Tema relevante no âmbito do direito processual civil é o conceito de representante adequado da coletividade em processos metaindividuais, nos quais se busca a tutela de interesse que diga respeito à coletividade — ou seja, interesses individuais homogêneos, coletivos ou difusos, na linha do disposto nos artigos 81 e seguintes do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90).
Em tais litígios coletivos, o molde formal clássico da processualística é repensado. Não se trata mais de uma disputa individual (Tício, Mévio e Caio), tampouco da hipótese de litisconsórcio ativo (dois ou mais integrantes reunidos no polo ativo de uma mesma lide proposta em face de terceiro).
Tais propostas, consideradas e adotadas em processos de natureza individual, não abrangem de maneira eficaz a representação prática da coletividade em uma única demanda judicial. Isso ocorre porque, quando se trata de representação para a defesa de interesses coletivos, enfrentamos diversos obstáculos estruturais. Entre esses desafios, destacam-se:
o ajuizamento massivo de demandas idênticas e/ou similares, algumas potencialmente fraudulentas;
a sobrecarga do Poder Judiciário local diante do excesso de litígios;
a formação de litisconsórcios ativos excessivamente numerosos, que frequentemente demandam o desmembramento das ações pelos juízes; e
a lentidão processual decorrente do alto volume de processos pendentes de análise.
Imagine-se, por exemplo, um acidente naval que provoca o derramamento de produtos químicos em uma área de pesca compartilhada por diversas cidades litorâneas, contaminando o local e inviabilizando a atividade pesqueira. O impacto negativo sobre a população e a economia local seria evidente, e cada pescador, comerciante ou proprietário de negócios relacionados à pesca poderia sentir-se no direito de ajuizar uma ação indenizatória contra os responsáveis, buscando reparação pelos prejuízos sofridos.
Contudo, ao analisarmos a questão sob uma perspectiva mais ampla, fica evidente que esse cenário pode gerar consequências contraproducentes: o grande volume de demandas, a falta de sistematicidade nos pleitos, a inconsistência nos relatos dos fatos e a insuficiência estrutural do Judiciário local reduzem significativamente as chances de um desfecho célere e satisfatório. Nesse sentido, o pleito individual, quando analisado de forma fragmentada, pode se tornar um verdadeiro “tiro pela culatra”, comprometendo a efetividade da tutela coletiva.
Lei de ACP
Não é sem razão que o legislador cogitou pela hipótese de substituição processual da coletividade por entes que pudessem ser efetiva e expressamente representativos. [1] Tal realidade foi positivada com a Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), em seu artigo 5º. Nos incisos do referido dispositivo, foram eleitos expressamente os entes considerados aptos a proporem tal ação coletiva, sendo eles o Ministério Público, a Defensoria Pública, os entes federativos, as autarquias, empresas públicas, fundações ou sociedades de economia mista, e as associações civis constituídas há pelo menos um ano e que tenham como finalidade a proteção de direitos coletivos, como o patrimônio público, o meio ambiente, os consumidores etc.
Vê-se, nesse sentido, um esforço do legislador, seguindo orientação internacional, para realizar um controle qualitativo sobre as proposituras de ações coletivas — especialmente as ações civis públicas —, considerando o importante papel social dessa ferramenta jurisdicional e seu impacto prático sobre os envolvidos na situação jurídica que originou o ajuizamento de demandas dessa magnitude. [2]
Assim, com o objetivo de evitar a propositura de demandas inidôneas, o legislador selecionou, previamente, entes que considerou jurídica e tecnicamente aptos a prosseguir com uma ação civil pública. Entendeu-se que esses entes teriam condições de propor a ação, produzir provas, interpor recursos, participar de audiências de conciliação ou mediação, e praticar outros atos processuais legalmente previstos, representando adequadamente a coletividade. Essa coletividade, embora substituída no processo, não é ouvida ou consultada diretamente, o que reforça a importância de se garantir o princípio constitucional do devido processo legal em tais procedimentos (CF, artigo 5º, LIV). [3]
O controle da representatividade adequada irrompe com a função de assegurar que a conduta dos representantes esteja alinhada aos interesses da classe representada e garantir que a decisão proferida ao final, vinculativa da coletividade, não estará sujeita a questionamentos que se fundamentem na falha de representação na demanda de origem. [4] O legislador brasileiro optou por um controle ope legis da adequação da representação de entes representativos da coletividade.
