinculante, que deverá ser seguida obrigatoriamente por todos os tribunais do país ao julgar processos sobre o assunto.

Votos

Os primeiros a votar no julgamento do tema foram os relatores dos recursos, os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux. Os dois entenderam que o artigo 19 do Marco Civil da Internet é inconstitucional, por conferir imunidade indevida às plataformas de redes sociais.

Para os relatores, não é necessário que as empresas aguardem uma ordem judicial para que sejam obrigadas a retirar do ar o conteúdo considerado ilícito, bastando para isso a notificação extrajudicial por alguém que se sinta vítima da publicação.

Presidente do Supremo, o ministro Luís Roberto Barroso votou de forma similar, ressalvando somente que nos casos de crimes contra a honra – injúria, calúnia e difamação – ainda seria preciso uma ordem judicial prévia para a derrubada de postagens dos usuários de redes sociais.

Flávio Dino votou de forma semelhante a Barroso, no sentido de que, em regra, seja aplicado o previsto no artigo 21 do Marco Civil da Internet. Por esse dispositivo, basta a notificação extrajudicial de vítima ou advogado para que um conteúdo ilícito seja removido. Nos crimes contra a honra, ainda seria aplicado o artigo 19.

Formando maioria, Gilmar Mendes previu em seu voto diferentes regimes de aplicação das regras do Marco Civil, desde uma aplicação geral do artigo 21 até uma aplicação residual do artigo 19 nos casos de crimes contra a honra e de responsabilização presumida nos anúncios e impulsionamentos ilegais aceitos pelas plataformas.

Alexandre de Moraes foi o sétimo a se juntar à maioria. Para ele, as big tech que atuam no ramo das redes sociais podem ser equiparadas a empresas de mídia, sendo assim responsáveis pelo que é publicado em suas plataformas.

Outro lado 

O julgamento é acompanhado de perto pelas chamadas big tech – grandes empresas de tecnologia que dominam o mercado de redes sociais, como Google e Meta. No início do julgamento, em sustentação oral, representantes do setor defenderam a manutenção do Marco Civil da Internet como está, protegendo as aplicações do uso que é feito por seus usuários. 

Representantes das redes sociais defenderam a manutenção da responsabilidade somente após o descumprimento de decisão judicial, como ocorre atualmente. As redes socais sustentaram que já realizam a retirada de conteúdos ilegais de forma extrajudicial e que o eventual monitoramento prévio do que é publicado pelos usuários configuraria censura. 

Fonte: EBC

A proteção dos consumidores na regulação bancária

O consumo de crédito e de outros serviços financeiros é um tema sensível no Brasil. Mesmo com a incidência do Código de Defesa do Consumidor, pautado nos princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio, as relações entre instituições financeiras e consumidores são marcadas por altíssima litigiosidade. Ano após ano, os relatórios Justiça em Números do CNJ indicam os bancos entre os maiores litigantes, em demandas que discutem desde os abusos em cobranças de dívidas e os pedidos de revisão dos contratos,[1] até os fenômenos mais recentes do superendividamento e a explosão de fraudes bancárias [2].

Com a intensa transformação digital dos serviços financeiros, a proteção dos consumidores exige cada vez mais o conhecimento especializado e multidisciplinar, tanto para compreensão dos novos problemas nas relações bancárias, quanto para construir as respectivas soluções. O Direito Bancário é naturalmente multidisciplinar e dialoga constantemente com outras ciências. Expressões como custo efetivo total, sistema de amortização, capitalização composta de juros, etc., são linguagem corriqueira dos contratos bancários, com conceitos definidos pela Economia ou Matemática Financeira.

O Direito Bancário também se funda em múltiplas fontes, como a Constituição, o direito dos contratos no CDC e no Código Civil, as legislações específicas do sistema financeiro, os precedentes do STJ e STF que interpretam esse arcabouço normativo, a regulação setorial do Conselho Monetário Nacional (CMN) e Bacen, os usos e costumes bancários, as recomendações de soft law e a autorregulação bancária [3].

O CDC, microssistema das relações de consumo, prevê expressamente, em seu artigo 7º, o diálogo das fontes. Esse método possibilita uma visão unitária, sistemática e coerente do direito privado, iluminado a partir da Constituição, para a concretização do direito fundamental de defesa do consumidor [4]. O diálogo entre o CDC e as demais normas que regulam o Sistema Financeiro Nacional foi reconhecido na Adin 2.591/DF, julgamento em que o STF consolidou a aplicação do CDC aos contratos e serviços bancários.

Quase duas décadas depois, o diálogo com a regulação setorial, exercida pelo CMN e Bacen, pode contribuir para o aprimoramento das relações entre bancos e consumidores, em três frentes distintas: (1) a informação adequada sobre os custos e riscos do crédito; (2) a limitação dos juros praticados em operações de alto risco de endividamento, como o cartão de crédito e o cheque especial; e (3) o reforço dos deveres de segurança das transações, para prevenção e reparação das fraudes bancárias.

O detalhamento do custo do crédito se articula com um dos principais direitos do consumidor: o direito básico à informação, artigo 6º, III, CDC, que exige que o consumidor seja informado, de forma prévia e adequada, sobre os elementos dos produtos ou serviços, inclusive a modalidade, riscos e preço. Para que o consumidor compreenda os custos do crédito, o CDC desde sua origem estabeleceu uma série de informações obrigatórias no artigo 52, dentre elas a “soma total a ser paga, com ou sem financiamento”. Ou seja, há mais de três décadas, exige-se que a concessão de crédito ou financiamento esclareça ao consumidor, de forma clara, o valor total devido pelo empréstimo.

Para reforçar a clareza sobre os custos do crédito, a Lei 14.181/2021 introduziu no CDC os artigos 54-B, 54-C e 54-D, com o intuito de prevenir o superendividamento dos consumidores. Desde então, os fornecedores de crédito devem não apenas informar mas também esclarecer os consumidores sobre os custos do crédito e modalidade de contratação, bem como advertir sobre os riscos gerais e específicos da inadimplência. O artigo 54-B especifica que o Custo Efetivo Total (CET) das operações, sintetizado em percentual ao ano, deve compreender todos os valores cobrados do consumidor, “sem prejuízo do cálculo padronizado pela autoridade reguladora do sistema financeiro”. E é justamente nesse cálculo padronizado do CET que a regulação bancária contribui para aprimorar o direito à informação [5].

Resoluções do Conselho Monetário Nacional

O custo das operações foi tratado pelo CMN em três resoluções, publicadas no Dia Mundial do Consumidor (15/3), no ano de 2013. A Resolução CMN 4.196 exigiu que os bancos esclareçam aos consumidores o direito aos serviços essenciais gratuitos nas contas correntes para pessoas físicas, devendo informar que o consumidor não é obrigado a contratar um pacote mensal de tarifas, para abertura e movimentação de contas correntes. Trata-se de dever importante de informação que deve ser atendido pelos bancos, para que a contratação de tarifas em contas correntes não seja imposta em venda casada, prática abusiva vedada pelo artigo 39, I, CDC.

