Exclusão do ICMS do crédito de PIS/Cofins no agronegócio

Como é de conhecimento, o atual governo federal editou a Medida Provisória nº 1.159, de 12 de janeiro do corrente ano, por meio da qual se alteravam os artigos 3º, § 2º, das Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003, impedindo no cômputo do crédito no regime não cumulativo do PIS e da Cofins, a inclusão do ICMS que tenha incidido sobre a operação de aquisição.

Essa medida provisória não chegou a ser aprovada, tendo sua vigência encerrada, no entanto, em manobra durante o processo legislativo, enxertou o tema no Projeto de Lei de Conversão de outra Medida Provisória, qual seja, 1.147, de 20 de dezembro de 2022.

Daí porque, juntamente com outros temas tributários, referida vedação foi convertida na Lei nº 14.592, de 30 de maio de 2023, nos seguintes termos, conforme artigos 3º, § 2º, III, das Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003: “(…) § 2o Não dará direito a crédito o valor: (…) III – do ICMS que tenha incidido sobre a operação de aquisição“.

Portanto, veda a lei a inclusão do ICMS que tenha incidido sobre a operação de aquisição, impedindo assim que se aplique as alíquotas de 1,65% de PIS e 7,6% de Cofins, como forma de apurar o valor do crédito no regime não cumulativo.

Não pretendemos neste artigo ingressar nas discussões que envolvem esta alteração legislativa, entre elas a inconstitucionalidade por “contrabando legislativo” ou mesmo violação a não cumulatividade, de conformidade com o artigo 195, § 12, da Constituição, por se tratar o ICMS de custo de aquisição.

O propósito deste artigo está em responder à questão: haveria necessidade de excluir na aquisição de insumos de origem vegetal ou animal, nas mais variadas legislações de PIS e Cofins para o setor do agronegócio, o ICMS para cômputo do crédito presumido concedido?

Para a cadeia da soja, cujo crédito presumido se computa pela saída — receita -, já nos manifestamos em outra oportunidade a respeito da ilegalidade da IN 2.121/2022 (artigo 596) [1], todavia, a questão aqui se revela diversa.

A dúvida está na apuração do valor do crédito que se dá pela entrada — aquisição —, especialmente, após a vedação prevista pela Lei nº 14.592/2023. Seria esta vedação prevista em referida lei aplicável aos créditos presumidos do segmento do agronegócio?

De prontidão, podemos afirmar que o crédito presumido previsto para o setor do agronegócio não sofre de referida restrição, sendo possível o cômputo do crédito incluindo o ICMS em sua base nas operações de aquisição.

Esta interpretação se dá, como ponto de partida, pelo tratamento diferenciado e favorecido dado pelo artigo 187 da Constituição, que sempre irá direcionar e estabelecer as diretrizes voltadas à tributação do setor [2].

Por outro lado, o crédito presumido do setor, como é de conhecimento, tem por finalidade concretizar a não cumulatividade prevista no artigo 195, § 12, da Constituição, gerando uma neutralidade, mesmo que parcial e não plena. De tal sorte, sendo o ICMS custo de aquisição dentro de operações plurifásicas, teríamos no caso de restrição, possível inconstitucionalidade.

Mais do que isso, nosso texto constitucional, para restrição de direitos, exige lei, na medida em que, no Estado Democrático de Direito, temos a legalidade como um dos seus fundamentos. Portanto, somente Lei poderia impedir ou restringir o cálculo excluindo o ICMS, sendo que, como iremos exemplificar e demonstrar, inexiste lei determinado tal conduta.

Para exemplificar, temos a Lei nº 10.925/2004, que, em seu artigo 8º, concede crédito presumido às pessoas jurídicas que produzam mercadorias de origem vegetal ou animal, das classificações mencionadas no texto legal, destinadas à alimentação humana ou animal.

Conforme disciplina a própria lei, esse crédito é “calculado sobre o valor dos bens adquiridos”. O ICMS, portanto, a depender da operação, será incluído no momento da aquisição, pois compõe o valor daqueles produtos agropecuários adquiridos e utilizados como insumo.

Na hipótese da Lei nº 10.925/2004, a Instrução Normativa nº 2.121/2022, em seu artigo 574, § 3º, até mesmo exclui a aplicação do crédito ordinário, o que nos leva a reconhecer que a vedação também seria inaplicável: “§ 3º As aquisições previstas no caput não dão direito à apuração de créditos na forma prevista no inciso I do art. 175“.

Este mesmo posicionamento podemos aplicar nos demais microssistemas de PIS/Cofins existentes para outros produtos dentro da cadeia do agronegócio, como bovinos, ovinos, caprinos, aves e suínos, café, laranja, uma vez que tais legislações também reconhecem em geral o crédito presumido sobre o valor da aquisição, sem qualquer restrição que determine a exclusão do ICMS para apuração do seu montante na aquisição.

Em tais condições, não se deve confundir a restrição prevista na Lei nº 14.592, de 30 de maio de 2023, que exclui o ICMS no cálculo do crédito ordinário de PIS e Cofins no regime não cumulativo, com a forma de apuração dos créditos presumidos da cadeia do agronegócio, os quais possuem regime próprio e não sofrem este impedimento, permitindo-se, assim, a inclusão deste imposto estadual na base de cálculo para aferir o seu montante.

Fonte: Conjur

Crimes contra a democracia estão entre os temas de destaque do Entender Direito em 2023

O programa Entender Direito abriu o ano judiciário de 2023 com um debate sobre a Lei 14.197/2021, que tipificou uma série de crimes contra o Estado Democrático de Direito. A conversa com especialistas, conduzida pela jornalista Fátima Uchôa, girou em torno das repercussões jurídicas dos ataques contra as sedes dos três poderes no dia 8 de janeiro.

Entre as condutas criminosas fixadas na nova lei, estão o golpe de Estado e a interrupção do processo eleitoral, com penas que chegam a 15 anos de reclusão. O normativo também revogou a Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983).

Foram entrevistados o professor e promotor de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso Renee Souza e o professor e promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo Ricardo Silvares.

Grandes temas do direito em debate

Entender Direito é um programa quinzenal que aborda discussões relevantes no meio jurídico e acadêmico, com a participação de juristas e operadores do direito debatendo cada tema à luz da legislação e da jurisprudência do STJ. Durante as férias coletivas dos ministros, em julho, o programa é reprisado na TV e na Rádio Justiça.