No entanto, doutrina e jurisprudência, percebendo que a mera expressão dispositiva da norma se mostrava insuficiente para a adequada satisfação do direito coletivo a uma adequada e efetiva representação, uma vez que, por exemplo, mesmo associações pré-constituídas há mais de um ano e com finalidade expressa poderiam ajuizar demandas temerárias, [5] pavimentaram o caminho para que fosse repensado o papel dos tribunais no controle da adequação da representação. Ou seja: um controle ope judice da representatividade adequada, e não apenas ope legis. [6]
Controle de representatividade de associações civis
Tal controle de representatividade adequada pelos tribunais pátrios mostra-se de extrema relevância, sendo a representatividade o fulcral requisito de admissibilidade das ações coletivas brasileiras. Sem legislação que especifique os critérios práticos que devam guiar os magistrados, os critérios de representação foram construídos ao longo dos anos pela prática forense e doutrina.
No dizer de Diego Santiago y Caldo, são três os requisitos eleitos pelas cortes brasileiras ao regular o controle de representatividade adequada de associações civis, foco do presente artigo: a regular constituição estatutária da associação civil por pelo menos um ano — que pode ser dispensada “quando houver manifesto interesse social, evidenciado pela dimensão ou características do dano, ou pela relevância do bem a ser protegido (artigo 5º, §4º, LACP, e artigo 82, §1º, CDC)” [7], — a coerente pertinência temática entre o objeto da ação ajuizada e os fins institucionais da associação e a permissão estatutária ou assemblear para a associação entrar em juízo, a qual também pode ser mitigada em casos excepcionais. [8]
Os requisitos acima delineados foram não apenas extraídos do texto da lei, considerando-se que o artigo 5º, V da Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) determina que as associações civis aptas a proporem a ação coletiva devem estar pré-constituídas há pelo menos um ano e incluir, dentre as suas finalidades institucionais, “a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”, mas também moldados pela prática jurídica posterior à sua promulgação.
Os tribunais foram responsáveis por repensar o critério da representatividade adequada, mitigando formalismos que dificultariam o acesso à Justiça por associações civis recém-formadas e exigindo requisitos que corresponderiam a melhores garantias de que a associação verdadeiramente estaria interessada na representação da coletividade — como o é o aprofundamento do requisito da pertinência temática, inclusive pelo próprio STF. [9]
Não é sem razão que, tendo-se em vista a mudança de perspectivas desde a promulgação da lei, que é silente sobre o tema, tramitam junto ao Congresso diversos projetos de lei para reformulá-la, os quais, por sua vez, buscam tratar diretamente do tema da representatividade adequada, de modo a unificar o entendimento adotado pelas cortes e evitar decisões eventualmente díspares sobre um tema ainda não pacificado. [10] Merece destaque, nesse sentido, o chamado Projeto de Lei Ada Pellegrini Grinover (PL 1.641/21).
Legitimar associações civis
O referido projeto busca reformar a Lei de Ação Civil Pública e, no âmbito do controle de representatividade adequada, o exposto no artigo 7º, V, do esboço, legitima as associações civis “que incluam, entre seus fins institucionais, a defesa dos direitos protegidos por esta lei, independentemente de prévia autorização estatutária, assemblear ou individual dos associados”, destacando no §1º que a “adequação da legitimidade ao caso concreto pressupõe que a finalidade institucional da entidade tenha aderência à situação litigiosa ou ao grupo lesado”.
E, no §2º, que na “análise da legitimação do autor, o juiz deverá considerar o grau de proteção adequada do grupo ou do interesse protegido”, avaliando dados como sua credibilidade, capacidade e experiência, histórico na proteção judicial e extrajudicial dos interesses ou direitos previstos em lei, conduta em outros processos coletivos, a pertinência entre os interesses tutelados pelo legitimado e o objeto da demanda, e o tempo mínimo de instituição da associação por pelo menos um ano e a representatividade desta perante o grupo, categoria ou classe.