A Resolução 4.198 regula as informações sobre os custos de transações de câmbio. Já a Resolução 4.197, estabeleceu que o Custo Efetivo Total das operações de crédito deve discriminar cada componente (juros, tarifas, IOF, seguros, etc.) em percentual ao ano e em reais. Ou seja, não basta apenas informar as taxas de juros e valores das prestações mensais. Para compreensão adequada do custo do crédito, cada encargo cobrado deve ser detalhado tanto em percentual ao ano, como em valor monetário, permitindo assim que o consumidor avalie com clareza o custo real do crédito. A Resolução CMN  4.881, de 23/12/2020, passou a exigir esse detalhamento do CET também para os contratos de empresários individuais e empresas de micro ou pequeno porte, que podem se enquadrar no conceito de consumidores, ante a vulnerabilidade que notadamente apresentam junto aos bancos [6].

O objetivo de aprimorar as relações entre bancos e clientes se observa também na Resolução CMN 2.878, de 26/7/2021, que estabeleceu que as instituições financeiras devem atuar com transparência nos relacionamentos com seus clientes, assegurando respostas tempestivas a dúvidas, clareza nas informações sobre os custos das operações, em contratos de fácil leitura, fornecendo aos seus clientes os contratos, extratos, demonstrativos de dívidas e demais documentos solicitados. O texto foi alterado pelas Resoluções CMN 3.694, de 26/3/2009, CMN 4.949, de 30/9/2021 e CMN 5.117, de 25/1/2024, e a versão atual exige deveres como adequação dos produtos às necessidades dos clientes, segurança das transações, em uma política de relacionamento cooperativo, equilibrado e justo para os clientes, considerando seus perfis de relacionamento e vulnerabilidades associadas.

Ainda para reforçar a transparência, as Resoluções CMN 5.004, de 24/3/2022 e CMN 5.112, 21/12/2023, estabelecem que a contratação de operações financeiras depende de formalização de instrumento representativo do crédito junto ao cliente. Tal exigência é de suma importância, num cenário em que não raro os consumidores não recebem cópia dos contratos, o que inclusive contribui para a propagação de fraudes bancárias. Essas mesmas resoluções determinam que as instituições financeiras devem fornecer aos clientes, pessoas físicas e empresários individuais, o Documento Descritivo de Crédito, detalhando informações como número do contrato, saldo devedor atualizado e demonstrativo de sua evolução, sistema de pagamento, além de informar o valor para quitação antecipada dos contratos, com o abatimento proporcional dos juros a partir das mesmas taxas contratadas. O Descritivo de Crédito deve ser fornecido imediatamente nos canais de atendimento presenciais, e em até um dia útil nos demais canais de atendimento.

Essas medidas reforçam um dos principais pilares do direito contratual, tanto do CDC, como do Código Civil: a boa-fé objetiva, princípio de ordem pública, fonte dos deveres colaterais de cooperação, transparência e lealdade. As próximas normas que serão abordadas corroboram com outro pilar fundamental do CDC: o princípio do equilíbrio, que reprime a onerosidade excessiva.

A proteção contra onerosidade excessiva em contratos bancários perpassa necessariamente pelo tema das altíssimas taxas de juros praticadas no Brasil. O provisionamento da inadimplência continua sendo a principal justificativa dos bancos para as estratosféricas taxas de juros brasileiras. Tal justificativa é questionada, a partir de estudos que demonstram o crescimento das taxas de juros mesmo em períodos em que a inadimplência se mantém estável [7]. Outras pesquisas identificam que o principal fator para as taxas de juros tão altas é o igualmente elevado spread bancário [8], decorrente da falta de competição no mercado financeiro [9]. O spread bancário do Brasil é o maior do mundo e cerca de 11 vezes o praticado em países desenvolvidos, não havendo diferença significativa entre o spread dos bancos públicos e privados no Brasil[10].

Apesar de todo o tabu que essa discussão enfrenta, o fato é que a Lei Bancária (Lei 4.595/64) atribui ao Conselho Monetário Nacional a competência normativa para limitar os juros praticados pelas instituições financeiras. A limitação é mais frequente nos contratos de crédito direcionado, linhas de crédito específicas, criadas por lei, para a execução de alguma política pública, como o crédito para habitação, financiamento estudantil e crédito rural. Apenas recentemente é que o CMN passou a exercer o seu poder regulatório também em operações de taxas livres, em que não há limitação legal de encargos. E o fez justamente em duas modalidades de concessão de crédito, de altíssimo custo e risco de endividamento: o cheque especial e o cartão de crédito.

A Resolução CMN 4.765, de 27/11/19 limitou em 8% a.m. as taxas máximas de juros cobradas pela utilização de limite de cheque especial, em contas correntes de pessoas físicas e microempreendedores individuais. Dentre as justificativas adotadas pelo Bacen, para estabelecer esse teto inédito de juros, destaca-se a constatação de que “entre 2017 e 2019, a taxa de juros do cheque especial aumentou − a despeito da queda na taxa básica de juros, da manutenção do nível de inadimplência e da queda dos spreads bancários para a quase totalidade das operações de crédito com taxas livremente pactuadas entre instituições financeira e clientes” [11].

Em relação ao cartão de crédito, que segue sendo um dos vilões de endividamento dos consumidores, a Resolução CMN 4.549 de 26/01/17, determinou que: (1) o uso do limite rotativo do cartão de crédito somente poderia ser feito em um mês, evitando que o cliente reiteradamente contrate essa modalidade de crédito de altíssimo custo; (2) a partir do mês seguinte, o banco deve ofertar ao cliente a possibilidade de parcelamento do valor em aberto, com taxas de juros mais baixas, em benefício do cliente. Importante frisar que ofertar uma linha de crédito alternativa, com juros mais baixos, não é o mesmo que impor um parcelamento automático, sem solicitação expressa do cliente, e com taxas muito maiores do que as do crédito pessoal.

Para conter o endividamento excessivo nos cartões de crédito, a Resolução CMN 5.112, de 21/12/2023, estabeleceu que os valores totais de encargos cobrados pelos parcelamentos de faturas de cartão de crédito não poderia ultrapassar o valor emprestado. A partir de janeiro de 2024, os bancos devem respeitar o teto de encargos fixado pelas autoridades monetárias.

As limitações de encargos nos contratos de cheque especial e cartão de crédito são um importante avanço. Entretanto, a regulação do CMN nas operações com “taxas livres” ainda é tímida, com parcimônia e omissão em relação a empréstimos para pessoas físicas, com taxas de juros que alcançam os absurdos patamares de 1000% ao ano. Se na limitação dos encargos a regulação setorial ainda deixa muito a desejar, o campo da segurança e prevenção contra fraudes talvez seja o de maior atuação.

No ano de 2012, a Súmula 479/STJ reconheceu a responsabilidade objetiva das instituições financeiras em reparar os danos causados a consumidores, por fraudes cometidas por terceiros. Trata-se de risco inerente da atividade bancária, que integra o chamado “fortuito interno”.

A regulação bancária permite aprofundar tanto a noção do fortuito interno, quanto as medidas que devem ser adotadas pelos bancos para cumprir os deveres de segurança. A Resolução CMN 4.557, de 23/2/2017 inclui expressamente as fraudes internas e externas como eventos inerentes ao risco operacional da atividade bancária. Em conjunto com a Resolução CMN 5.076, de 18/05/23, esclarecem uma série de falhas que integram o risco das atividades de pagamento, e exigem que a estrutura de gerenciamento de riscos operacionais deve contemplar sistemas, processos e infraestrutura de T.I. para assegurar integridade e segurança nas transações, mecanismos de proteção de redes, monitoramento das falhas de segurança e das reclamações dos consumidores, além de identificar movimentações financeiras e operações atípicas.