Confira a entrevista na TV Justiça, às quartas-feiras, às 10h, com reprises aos sábados, às 14h, e às terças, às 22h. Também está disponível no canal do STJ no YouTube. Na Rádio Justiça (104,7 FM – Brasília), o programa é apresentado de forma inédita aos sábados, às 7h, com reprise aos domingos, às 23h.

Fonte: STJ

Soberania do júri não se sobrepõe à presunção de inocência

A soberania do júri não pode se sobrepor à presunção de inocência. Dessa maneira, não é possível que a pena imposta pelos jurados seja executada imediatamente, mas apenas após o trânsito em julgado, como ocorre em todas as condenações penais. Essa é a opinião de especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Condenação imposta pelo júri não pode ser executada de imediato, dizem especialistas
TJ-RJ

O Supremo Tribunal Federal começou a julgar na última sexta-feira (30/6) se a condenação no tribunal do júri deve ser executada imediatamente. O julgamento, que ocorre no Plenário Virtual, está marcado para ser concluído em 7 de agosto. Até o momento, há cinco votos pela execução imediata da pena e três para aguardar o trânsito em julgado da sentença condenatória.

No caso julgado, o Superior Tribunal de Justiça permitiu ao réu recorrer em liberdade, com base no entendimento do STF de que a pena só pode ser executada após o trânsito em julgado da sentença condenatória (ADCs 43 e 44). O Ministério Público recorreu ao Supremo.

Em seu voto, o relator do caso, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que a soberania do júri prevalece sobre a presunção de inocência. Segundo Barroso, a presunção de inocência, por ser princípio, e não regra, pode ser “aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes”.

Assim, para o ministro, não há violação da presunção de inocência com o imediato cumprimento da pena de réu condenado pelo júri. Ele também fez uma interpretação conforme a Constituição da lei “anticrime” (Lei 13.964/2019), que permitiu a execução provisória de pena superior a 15 anos imposta pelo júri.

Barroso propôs a seguinte tese de repercussão geral: “A soberania dos veredictos do tribunal do júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”.

O voto do relator foi seguido, até o momento, pelos ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e André Mendonça. Os ministros Gilmar Mendes, Rosa Weber, presidente da corte, e Ricardo Lewandowski (aposentado) divergiram, entendendo que a pena só pode ser executada ao fim do processo. Faltam os votos dos ministros Kassio Nunes Marques, Edson Fachin e Luiz Fux.

Críticas ao ministro
Em artigo publicado na ConJur, o jurista Lenio Streck contestou o voto de Barroso. Streck afirmou que, se Barroso aplicasse corretamente a ponderação do jurista alemão Robert Alexy, chegaria à conclusão de que a presunção de inocência prevalece sobre a soberania do júri, uma vez que restringe a liberdade de acusados. Portanto, a pena decorrente de condenação do júri só poderia ser aplicada após o trânsito em julgado.

Lenio Streck afirma que Barroso
errou na ponderação de princípios
Reprodução/Twitter

O jurista também criticou o uso de estatísticas por Barroso, que deu a entender que é função do Judiciário combater crimes. Com isso, o ministro transforma o Direito em consequencialismo, algo que não pode ser admitido, segundo Lenio, que é professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá.

O constitucionalista ressaltou que nunca foi proibido prender depois de decisão de segundo grau. “Nem a liberdade é automática para recorrer e nem a prisão pode ser obrigatória-automática. O voto do ministro dá ares de automaticidade à prisão se a decisão vier do júri. E isso fere o precedente vinculante” (ADCs 43 e 44).

Além disso, ele destacou que é inconstitucional o dispositivo da lei “anticrime” que retira o efeito suspensivo das apelações contra condenações a penas superiores a 15 anos pelo tribunal do júri. Afinal, para Streck, isso igualmente viola o princípio da presunção de inocência.

“Não devemos perder a oportunidade de debater, para além da prisão automática e sua afronta à presunção da inocência, qual é o papel da doutrina no Direito brasileiro. Por qual razão a doutrina se transformou em caudatária da jurisprudência? Por qual razão um voto como o do ministro Barroso não tem maior repercussão e não gera uma posição mais crítica da doutrina? Ou a doutrina concorda que se pode usar a tese da ponderação de Alexy desse modo? Ou que precedentes da própria Corte Maior podem ser ignorados?”, questionou ele à ConJur.

Presunção de inocência
Especialistas em Direito Processual Penal concordam com a crítica ao voto de Luís Roberto Barroso, ressaltando que o princípio da soberania do júri não pode se sobrepor à presunção de inocência.

Aury Lopes Jr., professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, afirma que o voto de Barroso “é um grave erro, que desconsidera a presunção de inocência até o trânsito em julgado, enquanto dever de tratamento, reafirmada pelo próprio STF”.

“A soberania dos veredictos não tem, absolutamente, nada que ver com execução antecipada da pena ou ponderação da presunção de inocência”, avaliou. Conforme Lopes Jr., a soberania está vinculada ao ato de julgar, à definição de fatos, ao julgamento feito pelos jurados por meio dos quesitos, não à prisão automática como consequência do julgamento.

A proposta de Barroso não é uma interpretação conforme a Constituição, é “simplesmente reescrever um artigo de lei e suprimir — sem justificativa legítima — o limite de pena ali estabelecido (os tais 15 anos, que também é um ‘limite’ ilógico, irracional e inconstitucional)”, declarou Lopes Jr.

“Enfim, nada justifica tamanho retrocesso, ainda mais se considerarmos que sempre cabe a prisão preventiva, em qualquer fase, se houver uma necessidade cautelar. O que não cabe é prisão automática em primeiro grau, com ampla possibilidade de recurso de apelação, em flagrante violação da presunção de inocência”, opinou o docente da PUC-RS.

Não é possível pensar em ponderação no caso porque a previsão de soberania do júri é regra, portanto, não está sujeita a tal forma de análise, ressaltou Antonio Eduardo Ramires Santoro, professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

“Além disso, é absolutamente paradoxal estabelecer a prevalência da regra da soberania do júri sobre a presunção de inocência, uma garantia estruturante do sistema penal brasileiro. Um sistema fundado nos direitos humanos não pode transigir com regras específicas, como as que se dirigem ao tribunal do júri”, destacou Santoro.

Gustavo Badaró, professor de Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo, aponta que não há o que sopesar na ação, pois não há colisão entre a soberania dos vereditos do júri e a presunção de inocência.