Ainda, nos parágrafos subsequentes, os requisitos da adequação da representação são mais bem aprofundados. O projeto destaca que os quesitos anteriormente expressos poderiam ser dispensados pelo juiz caso seja evidenciado o manifesto interesse social da causa, podendo ser a legitimação adequada aferida por outros critérios (§3º), que o controle jurisdicional da adequação da legitimidade deverá ser feito durante o decorrer do processo, e não apenas no âmbito da análise de admissibilidade (§4º), que o autor deverá demonstrar na peça inicial porque é um legitimado adequado para a condução do processo (§5º), que uma vez não demonstrada a legitimação adequada, o juiz deverá conceder prazo para eventual emenda ou complementação da petição inicial, nos termos do artigo 321 do CPC (§6º) e que reconhecida a ausência de representação, questão de admissibilidade ou legitimidade adequada, a qualquer tempo ou grau de jurisdição, o juiz deverá promover a sucessão processual do autor, intimando o Ministério Público, a Defensoria Pública ou outros legitimados a assumirem a condução do processo (§7º) e que a decisão sobre a adequação de legitimação é impugnação por meio de agravo de instrumento, salvo se extinguir o processo, com o que tal decisão será impugnável por meio de apelação (§8º). No mais, o artigo 22 do projeto, em seu §1º, II, atribui expressamente ao juiz a função de controlar a adequação da legitimação do autor na decisão de admissibilidade do processo.
Nota-se, nesse sentido, um movimento progressivo (da doutrina, jurisprudência e dos próprios legisladores) no sentido de se exigir um controle jurisdicional da adequação representativa dos legitimados ativos em ações coletivas para cada caso concreto. Na linha de parte da doutrina, “melhor solução é possibilitar ao juiz o controle do real potencial representativo do autor”. [11]
Nesse ínterim, a representatividade adequada pode ser considerada “o mais importante de todos os requisitos gerais de admissibilidade e geralmente consiste no ponto mais controvertido em uma decisão de certificação”. [12]
A evolução doutrinária e jurisprudencial demonstra um esforço em mitigar insuficiências do controle ope legis, promovendo uma análise mais criteriosa e contextualizada pelos tribunais, que assegure uma representação alinhada aos interesses da classe representada.
A tramitação de propostas como o PL 1.641/21 evidencia o reconhecimento de que, apesar dos avanços, a legislação brasileira no tocante aos processos coletivos necessita de aprimoramentos. A função jurisdicional dos tribunais vai além do mero cumprimento de requisitos legais, buscando evitar a instrumentalização inadequada de ações coletivas e promovendo uma tutela mais justa e eficiente dos direitos metaindividuais.
[1] COSTA, Susana Henriques da. O controle judicial da representatividade adequada: uma análise dos sistemas norte-americano e brasileiro. In: SALLES, Carlos Alberto de. (Coord.). As grandes transformações do processo civil brasileiro: homenagem ao professor Kazuo Watanabe. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 2-3
[2] Ainda que se fale de eficácia erga omnes da coisa julgada apenas na hipótese de o resultado da demanda ser positivo à coletividade (art. 18 da Lei 4.717/65), aponta-se um discutido efeito negativo da improcedência meritória de ações coletivas, qual seja, a impossibilidade de repropositura da ação com base no mesmo acervo fático-probatório utilizado quando da propositura da demanda original, caso inócua por eventual insuficiência técnica ou jurídica dos patrocinadores da causa.
[3] VASCONCELOS, Andre. Class actions. Ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos aprender com eles? Salvador: JusPodivm, 2013, p. 131.
[4] Ibid., p. 133.
[5] STJ, 3ª Turma, REsp 2.035.372/MS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 21/11/2023; e STJ, 1ª Turma, AgInt no REsp 1.350.108/DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 14/8/2018.
[6] LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2021. pp. 202-203.
[7] CALDO, Diego Santiago y. Ações coletivas: representatividade adequada sob a ótica comparada. Belo Horizonte: Fórum, 2022. p. 211.
[8] Ibid., p. 206-216.
[9] Veja-se: STF, Pleno, ADI nº 1282 QO/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 29/11/02, p. 17; STF, 1ª Turma, RE nº 196.184/AM, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 18/2/5, p. 6; STF, Pleno, ADI nº 3.059 MC/RS, Rel. Min. Carlos Brito, DJ 20/8/4, p. 36; e STF, Pleno, ADI nº 2.350/GO, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 30/4/4, p. 28.
[10] Projetos de Lei 4.441/2020, 4.778/2020 e 1.641/2021.
[11] COSTA, op. cit., p. 22. No mesmo sentido, Ricardo de Barros Leonel preleciona que a “realidade do processo coletivo no dia a dia do foro bem como a dinâmica experiência que ele proporciona (…) fortalecem a percepção no sentido de que o controle judicial pode ocorrer” (LEONEL, op. cit., p. 202).
[12] VASCONCELOS, op. cit., p. 134.
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