As operações atípicas podem ser compreendidas a partir do perfil de movimentação financeira e de uso do crédito de cada cliente da instituição financeira. No âmbito do Pix – pagamento instantâneo brasileiro, a regulação está em constante aperfeiçoamento. A Resolução BCB 142, de 23/9/2021 estabeleceu limites máximos de valores para transações realizadas entre 20h e 6h, bem como prazo mínimo de 24h para aumento de limites de transações a pedido dos clientes. As tentativas de fraudes devem ser registradas diariamente, cabendo aos bancos também discriminar as medidas corretivas adotadas.

A Resolução BCB 103 de 8/6/2021 criou o Mecanismo Especial de Devolução (MED), que pode ser iniciado tanto por iniciativa do usuário pagador, em caso de pagamento indevido ou suspeito de fraude, quanto por iniciativa própria da instituição financeira, que atende o usuário recebedor, em caso de suspeita de fraude. Ambos os processos são implementados por meio do Diretório de Identificadores de Contas Transacionais (Dict).

Já o Bloqueio Cautelar, criado pela Resolução BCB nº 147, de 28/9/21, estabelece a obrigação dos bancos de bloquearem preventivamente as operações, quando as transações destoarem do perfil do cliente e do histórico de transações anteriores, ou quando a chave recebedora dos valores for uma chave suspeita. O bloqueio cautelar deve ser implementado independentemente de solicitação do usuário pagador.

A Resolução Conjunta CMN/BCB 6 de 23/5/2023 e a Resolução BCB 343 de 4/10/2023 determinam aos bancos o compartilhamento de informações sobre suspeitas de fraudes. E a Resolução BCB 457 de 6/3/2025 estabeleceu que serão canceladas as chaves Pix vinculadas a CNPJs e CPFs que estejam irregulares junto à Receita Federal.

Em suma, a regulação bancária atual: (1) reforça a clareza das informações sobre os custos do crédito; (2) impõe limites às taxas de juros, que podem orientar os processos de revisão dos contratos, sobretudo nos casos de superendividamento; e (3) auxilia a identificar as falhas de segurança das transações bancárias, que ensejam o dever de reparação das fraudes. Se outrora houve resistência dos bancos à aplicação do CDC, da regulação setorial os bancos não podem se afastar.


[1] Sobre o tema, vide a robusta pesquisa indicando que, na maioria dos casos, os consumidores de crédito tem razão nos litígios judiciais contra os bancos. GREGORINI, Pedro Augusto. Jurimetria aplicada aos litígios em massa: o perfil dos processos envolvendo os bancos na Justiça Estadual de São Paulo. 2021. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2021. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/107/107131/tde-15082022-114649/. Acesso em: 11 jun. 2025.

[2] Metade dos brasileiros sofreu fraude em 2024, diz Serasa Experian | Agência Brasil. Acesso em 29/03/2025.

[3][3] MIRAGEM, Bruno. Direito Bancário. 2 ed. rev., atual. e ampl – São Paulo: Thomson Reuters, 2018, pp. 85-106

[4] MARQUES, Claudia Lima. Diálogo das fontes: do conflito à coordenação de normas no direito brasileiro / Claudia Lima Marques, coordenação. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 59-63.

[5] Código de defesa do consumidor comentado / organização de Denise Hammersschmidt / Curitiba: Juruá, 2025. Artigos 54-A a 54-G, Andressa Jarletti Gonçalves de Oliveira / Maria Carla Moutinho, pp. 452-481.

[6] OLIVEIRA, Andressa Jarletti Gonçalves de. Defesa judicial do consumidor bancário. Curitiba: Rede do Consumidor, 2014, pp. 76-94.

[7] CAMARGO, Patrícia Olga. A evolução recente do setor bancário no Brasil. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, pp. 84-85.

[8]NOGUEIRA, José Jorge Meschiatti. Tabela Price: Mitos e Paradigmas. 3. Ed. Campinas: Millenium Editora, 2013, pp. 208-209.

[9] BELAISCH, Agnès. Do Brazilian Banks Compete? IMF: [s.l.], 2003.

[10] DANTAS, José Alves. MEDEIROS, Otávio Ribeiro de; CAPELLETO, Lucio Rodrigues. Determinantes do spread bancário ex post no mercado brasileiro. RAM, Revista de Administração Mackenzie, v. 13, n. 4. São Paulo, jul./ago. 2012, p. 48-74.

[11] Banco Central do Brasil. Cheque Especial: avaliação do impacto da limitação da taxa de juros. Relatório de Economia Bancária. 2020.

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Debatedores defendem conscientização geral sobre riscos para crianças na internet

Participantes de uma audiência na Câmara dos Deputados defenderam o envolvimento de vários atores no enfrentamento dos riscos para crianças e adolescentes no ambiente virtual: governo, família, escola, polícia, Conselho Tutelar, Justiça e as plataformas digitais.

A deputada Flávia Morais (PDT-GO), que conduziu o debate na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família, disse que está aberta a sugestões para apresentar projetos de lei sobre o assunto, inclusive sobre a verificação de idade para uso de redes sociais.

“Nossa legislação ainda é tímida para enfrentar esse problema que chega a todas as famílias brasileiras”, afirmou Flávia Morais. “Vocês têm sugestões para que a gente possa elaborar um marco legal de enfrentamento aos males que o acesso descontrolado, desacompanhado e exagerado às redes sociais pode trazer aos nossos jovens e às nossas crianças?”, perguntou.

De acordo com a publicação TIC Kids Online Brasil 2024, 93% dos brasileiros com idade entre 9 e 17 anos é usuária de internet. Muitas vezes sem supervisão, essa população está sujeita à exposição de imagens íntimas, utilização de dados para publicidade direcionada, cyberbullying, discurso de ódio, golpes, abuso sexual e problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão.

Família
O gerente de projetos da Secretaria de Direitos Digitais do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo de Lins e Horta, acredita que a família deve ser chamada a decidir acerca de um problema que está sendo discutido em todo o mundo.

“A gente precisa, no Brasil, resgatar o poder familiar, devolver às famílias um poder que hoje é praticamente inexistente de fazer a supervisão, o monitoramento e o acompanhamento do que está acontecendo”, defendeu Horta. “Uma criança de seis anos vai conversar na internet com estranhos com total privacidade? Essa nunca foi a concepção de parentalidade e poder familiar”, defendeu.

A advogada especialista em direitos da criança e do adolescente Roberta Densa acrescentou que muitas vezes os pais sequer sabem o que a criança está consumindo na internet. Também não sabem da existência de aplicativos de controle parental que podem colocar na internet de casa, na televisão. Segundo Roberta Densa, os países devem contar com leis de proteção, programas de conscientização e educação e responsabilização do setor privado.

Também na avaliação do promotor de Justiça da Bahia Moacir Silva do Nascimento Júnior, as plataformas “não podem cruzar os braços” quando se deparam com conteúdo criminoso. “O conteúdo tem que ser removido. Às vezes, precisa de uma ordem judicial para remover algo horrível envolvendo a imagem de uma criança”, lamentou.

Empresas que valem 1 trilhão de dólares merecem punição severa com base no faturamento, na opinião do promotor.