“A presunção de inocência, enquanto regra de tratamento do acusado que não pode ser tratado como se fosse culpado antes do trânsito em julgado da condenação penal — o que inclui a execução provisória da pena —, não colide com a soberania dos veredictos, enquanto atributo dos jurados de dar a última palavra sobre os temas que são de sua competência na sentença subjetivamente complexa do júri, não podendo ser substituídos, em suas decisões, por um magistrado togado”, analisou Badaró.

O professor da USP também ressaltou o perigo de usar estatísticas para fundamentar restrições de direitos fundamentais. Barroso, em seu voto, lançou mão do argumento do “inexpressivo percentual de modificação das decisões condenatórias do júri”.

“O voto desenvolve o seguinte argumento estatístico: ‘E todas as decisões proferidas pelo júri, em apenas 1,97% dos casos houve a intervenção do tribunal de segundo grau para, a pedido do réu, devolver a matéria para a análise do júri’. Isso significa, em grandes números, que para o ministro Roberto Barroso não há problemas de, a cada cem pessoas, duas delas terem a sua liberdade irreparavelmente lesada.”

O especialista em processo penal cita um exemplo para demonstrar a inadequação das estatísticas para restringir direitos fundamentais. Em 2021, tramitaram 94 casos de foro por prerrogativa de função no STF. No mesmo ano, tramitaram 7,8 milhões de processos criminais no Brasil.

“Logo, os casos de foro por prerrogativa de função, no total de processos penais brasileiros, correspondem a um percentual muito inferior a 1,97%, de aproximadamente 0,00001%. Creio que os ministros concordarão que, nem por isso, devemos acabar com o foro por prerrogativa de função, inclusive para magistrados do STF”, destacou ele.

“A estatística é um mau argumento quando se trata de restringir direitos fundamentais. Até porque os direitos fundamentais, exatamente por esse caráter, devem estar a salvo até mesmo da vontade das maiorias momentâneas. Isso é Estado democrático de Direito”, disse Badaró. RE 1.235.340

Fonte: Conjur

Juiz das garantias e interpretação desconforme com a Constituição

  1. Prolegômenos necessários
    O texto a seguir deve ser lido despacito. E peço, uma vez mais e de antemão, que cumpramos a norma prevista no “princípio da caridade epistêmica”, já trabalhado principalmente no texto intitulado “O STF, a prisão no júri e a decisão equivocada do ministro Barroso”.

Hoje desejo falar sobre

(i) o porquê (paradoxalmente) de o juiz das garantias ser necessário,
(ii) ou sobre porque não deveria ser necessário,
(iii) ou sobre como é necessário exatamente porque não deveria ser necessário,
(iv) ou sobre como o sintoma vem para tratar a doença.

Repito aqui o que falei em vários veículos e textos: o juiz das garantias é uma medida urgente e necessária, ainda que pareça estranho que ele seja necessário. Isto porque a imparcialidade deveria ser a regra, como já apregoava a Juíza-Deusa Palas Athena (da peça de Ésquilo). Um juiz das garantias soa como se outros fossem das não-garantias. Claro que não é assim. Mas vamos discutir isso.

  1. Parcialidades invencíveis? Como lidamos até hoje com o processo penal?
    O assunto é complexo. Diz-se que o juiz já fica(ria) comprometido desde a fase anterior. Seria uma “parcialidade invencível”? Se for isso, é porque nos acostumamos com determinadas coisas. Tornamo-las normais. De todo modo, a resposta está no interior da discussão do JG:por tudo o que se vê e se sente todos os dias neste complexo sistema de justiça em que Ministério Público faz agir estratégico e juiz ainda participa da construção da prova (veja-se a dificuldade no cumprimento do artigo 212 do CPP), parece que é quase consenso na comunidade jurídica a necessidade de um novo modelo.

Também virou quase consenso que, se o JG vai trazer (mais) imparcialidade ou menos parcialidade na área criminal, é porque o atual modelo não oferece imparcialidade suficienteTertius non datur.

  1. O juiz das garantias diante do livre convencimento e da livre apreciação
    Não deveria ser assim. Mas no Brasil situações como “livre apreciação da prova” (explícita na lei) e “livre convencimento” tornam essas questões de imparcialidade ou parcialidade mais complexas. Afinal, é fato que o próprio sistema admite que a apreciação do juiz é livre. E a maior parte dos processualistas com isso concorda, com o argumento de que isso é bom porque é melhor (supera) a prova tarifada, que, ao que eu lembre,ocorreu no início do século 19, quando não existiam constituições garantísticas e compromissórias e tampouco “boas tarifações”, como é o caso do elenco das garantias do artigo 5º. da nossa CF/88. Ora, se a apreciação da prova é livre,por que nos surpreendemos com a “contaminação”?

Daí a necessidade de um parêntesis: para demonstrar o que estou dizendo, basta ver, por exemplo, o voto de um desembargador do Paraná que concede o habeas corpus ao acusado de homicídio porque esse fez uma limpeza, algo como “matou bem”. O desembargador não participou da fase anterior do processo. Portanto, estava “descontaminado”, se usarmos a linguagem corrente. Mesmo assim, não parece ter agido com imparcialidade. Na mesma linha, o que dizer de tribunais superiores que não seguem seus próprios precedentes? Agora mesmo o ministro Barroso proferiu voto ignorando o precedente das ADCs 43 e 44, sob o argumento de que a soberania dos veredictos vale mais do que o direito a recorrer em liberdade assegurado já por precedente vinculante (demonstrei que o uso da ponderação feita pelo ministro foi equivocada — o link está no primeiro parágrafo desta coluna). Uma adequada imparcialidade faria com que se obedecesse ao artigo 926 do CPC (coerência e integridade). Nem vou falar da desobediência dos artigos 489 do CPC e 315 do CPP.

  1. O JG como alteração da estrutura e seu impacto simbólico
    Desse modo, já que nos acostumamos tanto, o remédio para enfrentar essa “contaminação”parece ser a alteração da estrutura para que talvez tenhamos um juiz minimamente desconectado da fase anterior.

Pode vir a funcionar. Por isso sou a favor. Tenho o senso da realidade. E sei ser pragmático. A alteração pode trazer transformações simbólicas. E isso importa em um país que preza menos a lei do que a jurisprudência.

