Sistematização processual das ações diretas de controle de constitucionalidade

A Constituição Federal de 1988 contemplou, como meio de controle judicial de constitucionalidade das leis, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou federal (Constituição Federal, artigo 102, I, a, c/c o artigo 103). A introdução desse mecanismo de controle abstrato de normas, com amplo rol de legitimados ativos, reforçou a jurisdição constitucional brasileira, como específico instrumento de aperfeiçoamento do modelo geral de fiscalização difusa e incidental.

Anos mais tarde, o controle abstrato e concentrado de constitucionalidade foi complementado pela Emenda Constitucional nº 3/1993, que disciplinou o instituto da ação declaratória de constitucionalidade.

Importa frisar que as ações diretas de controle de constitucionalidade, que se desenvolvem por meio do denominado processo objetivo, em particular, perante o Supremo Tribunal Federal, a despeito de sua inequívoca relevância, não obteve até hoje no nosso ordenamento jurídico um regramento legal unívoco. Esta lacuna legislativa de certo modo enseja na praxe forense inúmeras dúvidas, que acabam propiciando verdadeira insegurança jurídica.

Transcorridos mais de vinte anos desde a edição dos diplomas legais acima apontados, o notório avanço da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nesta matéria passou a exigir uma sistematização do regime processual das ações de controle concentrado.

Daí porque deve ser louvada a iniciativa do deputado Marcos Pereira (Republicanos-SP), que apresentou recentemente (31/7/2023) perante a Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 3.640/2023, específico sobre o processo e julgamento das ações de controle concentrado de constitucionalidade, incluindo algumas alterações no Código de Processo Civil.

Colhe-se da justificativa da proposta legislativa, que decorre ela do resultado de trabalho desenvolvido, desde novembro de 2020, por uma comissão de destacados juristas, presidida pelo ministro Gilmar Mendes e tendo como relator o professor Ingo Wolfgang Sarlet, com o objetivo de sistematizar as regras do processo constitucional brasileiro, mais especificamente, do processamento e respectivo julgamento, perante o Supremo Tribunal Federal, da ação direta de inconstitucionalidade (ADI), da ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO), da ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).

Em 60 artigos, o referido Projeto de Lei estabelece, no capítulo I, artigo 2º, entre as disposições processuais gerais, os “Princípios do Processo Constitucional Objetivo”, destacando-se a: “I – autonomia do processo constitucional; II – economia processual; III – instrumentalidade das formas; IV – abertura do processo objetivo e ampliação do espaço deliberativo; V – gratuidade do acesso à jurisdição constitucional; e VI – causa de pedir aberta“.

Alusão especial merece o artigo 6º, ao prescrever que: “As ações de controle concentrado de constitucionalidade são fungíveis, podendo o relator ou o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, a qualquer tempo, de ofício ou a requerimento das partes, ordenar a modificação da autuação processual“.

Dada a inexistência de partes formais nos processos objetivos (art. 7º), o parágrafo único do artigo 7º determina que os artigos 144 e 145 do Código de Processo Civil, que catalogam respectivamente as causas de impedimento e de suspeição do juiz, não se aplicam às ações de controle concentrado de constitucionalidade.

O artigo 8º, a seu turno, preceitua que as ações de controle de constitucionalidade podem ser ajuizadas tendo como objeto:

“I – emenda constitucional, lei ordinária, lei complementar, lei delegada ou ato normativo federais ou estaduais dotados de generalidade e abstração, hipóteses de cabimento da Ação Direta de Inconstitucionalidade ou da Ação Declaratória de Constitucionalidade;

II – omissão inconstitucional total ou parcial quanto ao cumprimento de dever constitucional de legislar ou quanto à adoção de providência de índole administrativa, hipóteses de cabimento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão; e

III – ato do poder público, lei municipal ou ato normativo primário anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, que causem ou possam causar lesão a preceito fundamental, hipóteses de cabimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental”.

Os legitimados ativos para o ajuizamento das ações de controle concentrado de constitucionalidade estão arrolados no artigo 9º, que reproduz a redação do artigo 2º da Lei nº 9.868/99.

A estrutura da petição inicial se encontra prevista no artigo 10. O parágrafo único do artigo 11 autoriza, no prazo de cinco dias, a interposição de agravo interno contra a decisão que indeferir a petição inicial.

A Seção V do Projeto dispõe sobre as medidas cautelares (artigos 15 a 17), temática de expressiva importância para a jurisdição constitucional brasileira, uma vez que, como ressaltado na Exposição de Motivos (do Anteprojeto), “a suspensão de uma lei carece de legitimidade democrática imediata e deve obtê-la por meio da exaustiva fundamentação. Ademais disso, não raras vezes cautelares são concedidas ou negadas sem que sejam consideradas suas consequências práticas”.