Ações
Representantes do governo listaram, na audiência, ações que o Brasil tem empreendido para o enfrentamento do problema. A Lei 15.100/25, que restringe o uso de celulares por crianças e adolescentes em escolas, foi uma das medidas citadas. Outra foi a Lei 14.811/24, que tipifica bullying e cyberbullying como crimes. A pena prevista para o cyberbullying é reclusão de dois a quatro anos, além de multa.

O diretor de Proteção da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Fábio Meirelles, mencionou ainda o Disque 100 como canal que recebe todo tipo de denúncia de violação de direitos humanos, entre outros programas.

Fonte: Câmara dos Deputados

O que serão dos precedentes do Carf após a reforma tributária sobre o consumo?

Nos últimos textos publicados na revista eletrônica Consultor Jurídico (aquiaqui e aqui) temos nos dedicado a apresentar sugestões para tentar resolver possíveis problemas que certamente serão enfrentados no contencioso tributário (administrativo e judicial) com a reforma tributária sobre o consumo. As análises até então desenvolvidas gravitaram em torno de um debate acerca (1) do papel do Carf após a reforma, (2) da ausência de uma integração entre os tribunais administrativos que julgarão a CBS e o IBS, além (3) dos problemas de competência jurisdicional para demandas judiciais e (4) legitimidade processual passiva nas ações antiexacionais.

Como já abordado em alguns desses textos, até o presente momento competirá ao Carf a tarefa de processar e julgar as demandas administrativas que versarem a respeito da CBS e do Imposto Seletivo, Tribunal esse que, ao longo da sua história, formou uma massa de precedentes a respeito do PIS, da Cofins e do IPI, tributos que serão suplantados pelas novas exações incidentes sobre o consumo.

Diante desse quadro, a pergunta que se pretende aqui responder é a seguinte: o que serão desses precedentes do Carf após a reforma tributária sobre o consumo? De forma mais específica, os precedentes até então formados acerca do PIS, da Cofins e do IPI poderão ser convocados para resolver questões afetas à CBS e o IS?

Pretendemos responder tais questões, de caráter genérico, problematizando-as a partir de eventuais discussões que possam surgir a respeito da não cumulatividade na CBS.

Um passo atrás: o que é e como funciona um precedente?

O tema dos precedentes é riquíssimo, fruto de uma mundividência jurídica (Common Law) construída ao longo de séculos de história do Direito. Por óbvio, delimitar o que é um precedente e como tal instituto funciona é assunto para obras inteiras [1][2]. Logo, a pretensão de tratar esses pontos nesse pequeno texto tem o objetivo exclusivo de apenas delimitar premissas relevantes para as conclusões que alcançaremos adiante.

Mesmo que de forma muito simplista, é importante desde já registrar que precedente é uma decisão cuja ratio é ulteriormente convocada como fundamento para a resolução de casos análogos, ou seja, um precedente não nasce previamente com esse status, mas ganha tal qualificação quando convocado para resolver outro caso similar [3]. Em princípio, um precedente é só uma decisão que se presta a resolver um litígio específico.

Nesse sentido, uma decisão poderá ser convocada como um precedente sempre que houver uma similitude fático-jurídica entre o caso-precedente e o caso a ser decidido e, ainda, desde que no tempo presente – de resolução do novo caso – permaneça a relevância da ‘ratio decidendi’ veiculada no precedente, sob pena da sua superação (‘overruling’) a ser expressamente justificada pela nova decisão judicial [4]. Percebe-se, pois, que o método para a convocação de um precedente pressupõe uma similitude analógico-problemático (por aproximação) entre os casos comparados e não uma identidade lógico-subsuntiva típica das leis.

Daí se afirmar, na linha da chain novel dworkiniana [5], que um sistema de stare decisis é reflexo de uma continuidade histórica, de modo a preservar a integridade (artigo 926 do CPC) do direito construído jurisdicionalmente [6].

Logo, é perfeitamente possível convocar um precedente que trate da não-cumulatividade do ICMS para a resolução de uma questão análoga envolvendo um caso de IPI ou, ainda, que o precedente que trata da sobreposição do ISS em caso de conflito de incidência com o ICMS também seja convocado quando houver sobreposição entre esse imposto municipal e o IPI [7]. E isso porque, como dito anteriormente, para fins de convocação da ratio de um precedente não há necessidade de identidade de casos, mas sim aproximação entre eles. Tal afirmação já é um sinal acerca da resposta a ser ofertada ao questionamento do título do presente texto.

A reforma tributária sobre o consumo e os precedentes do Carf até então existentes: uma análise a partir da norma de não cumulatividade

É inegável que a reforma tributária sobre o consumo traz importantes novidades no ordenamento jurídico tributário, sendo as principais delas a (1) tributação unificada dessa parcela de riqueza em torno de tributos gêmeos (IVA dual – CBS e IBS), (2) sujeitos aos valores simplicidade e neutralidade [8], (3) o que se materializa por meio de bases amplas de incidência e de não cumulatividade [9].

Ao nos aprofundarmos na questão da não cumulatividade e partindo de experiências pretéritas no país, em especial em relação ao ICMS e ao IPI e todas as discussões daí decorrentes, resta claro que o constituinte derivado, por meio da EC nº 132/2023 e pautado pelo valor simplicidade, deliberadamente adotou um modelo de créditos amplos para o IBS e para a CBS, i.e., independentemente dos bens e/ou serviços adquiridos estarem diretamente relacionados à atividade econômica do contribuinte, afastando, de pronto, a exigência de contato físico, consumo ou incorporação de tais dispêndios na operação empresarial. Nesse aspecto, trata-se de um modelo de não cumulatividade mais próximo da realidade já vivenciada com o PIS e com a Cofins.

Tal fato já demonstra um sinal claro do caminho que o constituinte derivado quis percorrer, bem como o que ele quis evitar, o que não torna a não cumulatividade do IBS e da CBS imune de eventuais discussões, em especial em razão da restrição criada no caso de aquisições de bens/serviços para uso e consumo pessoal. Ainda que em menor escala do que encontramos hoje quando tratamos de não cumulatividade tributária, certamente esse será um ponto de possíveis litígios entre contribuintes e fisco, o que nos permite problematizar a questão abordada no presente texto: diante do contexto aqui apresentado, os precedentes do Carf acerca da não cumulatividade do PIS e da Cofins poderão ser convocados para resolver questões afetas a não cumulatividade do IBS e da CBS?

Dando um passo atrás, não é demais lembrar que quando implementada a não cumulatividade do PIS e da Cofins no ordenamento jurídico nacional, logo surgiram duas correntes extremadas para delimitar a extensão da neutralidade então criada: parte dos hermeneutas defendiam uma perspectiva restritiva para essa norma de não cumulatividade, de modo a aproximá-la com a realidade existente no ICMS e no IPI, na linha das Instruções Normativas 247/2002 e 404/2004; outra banda, por sua vez, defendia uma perspectiva ampliativa, que assemelhava o conceito de insumos no PIS e na Cofins com o de despesas dedutíveis do IRPJ.

Um longo caminho de debates foi percorrido até que sobreviesse a pacificação do tema por meio da decisão proferida no Recurso Especial 1.221.170, julgado pelo STJ sob a sistemática da repetitividade, bem como no Recurso Extraordinário 841.979, afetado no STF pela repercussão geral (Tema 756). E essa sedimentação judicial só foi possível depois de um importante amadurecimento da discussão por meio da jurisprudência do Carf, consolidada após mais de uma década de debates [10].