Isso não me impede de indagar: se na segunda fase o juiz continua a fazer a livre apreciação da prova ou que julgue por livre convencimento, o que garante a sua imparcialidade? Aqui começaria uma nova discussão — que necessariamente passa por uma teoria da decisão judicial.

Estruturalmente, com a aprovação do JG, dependendo do próprio comportamento da doutrina e da compreensão dos juízes, poderemos ter mais garantias para os acusados. O JG, nesse contexto, neste mundo da vida, é necessário em um país com um sistema teimosamente inquisitivo (a prova disso é o modo como se estrutura o processo, em que a livre apreciação está no centro) [1]. Temos de admitir isso. Ou vamos todos para um divã.

  1. Por que não há qualquer óbice constitucional à implantação do JG
    Em termos constitucionais, não há óbice formal ou material para que o STF julgue válido o JG. O legislativo é competente e a Constituição não veda. Simples assim.

Porém, para além da declaração da constitucionalidade, há muita coisa a ser feita. Se não nos dermos conta disso, continuaremos a ter uma coisa com o nome de outra. O meu ponto, permitindo-me um grau de platitude, é que, numa república, todo juiz deveria ser “das garantias”.

Acompanhem o raciocínio: todos queremos que juízes sejam imparciais, certo? Imparcialidade não é uma questão de aplicação mecânica ou exegetismo (textualismo). Isso já foi superado há séculos. Mas se o juiz deve ser imparcial, por que precisamos de um juiz das garantias?

Repetindo: sou a favor por razões pragmáticas. Aplaudo. Sou contra o estado de coisas que nos faz precisar do juiz das garantias.

E sou contra esse estado de coisas — e a favor do JG — exatamente por saber que é esse mesmo estado de coisas que não “garante” que o juiz das garantias garanta a solução para o problema da (im)parcialidade.

Quem cuida dos cuidadores? Já é um problema clássico. Hobbes resolvia com o Leviatã. Alguém precisa pôr ordem.

E quando o juiz das garantias age com parcialidade? Criaremos um juiz das garantias do juiz das garantias? E depois outro? E então mais um?

  1. Por que a imparcialidade deve ser o modo-de-ser do juiz
    A imparcialidade faz parte do juiz-como-juiz. A coisacomo-coisajá deveria trazer a própria desnecessidade do juiz das garantias. E o cenário que o torna necessário é o mesmo cenário que pode vir a torná-lo inútil. Essa é a grande questão.

Sou, portanto, um aliado nessa luta. Insuspeito quanto a isso, acho. Estamos na mesma trincheira. Saúdo o juiz das garantias. Mas quero ir além do JG. Há mais coisas a conquistar. Mas reconheço o jogo difícil.

Insisto que o problema está no modo como concebemos a gestão da prova. Não existe (re)estrutura que supere um universo jurídico que aceita que juiz decide com discricionaridade com o argumento de que “é assim e pronto”, “não tem o que fazer”.

Não há garantias que sejam garantidas quando até garantistas acreditam em ficções como “o livre convencimento veio pra superar a prova tarifada”. Falei (d)isso para o próprio Sergio Moro, em debate em 2015, quando poucos enxergavam que o rei estava nu. Moro me respondeu: “– Tenho livre convencimento”. E ainda tentou tirar onda comigo, dizendo “afinal, o livre convencimento veio para superar a prova tarifada”? Respondi: “– Ah sim, obrigado. Eu não ‘sabia’ (ironia)”. E acrescentei que, com juízes como ele, eu preferia um textualista ou até mesmo a própria tarifação — mormente porque a “tarifação” nas constituições garantidoras é benfazeja (ou alguém acha que a própria garantia da imparcialidade pode ser superada por livre convencimento ou uma nulidade da prova pode ser superada por convencimento livre)? E assim a vida continua.

Estou escrevendo um livro sobre isso. Sobre as origens. Com dados empíricos. Onde morou o juiz boca da lei? Ele habitou em algum canto do Direito brasileiro? Onde e como a tal “superação” da prova tarifada ocorreu no Brasil? E se ainda se pode falar em “superação” a um tempo em que temos um elenco de neotarifações riquíssimas como o elenco das garantias do artigo 5º da Constituição. E, mais grave: alguma garantia pode ser superada por livre convencimento?

Enfim, tudo isso torna o juiz das garantias paradoxal. Por paradoxal que possa parecer, paradoxalmente o JG é necessário.

Precisamos do juiz das garantias. Que pena. Mas precisamos.

Só que meu papel, aqui, será o de lembrar que não resolveremos os problemas da crise do Direito no Brasil (que, aliás, vai ao ponto de necessitarmos de um JG) se não superarmos o problema de um ensino jurídico que reproduz o senso comum teórico.

Um bom exemplo é que falamos em “precedentes qualificados” e não resolvemos até hoje o problema sobre o que é um precedente. Abundam os estudos sobre inteligência artificial e até hoje não resolvemos a questão da prova no Brasil.

E aí queremos resolver a livre apreciação com um novo juiz. Quase hobbesianamente. Só que Hobbes sacou, homem de seu tempo, que uma hora isso precisa terminar.

Ao contrário de Hobbes, sou um otimista metodológico.

Por enquanto, sou a favor do juiz das garantias. Claro que sim. Mas meu otimismo também é cauteloso: sou favorável, consciente de que só sairemos dessa quando resolvermos o problema da gestão-compreensão do que é isto — o processo, o que é um precedente e sobre o que é isto — o livre convencimento e a livre apreciação da prova.

Sou a favor do juiz das garantias. Mas vou sempre lembrar que todo juiz deveria ser das garantias.

  1. O voto do ministro Fux e o conceito de interpretação conforme
    Por fim e não menos importante: li o voto do ministro Luiz Fux.Ele legislou.Isso precisa ser dito. Ao fazer interpretação conforme, fez vários novos textos. Reescreveu a lei. E isso é vedado ao Judiciário. Mais grave ainda é fazer interpretação em desconformidade com a lei e com a Constituição.

Interpretação conforme não altera o texto, apenas a norma. Se alterar o texto, o Judiciário legisla. Porque o Judiciário cuida do passado e o Legislativo cuida do futuro. Quem escreve textos é o Legislativo.

Normas — o sentido que é dado ao texto — não podem alterar o próprio texto. Judiciário pode anular textos. Interpretação conforme é dar sentido que conforme a lei (no seu texto) à Constituição, sendo que, para isso, altera-se a norma (que é sempre, conforme nos ensina Müller, o produto da interpretação do texto). Essa é a tradição.

Trago aqui alguns comentários sobre isso. O primeiro, de Canotilho: “o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a constituição, mesmo [que] através desta interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais”. O segundo é Luís Roberto Barroso, para quem “não é possível ao intérprete torcer o sentido das palavras nem adulterar a clara intenção do legislador”. O terceiro é Gilmar Mendes, para quem, na jurisprudência do STF, os limites à interpretação conforme a constituição resultam tanto da expressão literal da lei quanto da vontade (concepção original) do legislador.

Posso até, no limite dos limites, encontrar guarida em redefinições textuais mínimas — porém, o caso do JG, como posto pelo voto do ministro Fux, refoge a qualquer dessas possibilidades. Vejamos o que dirão os demais ministros.

[1] No Dicionário de Hermenêutica, discuto os conceitos de livre convencimento e livre apreciação da prova à luz da filosofia e do direito estrangeiro. São dois verbetes que tratam da matéria.

Fonte: Conjur

Prescrição intercorrente e o PAF: a invasão das ideias

Após o nosso último artigo sobre a prescrição intercorrente de multas aduaneiras [1], lemos atentamente os artigos publicados por Rosaldo Trevisan [2], que também tratam do tema. Esses textos merecem nossa atenção não apenas por serem a mais estruturada, senão a única, posição acadêmica publicada em sentido contrário ao que temos defendido, mas para confrontar alguns equívocos que têm sido ecoados pela União nos tribunais.

Comecemos a abordar nossas discordâncias pelos nossos pontos de concordância.

Trevisan afirma, corretamente, que existem pontos de intersecção entre o Tributário e o Aduaneiro e, por isso, não se pode reduzir um a antípoda do outro. De fato, o grande desafio no tema não é a definição do regime jurídico material, que nos é dado com clareza pela legislação de regência, mas sim estabelecer a natureza do crédito, se tributário ou não.

Existem infrações decorrentes de deveres administrativos 1) estritamente ligados ao controle aduaneiro (deveres aduaneiros); 2) no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos aduaneiros (obrigações acessórias tributárias); 3) relacionados tanto ao controle aduaneiro quanto à arrecadação/fiscalização dos tributos (deveres híbridos). Para os primeiros, o crédito decorrente da infração teria natureza não tributária, sujeita à Lei nº 9.873/99, e, para os segundos, natureza tributária, sujeita ao CTN. A complexidade residiria na determinação da natureza e regime do crédito decorrente desses deveres híbridos.

Por outro lado, o próprio Rosaldo Trevisan nos dá pelo menos dois exemplos que pertencem à “parte da área aduaneira que não intersecciona a tributária”, (…) “parte essa que, portanto, não estaria sujeita às regras do CTN e do Dec. 70.235/1972, a menos que outro comando legal expressamente o determinasse”: 1) os direitos antidumping e compensatórios (artigo 7, §5º da Lei nº 9.019/95) e 2) a multa substitutiva do perdimento (artigo 23, §3º, do DL nº 1.455/76). Nos dois exemplos citados por ele, há remissões exclusivamente ao rito do Decreto nº 70.235/72, inexistindo comando que estabeleça, por remissão, a adoção do CTN para reger essas matérias.

Ora, seguindo a trilha do autor, de que pelo menos essas matérias se sujeitariam apenas ao Decreto nº 70.235/72, mas não ao CTN, pela ausência de remissão, defluem algumas conclusões lógicas:

1) o fato de essas matérias estarem sujeitas ao rito do PAF não afeta a sua natureza não tributária, já que a remissão é feita apenas em relação ao Decreto nº 70.235/72, caso contrário, estar-se-ia sustentando o absurdo de, a depender do procedimento, o regime jurídico do crédito seria alterado (em bom português, para que qualquer um entenda: “o cachorro que abana o rabo, não o rabo que abana o cachorro”).

2) Não sujeitos ao CTN, pela ausência de “comando legal [que] expressamente o determinasse”, não estariam sujeitas às regras de prescrição e decadência daquele Código — ausência de previsão específica a respeito de prescrição intercorrente no PAF, no CTN, é o fundamento determinante tanto da posição firmada pelo STF nos ED no RE nº 94.462/SP [3], como pelo STJ no REsp nº 840.111/RJ [4].

3) Da conclusão pela inaplicabilidade do CTN à multas aduaneiras “inequívocas”, como indicado por Trevisan, parece-nos que a única conclusão lógica seria a necessidade de distinguishing da Súmula CARF nº 11 para esses casos, para que se analise o regime jurídico do crédito e se verifique a aplicabilidade da Lei nº 9.873/99.

Repita-se, a única forma de afastar as conclusões acima seria: 1) sustentar que Trevisan estaria absolutamente equivocado quanto à natureza dos créditos mencionados, o que não nos parece ser o caso; ou 2) que prescrição intercorrente seria matéria processual e dependeria do rito adotado.

Quanto ao primeiro ponto, reluto em acreditar que alguém defenderia, com seriedade científica, que a multa decorrente da conversão da pena de perdimento teria natureza de crédito tributário, pois isso implicaria reconhecer à penalidade original também esse caráter, o que não tem qualquer sentido.

Quanto ao segundo ponto, além de ir contra as lições jurídicas mais comezinhas, também contraria o recente entendimento do STF, firmado no julgamento do RE nº 636.562, onde se afirmou, expressamente, que “A prescrição intercorrente obedece à natureza jurídica do crédito subjacente à demanda” [5]. É óbvio: o Decreto nº 70.235/72 não trata de prescrição e decadência, porque todas são decorrências, como disse a Suprema Corte, da natureza jurídica do crédito, seu regime material, e não do rito procedimental a que se submete [6]. Misturar as duas coisas é um erro grave na compreensão dos institutos.

Parecem-nos, portanto, que as ilações acima seriam inescapáveis, assumindo a existência de casos inequivocamente aduaneiros.

Em um momento, o autor culpa a Portaria MF nº 260/2020 por “ter ensejado a reinterpretação da lei de 1999 [Lei nº 9.873/99]”, porque não haveria diversos “tipos de processo”, já que todos estariam sujeitos a “um mesmo rito processual, previsto no Decreto 70.235/1972”. Esse equívoco já foi esclarecido em outra oportunidade: a distinção entre diversos tipos de “processos” decorre dos distintos direitos materiais a serem aplicados por cada um, podendo haver desde uma diferenciação total de procedimentos (e.g. processo civil e penal), passando por uma coincidência parcial (e.g. processo civil e trabalhista), até uma coincidência total (e.g. processo civil e do consumidor) [7].