Dentre os contributos conferidos pela jurisprudência do Carf para o tema, destaca-se a posição que, pautada na doutrina do professor Marco Aurélio Greco [11], sagrou-se vencedora no sentido de que o conceito de insumo para fins de PIS e Cofins é um conceito relacional e que deve considerar o contexto no qual está inserido, seja sob a perspectiva microscópica, da atividade empresarial desenvolvida pelo contribuinte, seja sob uma perspectiva macroscópica, considerando o âmbito normativo da parcela de riqueza que tais exações pretende alcançar e os valores jurídicos que conformam tal incidência, o que, no caso da reforma tributária sobre o consumo, pressupõe – repita-se – uma exigência pautada em bases amplas, bem como a potencialização dos valores simplicidade e, em especial, neutralidade fiscal.

Olhando estaticamente para o retrovisor quanto à não cumulatividade do PIS e da Cofins, tais afirmações feitas em dias atuais parecem óbvias. O que não pode se ignorar, todavia, é que até se chegar a esse ponto de maturação, a jurisprudência do Carf oscilou bastante [12] e que as conquistas hermenêuticas alcançadas para o tema não podem ser perdidas, sob pena de um indevido retrocesso nesse debate, o que certamente macularia o já referido valor integridade das decisões de caráter jurisdicional.

Conclusões

Apesar das particularidades [13], é inegável que a jurisprudência do Carf para a questão da não cumulatividade do PIS e da Cofins não pode ser ignorada quando começarem a surgir problemas relacionados à não cumulatividade do IBS e da CBS, pois como já mencionado no presente texto, em um modelo metodologicamente adequado de stare decisis, a convocação das rationes de um precedente pressupõe pontos de semelhança com o caso em comparação (sub judice) e não uma identidade matemática.

Essa metódica também vale para outros temas que possam surgir com a efetiva implementação da reforma tributária sobre o consumo, de modo que os 100 anos de história de jurisprudência do CARF não sejam vistos como algo obsoleto, mas ao contrário, como um importante contributo para o direito judicado criado por esse Tribunal Administrativo.

A título de arremate, um precedente pode sim ser afastado em concreto [14], o que todavia vai depender de um pesado ônus argumentativo para justificar a existência de uma distinção (distinguishing) ou da sua superação (overruling). E tudo isso porque uma alteração legislativa, a superação de um código por outro ou até mesmo o advento de uma nova ordem constitucional, não é capaz de, por si só, implicar a “revogação” dos precedentes anteriormente formados pelos tribunais, pois como já exaustivamente exposto aqui precedente não é lei.


[1] Por tordos: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[2] Fazendo uma análise crítica do abrasileirado modelo de precedentes sob a particular perspectiva do processo tributário: RIBEIRO, Diego Diniz. A rescisão da coisa julgada com base em precedentes do STF e do STJ: uma análise crítica no processo judicial tributário. São Paulo: Noeses, 2024.

[3] Daí a acertada crítica de Lênio Streck ao afimar que erro fundamental daquilo que venho denominando de “precedentes à brasileira” se materializa no desejo exa(ge)rado dos tribunais superiores em produzir um estoque de normas jurídicas para o futuro sob a forma de precedentes (teses, temas etc.). Trata-se de uma contradição hermenêutica: não há respostas antes que as perguntas sejam formuladas. Não é papel dos tribunais resolver, abstratamente, causas jurídicas de maneira prospectiva. Precedentes são decisões pretéritas de casos concretos, cujas ‘rationes’ são identificadas como norma pelos demais tribunais e sempre aplicadas contingencialmente. (Por que teses dos tribunais superiores não são precedentes – grifos do Autor).

[4] RIBEIRO, Diego Diniz. A rescisão da coisa julgada com base em precedentes do STF e do STJ: uma análise crítica no processo judicial tributário. São Paulo: Noeses, 2024. p. 184-185.

[5] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 221 e ss.

[6] O respeito aos precedentes envolve o ato de segui-los, distingui-los ou revogá-los, jamais ignorá-los (BRAGA, Paulo Sarno; DIDIER JÚNIOR, Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. v. 2, 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 480.).

[7] A partir da jurisprudência do CARF, já analisamos criticamente essa específica questão aqui.

[8] Tratando do assunto: MOREIRA, André Mendes, Neutralidade, valor acrescido e tributação, Belo Horizonte: Fórum, 2019.; BOMFIM, Diego. Extrafiscalidade: identificação, fundamentação, limitação e controle. São Paulo: Noeses, 2015,

[9] O art. 156-A, §1º, inciso VIII, da Constituição Federal ressalva apenas duas situações em relação à não cumulatividade: as aquisições de bens/serviços de uso ou consumo pessoal, especificadas em lei complementar, e as hipóteses de vedação de crédito previstas na própria Carta Republicana.

[10] Aprofundando nesse percurso histórico da jurisprudência do CARF para essa discussão, destacamos: GAMEIRO, Mariel Orsi. KRALJEVIC, Maria Carolina Maldonado. RIBEIRO, Diego Diniz. Créditos de PIS e COFINS sobre gastos com logística reversa: o que esperar do CARF? In: Coletânea 100 anos do CARFOLIVEIRA, Ana Claudia Borges de. PURETZ, Tadeu (coord.). São Paulo: NSM Editora, 2024. p. 609-622.

[11] GRECO, Marco Aurélio. Conceito de insumo à luz da legislação de PIS/COFINSRevista Fórum de Direito Tributário – RFDT, Belo Horizonte, ano 6, n. 34, p. 9­30, jul./ago. 2008. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=54629>. Acesso em: 16 jun. 2025.

[12] No intervalo de 2004 a 2010, por exemplo, a jurisprudência majoritária do Carf estava alinhada com o entendimento restritivo veiculado pela RFB, conforme se observa, v.g., nos acórdãos Carf n.s 201-79.759 e 201.81.568.

[13] A título de exemplo, a não cumulatividade no PIS/Cofins se apresenta sob um modelo base contra base, enquanto no IBS/CBS se afigura sob a perspectiva imposto contra imposto.

[14] Inclusive quando a base legislativa que lhe originou é substituída por outra.

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Mesmo não acolhido, pedido de esclarecimentos interrompe prazo para anular sentença arbitral

Ao negar provimento a recurso especial, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o prazo decadencial de 90 dias para ajuizar ação anulatória de sentença arbitral começa a correr na data da notificação da sentença que julgou o pedido de esclarecimentos, mesmo quando este não é acolhido.

Durante litígio em procedimento arbitral administrado por uma câmara de conciliação e arbitragem de Goiânia, as partes acordaram que as notificações das decisões seriam publicadas internamente na secretaria da própria câmara. A ata de audiência também dispôs as datas de publicação interna da sentença arbitral e da sentença sobre eventual pedido de esclarecimentos.

Com a publicação da sentença arbitral, houve pedido de esclarecimentos, cujo julgamento em nada alterou a decisão anterior. Na sequência, uma das partes entrou com ação para anular a sentença arbitral, alegando desrespeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Após o Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) ter entendido que a ação anulatória foi ajuizada dentro do prazo decadencial, o caso chegou ao STJ, tendo a parte recorrente sustentado a decadência do direito de pleitear a anulação da decisão, pois o prazo teria começado já com a intimação acerca da sentença arbitral. Segundo a recorrente, “o prazo decadencial (para ajuizamento de ação anulatória) só tem início a partir da intimação da decisão sobre o pedido de esclarecimentos quando esta decisão, excepcionalmente, promove alguma alteração substancial na sentença arbitral”.