A posição do autor, a esse respeito, implicaria a aplicação do CTN para qualquer matéria sujeita ao Decreto nº 70.235/72, já que, em seu entender, o rito procedimental supostamente determinaria o regime material, conflitando, e.g., com a Súmula CARF nº 184, com o Tema 390 do STF (citado supra) e com o entendimento por ele mesmo adotado em outras oportunidades (e.g. acórdãos nº 3401-004.351 [8] e 3403-002.865 [9]).

Argumenta também que a distinção terminológica entre “legislação tributária e aduaneira” teria surgido apenas com a Lei nº 10.833/03, como forma de sugerir que, anteriormente, tudo seria tratado conjuntamente, salvo da doutrina. Esse argumento não procederia ainda que estivéssemos discutindo isso na década de 70.

A distinção entre créditos tributários e não tributários é expressa no artigo 39, §2º da Lei nº 4.320/64, e a extensão conceitual deles foi delimitada, com precisão, pelo CTN, em 1966. O Decreto-lei nº 37/1966 já separava em títulos distintos o Imposto de Importação das demais regras a respeito de controle aduaneiro. A CF/1946, por exemplo, já distinguia a competência para o poder de polícia aduaneira e para direito tributário. Quando menos, são irrelevantes os rótulos terminológicos, em sendo induvidoso que a aplicação das sanções em questão são decorrência do poder de polícia aduaneiro exercido pela União, enquadrando-se exatamente na hipótese do artigo 1º da Lei nº 9.873/99.

A distinção entre os regimes jurídicos é um “palíndromo temporal”: não importa se olhamos de 1966 para 2023 ou de 2023 para 1966, que as conclusões serão as mesmas à luz do Direito positivo.

Invoca também o artigo 67 do Ricarf e a redação da Súmula nº 2, para sustentar que o termo “tributário” teria um sentido mais amplo. Felizmente, o próprio Trevisan lembra que os créditos não tributários só são julgados pelo rito do Decreto nº 70.235/72, por força de remissões legislativas, e não pela aplicação direta das regras desse rito, direcionadas apenas aos créditos tributários federais (artigo 1º) — todo o resto o toma de empréstimo, por remissão. Quanto à Súmula nº 2, além de mal redigida, é despicienda, pois reproduz o que já estabelece o artigo 26-A do Decreto nº 70.235/72 [10], aplicável a todos ele adotem.

Por fim, afirma que o artigo 1º da Lei nº 9.873/99 traria um prazo de “prescrição da ação punitiva” e que o artigo 139 do DL nº 37/66, traria uma “extinção do direito de impor penalidade”, e que apenas o primeiro previu a contagem no prazo de infração permanente ou continuada. Na sequência, afirma que a aplicação da Lei nº 9.873/99 às multas aduaneiras implicaria na derrogação do artigo 139 do DL nº 37/66.

Quanto a suposta “diferença” fundamental entre os prazos, ignora o REsp nº 1.115.078/RS, vinculante, que fixou que o artigo 1º da Lei nº 9.873/99 traria “prazo decadencial para se constituir o crédito decorrente de infração à legislação administrativa”, tendo a mesma natureza e prazo do artigo 139 do DL nº 37/66 — não há conflito normativo entre as disposições.

Em relação às infrações continuadas, assim como para a prescrição intercorrente, deve valer o teor da Lei nº 9.873/99, diante da lacuna do DL nº 37/66 a esse respeito. Haveria derrogação se houvesse conflito — não havendo conflito, em razão do DL 37/66 ser lacunoso a respeito, tampouco haverá derrogação.

Como se vê, os argumentos aduzidos não sobrevivem ao menor esforço crítico, ignorando a jurisprudência do STF e STJ, conceitos fundamentais do Direito e toda sorte de pilares jurídicos que se coloquem entre o cientista e o “dogma” de negar a prescrição intercorrente das multas aduaneiras.

Não prosperando qualitativamente, o autor adotou um argumento quantitativo, sustentando que “o Poder Judiciário, majoritariamente, não admite a prescrição intercorrente sob o rito do Decreto 70.235”. Aqui não há divergências, mas uma informação que não condiz com a estatística, conforme competente levantamento de jurimetria elaborado pelo colega Thales Belchior (disponível aqui), que evidencia o contrário: majoritariamente, reconhece-se a aplicação da prescrição intercorrente para as multas aduaneiras!

Para além disso, no dia 9/5/2023, foi julgado o REsp nº 1.999.532/RJ, de relatoria da ministra Regina Helena Costa, analisando a penalidade prevista no artigo 107, IV, “e”, do DL nº 37/66, de caráter inequivocamente aduaneiro, e reconheceu expressamente, verbis:

“As Turmas integrantes da 1ª Seção desta Corte firmaram orientação segundo a qual incide a prescrição intercorrente prevista no art. 1º, § 1º, da Lei n. 9.873/1999 quando paralisado o processo administrativo de apuração de infrações de índole não tributária por mais de 03 (três) anos e ausente a prática de atos de impulsionamento do procedimento punitivo. Precedentes.”

No seu voto, a ministra Regina Helena estabeleceu um corte: os deveres administrativos posteriores ao desembaraço aduaneiro não teriam perfil tributário, pois não guardam relação imediata com a fiscalização ou a arrecadação de tributos incidentes na operação internacional, mas, sim, com o controle do fluxo de bens econômicos do território nacional.

Ora, considerando o entendimento firmado pelos precedentes da 1ª Seção e o REsp nº 1.999.532/RJ, e a afirmação (de Trevisan) de que há multas inequivocamente não tributárias (como a da conversão da pena de perdimento — artigo 23 e 24 do DL nº 1.455/76), como ainda resta alguma dúvida da inaplicabilidade da Súmula Carf nº 11 para parte dos casos julgados naquele Tribunal?

Poderia haver alguma dúvida a respeito da fixação do regime jurídico para aqueles deveres administrativos que ficam na zona de intersecção entre o Tributário e o Aduaneiro, mas para as situações inequivocamente fora dessa zona, não há mais margem para hesitar e adotar subterfúgios que já foram afastados pela doutrina e, agora, pelo STJ.

Aliás, não haveria razões sequer para não se aplicar o REsp nº 1.115.078 [11], que estabelece com clareza a sua aplicação a infrações aduaneiras, com a jurisprudência do STJ uníssona no sentido de que ele não se aplicaria apenas às multas ambientais, mas a qualquer multa que se enquadre no artigo 1º da Lei nº 9.873/99. Criou-se uma situação pitoresca: o Carf contraria o STJ a respeito do alcance do seu repetitivo, restringindo-o! Com a devida vênia, isso extrapola a divergência de entendimentos e adentra o perigoso campo da desobediência de precedentes vinculantes e descumprimento do próprio Ricarf.

Há no Netflix um documentário chamado A Terra é Plana, que acompanha terraplanistas tentando, por experiências “científicas” demonstrar a validade da sua tese, mas, ao final (alerta de spoiler), o resultado deles acaba por confirmar que o planeta não é plano. Não comparamos quem de nós diverge com terraplanistas, mas fato é que depois que o tema ganhou relevância, argumentos “científicos” têm sido disparados a esmo, buscando infirmar as conclusões, mas que, postos sob escrutínio técnico, acabam sempre por ratificar e fortalecer a inescapável aplicação do artigo 1º da Lei nº 9.873/99.

Acabam, no afã de infirmar a construção jurídica acima disposta, e prorrogar a recalcitrância, utilizam-se de uma “força argumentativa” que é muito mais força do que argumento, esquecendo-se que “nada é mais forte que uma ideia cuja hora chegou”, clássica citação atribuída a Victor Hugo.

Para os que analisarão o tema, nos tribunais judiciais e administrativos, vale uma citação, essa sim de autoria comprovada, no L’Histoire d’un Crime, do autor francês: “On résiste a l’invasion des armées; on ne résiste pas a l’invasion des idées” — resistamos à invasão dos exércitos, mas não resistamos à invasão das ideias!

[1] https://www.conjur.com.br/2023-mar-08/direto-carf-prescricao-intercorrente-aduana-replica-critica-grata. A MP nº 1.859-17/99 incluíra o art. 5º na Lei nº 9.873/99, excluindo os “processos ou procedimentos de natureza tributária” em razão da privatividade de lei complementar para dispor da matéria, não tendo absolutamente nada a ver com o rito procedimental ou processual aplicado. Fosse o crédito tributário analisado por outro rito, a exceção seguiria válida.

[2] https://www.conjur.com.br/2023-abr-04/territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-aduana-back-to-the-future-parte e https://www.conjur.com.br/2023-mai-09/territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-aduana-back-to-the-future-parte.

[3] Diz o min. Moreira Alves: “Ademais, se se quisesse criar prazo extintivo para coibir essa procrastinação, mister seria que a lei (…) se socorresse de outra modalidade de prazo que não o de decadência ou de prescrição”.

[4] Diz o min. Luiz Fux: “(…) afastando-se a incidência prescrição intercorrente em sede de processo administrativo fiscal, pela ausência de previsão normativa específica“.

[5] Ao final, concluiu o STF pela constitucionalidade do art. 40 da LEF porque o legislador teria apenas transposto o art. 174 do CTN para as particularidades da prescrição intercorrente na execução fiscal.

[6] Quando legislador quer punir a inércia no âmbito processual o faz com meios próprios, como nas hipóteses das preclusões processuais e na perempção.

[7] BUENO, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil, v. 1, p.66 e ss.

[8] Rel. Cons. Rosaldo Trevisan, j. 29/01/2018.

[9] Rel. Cons. Rosaldo Trevisan, j. 26/03/2014.

[10] Art. 26-A. No âmbito do processo administrativo fiscal, fica vedado aos órgãos de julgamento afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade.

[11] https://conjur.com.br/2023-fev-15/direto-carf-prescricao-intercorrente-resp-1115078-carf-eppur-si-muove

Fonte: Conjur

Em regra, honorários sucumbenciais serão processados no juízo que decidiu a causa

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o cumprimento de sentença relativo a honorários sucumbenciais deve ser processado, em regra, no juízo que decidiu a causa principal, da qual proveio a verba honorária, ainda que se trate de vara especializada. Na decisão, o colegiado ressalvou a possibilidade de o exequente escolher outro juízo.

O recurso julgado pela turma tratava de um caso em que, no cumprimento de sentença relativo a honorários fixados em ação de guarda, o juízo não conheceu do pedido de execução, por entender que a matéria era alheia à sua competência especializada e deveria ser processada em juízo cível.

O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) manteve a decisão, sob o fundamento de que a competência para processar e julgar o cumprimento de sentença, no caso, seria do juízo residual cível, e não da vara de família e sucessões.

No recurso dirigido ao STJ, a recorrente defendeu que a competência para processar o cumprimento de sentença dos honorários de sucumbência é do juízo onde tramitou a ação de guarda.

Vara especializada não altera competência para processamento de honorários

O relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, ressaltou que, segundo o artigo 516, inciso II, do Código de Processo Civil (CPC), a regra de competência para o cumprimento de sentença se efetua perante o juízo que decidiu a causa no primeiro grau de jurisdição.

Conforme explicado pelo ministro, “o fato de o título executivo ter-se originado de vara especializada, que decorra da lei de organização judiciária, não tem o condão de alterar a competência absoluta do respectivo juízo para o cumprimento de sentença de seus julgados, sobretudo quando a mencionada vara especializada (de família e sucessões, na hipótese) insere-se na matéria cível”.

O ministro destacou que, embora os honorários sucumbenciais devam ser executados perante o mesmo juízo competente para o cumprimento de sentença da tutela principal, o exequente pode fazer opção diversa, de acordo com o disposto no parágrafo único do artigo 516 do CPC.

Da mesma forma, o relator apontou que o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em seu artigo 24, parágrafo 1º, “atribui ao advogado exequente a faculdade de escolher o juízo para dar início ao cumprimento de sentença da verba honorária que lhe é devida, admitindo a sua realização no mesmo feito da ação da qual se originaram os honorários”.

Fonte: STJ

STJ revoga preventiva de 3 meses sem oferecimento da denúncia

O consentimento da vítima para a aproximação do acusado conduz à atipicidade da conduta do crime de descumprimento de medida protetiva. Assim entendeu a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Ceará (TJ-CE), que acatou um recurso para afastar a condenação de um homem que descumpriu a medida de urgência.