Pedido de esclarecimentos não precisa ser acolhido

A relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou que, independentemente de ter sido acolhido, o pedido de esclarecimentos interrompe o prazo de 90 dias para ajuizamento da ação anulatória de sentença de arbitragem. Conforme explicou, esse período começa a contar novamente a partir da notificação da decisão do árbitro sobre o pedido de esclarecimentos.

Ao observar que os esclarecimentos complementam a própria sentença, a ministra apontou que é naquele momento que deve recomeçar a contagem do prazo decadencial para uma eventual ação com o objetivo de anular a sentença arbitral.

“Não há necessidade de acolhimento dos esclarecimentos para que a interrupção do prazo decadencial ocorra”, reforçou Nancy Andrighi.

A relatora concluiu que o ajuizamento da ação anulatória da sentença arbitral ocorreu dentro do prazo decadencial de 90 dias estabelecido no artigo 33, parágrafo 1º, da Lei de Arbitragem.

Fonte: STJ

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STF forma maioria contra compartilhamento de torres de telecomunicação

O Plenário do Supremo Tribunal Federal formou maioria, nesta segunda-feira (16/6), para derrubar a norma que obriga empresas de telecomunicação a compartilhar torres transmissoras dentro de um raio de 500 metros. O fim do julgamento virtual está previsto para o próximo dia 24/6.

O colegiado já tem seis votos para não manter a decisão do último ano por meio da qual o ministro Flávio Dino, relator do caso, havia restabelecido a regra em questão.

Contexto

Na ação, movida em 2024, a Associação Brasileira de Infraestrutura para Telecomunicações (Abrintel) questiona um trecho da Lei 14.173/2021, que revogou o regime de compartilhamento de torres de telecomunicação anteriormente previsto na Lei 11.934/2009.

A regra não valia para antenas fixadas em prédios, antenas harmonizadas à paisagem ou torres instaladas até a data de sanção da norma de 2009.

A justificativa apresentada no Congresso foi a de que a regra dos 500 metros era um obstáculo à tecnologia 5G no Brasil. O 5G, que vem sendo implementado no país, representa a quinta geração da tecnologia de comunicação sem fio, com conexão mais estável e velocidade maior do que o 4G.

A lei de 2021 é  resultado da Medida Provisória 1.018/2020, que tratava de outro tema: a redução da Taxa de Fiscalização de Instalação (TFI) das estações de telecomunicação, da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP) e da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine).

A entidade alegou que o compartilhamento de torres entre as empresas constitui elemento estrutural da organização dos serviços de telecomunicações no Brasil desde a abertura desse mercado.

Por isso, segundo a Abrintel, a revogação do compartilhamento foi prejudicial ao desenvolvimento nacional, à política de desenvolvimento urbano e ao meio ambiente.

Por fim, a associação sustentou que o tema não pode ser regulamentado por meio de medida provisória.

Em setembro de 2024, Flávio Dino concedeu liminar para restabelecer a regra do compartilhamento.

Já em fevereiro deste ano, a Abrintel apresentou, na ação, um estudo e uma nota técnica. Segundo os documentos, a regra do compartilhamento fortalece a expansão da tecnologia 5G no Brasil.

Divergência

Preaveleceu o voto do ministro Luís Roberto Barroso, contrário à decisão de Dino. Até o momento, ele foi acompanhado por Gilmar Mendes, Cristiano Zanin, André Mendonça, Alexandre de Moraes e Luiz Edson Fachin.

Barroso considerou que há pertinência temática entre a MP e a emenda que deu origem à revogação da regra de compartilhamento: ambas “diziam respeito aos serviços de telecomunicações”.

Na sua visão, o objetivo original da medida provisória era ampliar o acesso à internet em banda larga via satélite no Brasil. Já o trecho inserido tinha o mesmo propósito de ampliar o acesso a serviços de telecomunicação, mas com foco na implementação do 5G.

O presidente do STF ressaltou que, em caso de “dúvida razoável quanto à existência ou não de pertinência temática”, a corte deve manter a posição adotada pelo Legislativo.

Barroso ainda entendeu que o trecho revogado tinha alcance restrito e não representava “núcleo essencial” da organização dos serviços de telecomunicação, pois tratava apenas de torres em um espaço de 500 metros.

Mesmo com a revogação da regra para essas torres, ainda existem previsões legais que definem as regras gerais de compartilhamento “de todo o tipo de infraestrutura de suporte — não apenas, mas inclusive das torres”.

Ou seja, segundo o magistrado, a nova regra não aboliu o compartilhamento de infraestrutura de telecomunicações no Brasil. A capacidade excedente ainda precisa ser compartilhada quando houver solicitação, exceto em casos de inviabilidade técnica.

O ministro acrescentou que o critério espacial da regra antiga “se tornou tecnicamente inadequado diante dos avanços tecnológicos e das novas demandas do setor, em especial com a implantação da tecnologia 5G”.

Conforme informações prestadas nos autos do processo, Barroso destacou que equipamentos de 5G exigem maior número e são de menor tamanho e alcance, o que justificou a eliminação do critério puramente geográfico.

“A imposição de regras rígidas e desatualizadas pode gerar distorções no setor, inibindo a sua expansão”, assinalou o magistrado. Segundo ele, a mudança de regra foi indispensável para a “expansão da infraestrutura de telecomunicações no país, com o objetivo de ampliar a disponibilidade do acesso às redes e de promover a universalização dos serviços”.

“A manutenção de restrições desnecessárias à instalação de novas infraestruturas ou a imposição de condições arbitrárias para o seu compartilhamento compulsório podem gerar impactos negativos, como a concentração de mercado, o aumento dos custos operacionais e até mesmo a limitação do acesso”, completou ele.

“Não havendo indícios de risco à saúde dos usuários e da população decorrentes da mudança implementada pelo dispositivo questionado, não identifico prejuízo na manutenção da norma impugnada.”

Voto do relator

Dino votou para manter sua liminar, mas ficou vencido. Até o momento, ele foi acompanhado apenas por Dias Toffoli.

Segundo o relator, embora os congressistas possam emendar os projetos de conversão de MP em lei, é proibido inserir emendas sobre assuntos que não tenham pertinência com o tema do texto original.

“Entendo plausível que a radical modificação operada no setor das telecomunicações, mediante aparente ‘emenda jabuti’, tenha ocorrido com possível prejuízo ao devido processo legislativo e ao princípio democrático.”

O magistrado considerou que a norma suprimiu um regime de compartilhamento incentivado por política nacional e causou grave “retrocesso socioambiental”, já que tende a multiplicar as infraestruturas de solo.