Marcos Santos/USP
Vítima e réu continuaram morando na mesma casa mesmo após concessão
de medida protetiva de urgência

De acordo com os autos, a vítima e o acusado informaram que, mesmo após a imposição da medida protetiva, continuaram convivendo na mesma residência. A mulher relatou que chegou a se mudar para a casa de seu pai, mas voltou em seguida.

Relator do caso, o desembargador Mário Parente Teófilo Neto compreendeu que ficou “incontroverso que o descumprimento da medida protetiva contou com o consentimento da própria vítima, tem-se que o delito do artigo 24-A da Lei 11.340/06 não restou configurado”.

O magistrado lembrou precedente do Superior Tribunal de Justiça em julgamento em que um réu foi absolvido porque a vítima permitiu sua aproximação. Assim estabeleceu a 6ª Turma da corte na análise do Habeas Corpus 521.622: “Ainda que efetivamente tenha o acusado violado cautelar de não aproximação da vítima, isto se deu com a autorização dela, de modo que não se verifica efetiva lesão e falta inclusive ao fato dolo de desobediência.”

Apesar de o tribunal cearense ter decidido pela absolvição em relação ao descumprimento da medida protetiva de urgência, foi mantida a condenação pelo crime de lesão corporal.

Fonte: Conjur

Piso de enfermeiros privados deve ser pago na falta de acordo coletivo


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O Supremo Tribunal Federal (STF) informou, nesta segunda-feira (3), que o pagamento do piso salarial nacional para os profissionais de enfermagem do setor privado deve ser garantido no caso de falta de acordo entre sindicatos e empresas de saúde.

Na sexta-feira (30), a Corte encerrou o julgamento da validade do pagamento do piso. Por maioria de votos, os ministros entenderam que o piso deve ser pago aos profissionais que trabalham no sistema de saúde de estados e municípios nos limites dos valores repassados pelo governo federal.

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No entanto, houve impasse na votação sobre o pagamento aos profissionais celetistas, que trabalham em hospitais privados, e os ministros estabeleceram o “voto médio” para resolver a questão.

Segundo a assessoria da Corte, a negociação coletiva é obrigatória, mas foi estabelecido que o piso dos enfermeiros privados deve ser pago se não houver acordo.

Além disso, ficou definido que o piso vale para carga horária de 8 horas diárias e 44 horas semanais. Dessa forma, se a jornada for diminuída, o piso também será.

As mudanças passam a valer no prazo de 60 dias após a publicação da ata do julgamento.

O novo piso para enfermeiros contratados sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é de R$ 4.750, conforme definido pela Lei nº 14.434. Técnicos de enfermagem recebem, no mínimo, 70% desse valor (R$ 3.325) e auxiliares de enfermagem e parteiras, 50% (R$ 2.375). Pela lei, o piso vale para trabalhadores dos setores público e privado.

 

PGR é favor de separação de bens em casamentos de maiores de 70 anos

A Procuradoria-Geral da República (PGR) enviou, nesta segunda-feira (3), ao Supremo Tribunal Federal (STF) parecer para garantir o regime de separação de bens nos casos de casamento ou união estável envolvendo idosos maiores de 70 anos.

O documento foi anexado ao processo no qual a Corte discute a constitucionalidade do artigo 1.641 do Código Civil, dispositivo que obriga a adoção do regime de separação de bens para quem tem mais de 70 anos.

Na avaliação do procurador-geral, Augusto Aras, a regra é constitucional por garantir o direito de propriedade do idoso e de seus herdeiros.

“Considerando a especial proteção a ser dada à pessoa idosa, é constitucionalmente legítimo o uso da idade como critério de diferenciação entre os indivíduos ou grupos sociais”, argumentou Aras.

O caso julgado pelo Supremo envolve o recurso de um cônjuge para entrar na partilha de bens do falecido companheiro. A união estável foi realizada aos 72 anos. A primeira instância da Justiça de São Paulo validou a divisão da herança, mas o entendimento foi anulado pelas demais instâncias.

O relator do processo é o ministro Luís Roberto Barroso. A data do julgamento ainda não foi definida.

Fonte: EBC

Ministério Público não é obrigado a notificar investigado sobre acordo de não persecução penal

O acordo, criado pelo Pacote Anticrime, é uma possibilidade no caso de infrações penais cometidas sem violência ou grave ameaça e que tenham pena mínima inferior a quatro anos.

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou o entendimento de que, por falta de previsão legal, o Ministério Público (MP) não tem a obrigação de notificar o investigado acerca de sua recusa em propor o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP).

Para o colegiado, se o acusado só tomar conhecimento da recusa na citação, após o recebimento da denúncia, isso não o impedirá de requerer a remessa dos autos ao órgão de revisão do MP.

Denunciado pelos artigos 309 e 311 do Código de Trânsito brasileiro (CTB), em concurso material com o crime previsto no artigo 330 do Código Penal (CP), o réu recorreu de acórdão que concluiu que o juiz não poderia ter rejeitado a denúncia apenas porque o MP não o notificou sobre a propositura ou a recusa do ANPP.

Após o tribunal de segundo grau determinar a manifestação do MP, o órgão afirmou que deixou de notificar os denunciados porque eles não se apresentaram na Promotoria de Justiça acompanhados de advogados ou defensores públicos para o oferecimento da proposta de acordo.

No recurso dirigido ao STJ, a defesa sustentou que a rejeição da denúncia seria cabível, pois o réu cumpria os requisitos legais previstos no artigo 28-A do Código de Processo Penal (CPP) para o acordo e, mesmo assim, o órgão ministerial não o propôs, sem apresentar a devida motivação para tanto.

Por falta de previsão legal, MP não tem obrigação de notificar o denunciado

O relator do caso, o desembargador convocado Jesuíno Rissato, ressaltou que o entendimento adotado no acórdão do tribunal de origem encontra respaldo na jurisprudência do STJ, segundo a qual, por ausência de previsão legal, o Ministério Público não é obrigado a notificar o investigado acerca da propositura do ANPP.

O desembargador destacou também que, conforme a interpretação conjunta do artigo 28-A, parágrafo 14, e artigo 28, ambos do Código de Processo Penal (CPP), a ciência da recusa ministerial pode ser verificada com a citação do acusado, após o recebimento da denúncia.

Conforme explicou o relator, o acusado pode, na primeira oportunidade de se manifestar nos autos, requerer a remessa dos autos ao órgão de revisão ministerial, caso discorde da posição tomada pelo Ministério Público.

Fonte: STJ