Clique aqui para ler o voto de Barroso
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ADI 7.708

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A montanha-russa regulamentar do Ex-tarifário

O regime de Ex-tarifário instituído pela Lei nº 3.244/1957 é um importante mecanismo de política comercial que permite a isenção ou redução do Imposto de Importação para bens de capital (BK) e bens de informática e telecomunicações (BIT), bem como suas partes, peças e componentes, quando não há produção nacional equivalente, ou esta é insuficiente para atender ao consumo interno. [1]

Sua base normativa encontra-se também no inciso I do artigo 14 do Decreto-Lei nº 37/1966, na Decisão Mercosul/CMC/Dec 34/03, em seu artigo 1º, e no Decreto no 5078, de 11/05/04. Sua importância está sintetizada pelo Ministério de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), como sendo: (i) viabilizar o aumento de investimentos em bens de capital (BK) e de informática e telecomunicação (BIT); (ii) possibilitar o aumento da inovação por parte de empresas, com a incorporação de novas tecnologias inexistentes no Brasil, ampliando produtividade e competitividade; (iii) promover  um efeito multiplicador de emprego e renda da economia nacional.” [2]

Como o imposto de importação atende a objetivos muito diversos do que meramente ser fonte de arrecadação de receitas para o Governo Federal, dentro da sua função regulatória e extrafiscal, promove-se a sua redução por meio da concessão de um regime de exceção tarifária. Esse permite zerar a cobrança do imposto de importação, quando a entrada do produto estrangeiro no território nacional for de interesse do país. Importar máquinas e equipamentos sem produção nacional equivalente estimula o setor produtivo, a inovação, a utilização de tecnologia de ponta, gerando desenvolvimento econômico, social, tecnológico, renda e empregos.

Como o imposto de importação é uma exceção ao princípio constitucional da anterioridade, nos termos do artigo 153, §1º da CF/88, o uso do Ex-tarifário serve legitimamente às políticas de governo, ora se reduzindo, ora se ampliando sua concessão, atendendo a interesse de maior proteção da indústria nacional, ou estímulo às importações.

Para regular a previsão da exceção às tarifas da TEC (Tarifa Externa Comum), o Poder Executivo, através dos Ministérios competentes, da Fazenda (outrora da Economia) e do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, tem editado resoluções e portarias ao longo dos anos para estabelecer as regras procedimentais para a análise e deferimento dos pleitos de Ex-tarifário.

A aplicação desse benefício a bens usados e destinados à revenda têm sido, nos últimos anos, um ponto de câmbios regulatórios, gerando incertezas para os importadores e acerbas discussões. A análise das normas que regularam o Ex-tarifário nos últimos dez anos revela uma trajetória de idas e vindas e, notadamente quanto à possibilidade de importação de bens usados com o benefício, é possível distinguirmos três momentos principais, a saber:

1º momento: vedação expressa (Resolução Camex nº 66/2014)

A Resolução Camex nº 66, de 14 de agosto de 2014, nesse período, foi a primeira norma a dispor sobre a redução temporária e excepcional da alíquota do imposto de importação para BK e BIT sem produção nacional equivalente, estabelecendo também as regras procedimentais para se requerer o benefício. Durante sua vigência essa resolução limitava expressamente a concessão dos Ex-tarifários exclusivamente a bens novos, excluindo, portanto, os bens usados, conforme previsão expressa do §3º do seu artigo 1º. Assim, qualquer Ex-tarifário analisado e deferido nesse período não abarcava a importação de bens usados.

2º momento: a abertura e a interpretação da Receita (Portaria ME nº 309/2019 e Soluções de Consulta Cosit)

Em 24 de junho de 2019 foi editada a Portaria ME nº 309/2019 revogando a Resolução Camex nº 66/2014. Uma novidade relevante na nova regulamentação foi que ela não manteve dentre seus dispositivos a vedação expressa à utilização do Ex-tarifário para bens usados, tampouco para bens de consumo. Embora a Portaria Sepec nº 324/2019 orientasse pela recomendação negativa para pedidos visando aplicação a bens usados na análise técnica, conforme disposição do seu artigo 3º, essa recomendação não possuía caráter vinculante, conforme entendimento 6ª Turma do TRF 3ª Região estabelecida no julgamento da apelação em remessa necessária, no 50018206720204036104 SP, Relator: Desembargador Federal Luís Antonio Johonsom Di Salvo, publicada em 18/02/2021. [3]

Diante da ausência de previsão normativa no texto da Portaria ME nº 309/2019 vedando a aplicação do Ex-tarifário a bens usados, a Receita Federal, respondendo a questionamento de um interveniente, publicou a Solução de Consulta Cosit nº 122/2020 consignando que o Ex-tarifário concedido nos termos da Portaria ME nº 309/2019 seria aplicável tanto à importação de bens novos, quanto de bens usadosincluindo os remanufaturados ou “refurbished[4]

A Solução de Consulta Cosit nº 122/2020 analisou especificamente um caso em que um Ex-tarifário, inicialmente concedido sob a Resolução Camex nº 90/2017 (que se submetia à vedação da Resolução Camex nº 66/2014), foi prorrogado pela Portaria Secint nº 461, de 26 de junho de 2019, já sob a égide da Portaria ME nº 309/2019. A Receita entendeu à época que deveria prevalecer o regramento procedimental vigente quando da concessão, ou prorrogação, do benefício e que, portanto, esse Ex-tarifário poderia ser aplicado a bens usados. Essa interpretação foi reafirmada de modo ainda mais claro na Solução de Consulta Cosit nº 174, de 18 de setembro de 2023, que reiterou a aplicabilidade do Ex-tarifário, indistintamente, a bens novos e usados, bem como para bens de consumo, isso em relação àqueles concedidos sob a Portaria ME nº 309/2019, dentro do prazo de vigência do ato concessório.

3º momento: o retorno à vedação e a proteção das expectativas legítimas. (Resolução Gecex nº 512/2023 e Solução de Consulta Cosit nº 76/2024)

Em 18 de agosto de 2023, foi publicada a Resolução Gecex nº 512, de 16 de agosto de 2023, que revogou as Portarias ME nº 309/2019 e Sepec nº 324/2019. Essa nova resolução voltou a prever, nos mesmos moldes da Resolução Camex nº 66/2014, a vedação da aplicação do Ex-tarifário para bens usados, conforme se verifica na disposição do seu art. 2º, §2º, inciso II.

A partir da publicação da Resolução Gecex nº 512/2023, em resposta a outra consulta de um importador, a Receita Federal estabeleceu sua interpretação das normas por meio da Solução de Consulta Cosit nº 76, de 09 de abril de 2024. Essa esclareceu que até 17 de agosto de 2023 (ou seja, para Ex-tarifários concedidos sob égide da Portaria ME nº 309/2019), a redução de alíquota podia ser utilizada para importação de bens novos e usados.

Contudo, a partir de 18 de agosto de 2023, com a publicação da Resolução Gecex nº 512/2023, o benefício não se aplicaria mais a importação de bens de capital usados e de consumo, restando prejudicado o entendimento exposto na Solução de Consulta Cosit nº 122/2020. [5]

É fundamental ressaltar que essa mudança não possui efeito retroativo, sendo inservível para interpretar e aplicar as exceções tarifárias concedidas anteriormente e com prazo fixo, inclusive prazo fixo posterior à data de publicação da Resolução Gecex nº 512/2023. [6] Ex-tarifários concedidos e válidos sob a vigência da Portaria ME nº 309/2019 podem e devem continuar a ser aplicados para bens usados e independente de sua destinação.

A não retroatividade da nova orientação procedimental da Resolução Gecex nº 512/2023, norma destinada à análise de novos pedidos de Ex-tarifário, é um imperativo legal, sob pena de violação do art. 178 do Código Tributário Nacional (CTN) e do artigo 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb).

O artigo 178 do CTN estabelece que a isenção, salvo se concedida por prazo certo [7] e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei a qualquer tempo, mas o benefício concedido por prazo certo passa a ser um direito e uma expectativa legítima do contribuinte. Além disso, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), em seu artigo 24, proíbe que a autoridade dê aplicação retroativa a uma nova interpretação ou critério jurídico, vedando a declaração de invalidade de situações plenamente constituídas com base em mudança posterior de orientação geral. Princípios magnos como da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da confiança legítima do administrado nos atos da administração são pilares do Estado Democrático de Direito e garantem a estabilidade das situações jurídicas conformadas sob sua vigência.

Nesse quadro, qualquer tentativa de impedir o desembaraço aduaneiro de bens importados com Ex-tarifário válido, sob o fundamento de vedação de sua aplicação a bens usados e importados para revenda, hipóteses previstas na Resolução Gecex nº 512/2023, quando o benefício tenha sido concedido sob vigência da norma anterior, ou seja da Portaria ME nº 309/2019, constitui uma ofensa clara a tais princípios essenciais da ordem jurídica, em confronto com a  jurisprudência já firmada sobre o tema. A título de ilustração, tome-se a decisão do eg. TRF 6ª Região por sua 3ª Turma, no AI nº 6000696-85.2024.4.06.0000, publicado no D.E. 05/02/2024 [8], cujos principais pontos do venerando acórdão, destacamos:

Concessão válida do ex-tarifário antes da nova restrição normativa
A impetrante obteve regularmente, em 04/08/2023, a concessão do benefício ex-tarifário para a importação de bem usado (um bulldozer), antes da entrada em vigor da Resolução Gecex nº 512/2023 (de 16/08/2023), que passou a vedar o benefício a bens usados.

Registro da Declaração de Importação posterior à concessão
O registro da Declaração de Importação (DI) ocorreu em 26/12/2023, ou seja, após a vigência da Resolução GECEX nº 512/2023. Contudo, como o benefício foi concedido antes disso, deve prevalecer a norma vigente à época da concessão do ex-tarifário.

Prevalência de jurisprudência e orientação da PGFN
O acórdão destaca a jurisprudência pacificada do STJ (REsp 1.821.992/RS e outros) e a posição da PGFN (Nota SEI nº 28/2019), que reconhecem que os efeitos do ex-tarifário concedido antes da importação estendem-se até o desembaraço aduaneiro, mesmo para bens usados.

Caráter não retroativo das Resoluções Gecex/Camex
A Resolução Gecex nº 512/2023 não pode retroagir para prejudicar concessões anteriores. Como a concessão do benefício se deu antes da publicação da nova norma, não se aplica a vedação posterior.

Conclusões

A jornada regulatória do Ex-tarifário para bens usados e destinados à revenda é um exemplo claro da necessidade de se conhecer os princípios e regras aplicáveis a cada área e tema do Direito, sendo eles sensíveis para assegurar a previsibilidade nas relações entre a Aduana e os intervenientes, e como as mudanças, ainda que legítimas, do ponto de vista das fontes normativas e autoridades competentes, provocam incertezas e dúvidas que desestimulam a produção e novos investimentos.

Embora a legislação tenha oscilado entre a vedação e a permissão, a interpretação consolidada pela Receita Federal, reiterada em diversas soluções de consulta, é de que a regra aplicável à interpretação é aquela vigente no momento da concessão, ou prorrogação, do Ex-tarifário.

Isso significa que, mesmo com a atual e vigente Resolução Gecex nº 512/2023 vedando a importação de bens usados com aplicação de exceção tarifária, os benefícios que tenham sido concedidos sob a Portaria ME nº 309/2019 — que permitia tal importação, como vimos de ver — permanecem válidos, enquanto perdurar o prazo do ato concessório.

Impedir o desembaraço aduaneiro, ou exigir tributos, em casos de Ex-tarifário concedido sob o regramento anterior configura afronta aos princípios da irretroatividade, segurança jurídica e confiança legítima, garantias fundamentais para o Estado democrático de Direito, para o ambiente de negócios e a relação entre a Administração Pública e os administrados, cabendo ao administrado, se necessário, buscar amparo para o seu direito junto ao judiciário.

A compreensão e o respeito a essa linha temporal de vigência das diferentes normas e aos princípios constitucionais aplicáveis são essenciais para se evitar litígios desnecessários, assegurando um ambiente de negócios estimulante à produção, pautado no respeito às normas vigentes.

No que se refere aos pedidos de renovação de Ex-tarifário, comunicado do site do MDIC [9] estabelecendo o prazo limite até o dia 30 de junho de 2025 para protocolo do pedido em relação àqueles vigentes até 31/12/2025, está em flagrante conflito com o prazo previsto no artigo 5º da Resolução Gecex no 512/2023, que dispõe, ipsis litteris: Os pleitos de renovação de Ex-tarifários concedidos poderão ser solicitados dentro do período de vigência do Ex-tarifário, com antecedência máxima de 180 (cento e oitenta) dias do seu vencimento.

A mudança do prazo em desafio à norma procedimental também ofende expectativa legítima das empresas interessadas em investir na modernização do seu parque industrial. A ilegalidade merece corrigenda com base no princípio da autotutela administrativa, sem que seja necessária a judicialização da controvérsia. É o que se espera possa ocorrer o quanto antes, restabelecendo-se o prazo previsto no artigo 5º da Resolução Gecex no 512/2023.

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[1] Sobre o tema Ex-tarifário recomendamos a leitura do artigo publicado na coluna por nossa colega Fernanda Kotzias. Disponível em: link . Acesso em 13/06/2025.

[2] Disponível em: link . Acesso em 13/06/2025.

[3] Entendimento firmado pela RFB na Solução de Consulta Cosit n76/2024, em seus itens 10 a 14. Disponível em: link. Acesso em 13/06/2025.

[4] Segue trecho da Solução de Consulta n 122/2020 nesse sentido:  -se que não mais consta como requisito à concessão do Ex-tarifário que o bem importado seja novo, requisito existente quando em vigor a Resolução Camex nº 66, de 2014, que, no § 3º do art. 1º, que determinava que a redução da alíquota do Imposto de Importação fosse concedida exclusivamente para bens novos.  (…) quanto a se o bem remanufaturado é novo ou usado. Desde que o bem importado corresponda à descrição do bem constante do Ex-tarifário, terá direito à alíquota reduzida prevista para esse Ex-tributário.

[5] O colega de coluna Leonardo Branco defendeu a ilegalidade da restrição a importação de bens usados incluída na Resolução 512/2023, posição com a qual concordamos. Recomenda-se a leitura do artigo. Disponível em: link Acesso em 13/09/2025.

[6] No mesmo sentido, já escreveu Thales Belchior. Disponível em: link. Acesso: 13/09/2025.

[7] “Trata-se de uma isenção do imposto, concedida por prazo certo, com fundamento no art. 4º da Lei nº 3.244/1957, na redação do Decreto-Lei nº 63/1966:(…)”, in SEHN, Solon. Curso de Direito Aduaneiro. 3ª ed. São Paulo: Ed. Forense, 2025, p. 131.

[8] TRF6, AI 6000696-85.2024.4.06.0000, 3ª Turma, Relator Álvaro Ricardo de Souza Cruz, D.E. 05/02/2024

[9] Disponível em: link . Acesso em 13/06/2025.

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