O texto legal proposto, no que concerne à concessão de medidas cautelares, ostenta dois propósitos bem nítidos. De um lado, “trata, em primeiro lugar, do estabelecimento de critérios mais rígidos e objetivos, tais como (i) fundamentação específica quanto à necessidade de concessão da cautelar e impossibilidade de submissão do feito ao rito abreviado; (ii) fundamentação com base em entendimento do Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, caso existente. Mantendo a atual sistemática (Lei da ADI, artigo 11, parágrafo 1º), as decisões proferidas em sede cautelar seguem dotadas de eficácia erga omnes e efeito ex nunc, salvo decisão do Tribunal em sentido contrário (artigo 16, parágrafo 1º)”.

Verifica-se, por outro lado, “a submissão automática ao referendo do colegiado na primeira sessão de julgamento subsequente à sua prolação (artigo 17, parágrafo 3º) e sua concessão monocrática apenas em situações muito excepcionais (artigo 17, caput), previsões que privilegiam a colegialidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal”.

Nessa mesma linha, deve-se ressaltar que o projeto de lei em apreço preocupa-se com a repercussão e consequência das decisões proferidas no cenário da jurisdição constitucional, à luz do disposto no artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Esta cautela com as consequências sociais dos atos decisórios estende-se igualmente à modulação de seus respectivos efeitos, inclusive no que toca à modulação da eficácia do ato normativo ou do ato do poder público impugnado (artigo 51).

Infere-se outrossim importante novidade do mencionado Projeto de Lei. À luz da jurisprudência mais recente da Suprema Corte, os artigos 55 e 56 contemplam a possibilidade, desde que atendidos determinados requisitos, de celebração de transação no âmbito dos processos objetivos. A justificar esta inovação, a Exposição de Motivos salienta que: “a recente controvérsia envolvendo os planos econômicos, a Lei Kandir (QO ADO 25) e a destinação das verbas arrecadadas pelo então declarado inconstitucional ‘Fundo Lava-Jato’ (ADPF 568), não deixam dúvidas quanto ao direcionamento do Supremo Tribunal Federal no sentido da possibilidade de transações, desde que realizados de forma plural e submetidos ao seu juízo homologatório. A possibilidade de transacionar no âmbito da jurisdição constitucional assume ainda maior relevo quando se verifica que, não raras vezes, discussões acerca da constitucionalidade de determinados dispositivos legais tramitam por décadas no Supremo Tribunal Federal. O resultado, com a mesma frequência, costuma ser insatisfatório, justamente por vir a destempo. Nesse sentido, o projeto toma posição muito clara quanto a eficácia prática das decisões do Supremo Tribunal Federal, que tem como função atemporal, como já destacamos, a proteção de direitos fundamentais. Na atual quadra histórica não há mais que falar — pelo menos em boa parte dos casos — de indisponibilidade absoluta e integral dos direitos e garantias fundamentais em causa nas controvérsias submetidas ao Supremo Tribunal Federal. Desde que devidamente supervisionados e entabulados após ampla discussão de todos os interessados (públicos e privados), acordos em sede de jurisdição constitucional buscam evitar inconstitucionalidades ainda mais gravosas advindas de uma eventual decisão de inconstitucionalidade. Por diversas vezes, como já é notório, o interesse social é melhor atendido mediante celebração de acordos do que por meio de uma decisão judicial de cariz definitivo”.

Entre as regras finais e transitórias, reza o artigo 57 que: As disposições desta Lei se aplicam, no que couber, à declaração de inconstitucionalidade incidental realizada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de ações de sua competência originária e do Recurso Extraordinário”.

Em conclusão, entendo que a aprovação do referido texto normativo proposto contribuirá em muito para o fortalecimento do sistema brasileiro de controle concentrado de constitucionalidade.

Fonte: Conjur

Justiça deve analisar pedido de retenção por benfeitorias feito na contestação à imissão na posse ainda que formulado com o nome de pedido contraposto

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, decidiu que, na contestação à ação de imissão na posse, é possível ao réu requerer a retenção por benfeitorias ainda que o pedido seja formulado com o nome de pedido contraposto. Segundo o colegiado, embora não seja cabível pedido contraposto em ação de imissão na posse, o réu alegou a existência do direito de retenção na própria contestação, inexistindo, portanto, impedimento à sua apreciação pelo juiz.

Citado na ação de imissão na posse ajuizada por uma empresa, o réu apresentou contestação na qual pleiteou, por meio de pedido contraposto, a retenção do imóvel até que fosse indenizado pelas benfeitorias que realizou.

A sentença julgou parcialmente procedentes os pedidos da autora e procedente o pedido contraposto de retenção e indenização das benfeitorias. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) negou provimento à apelação da empresa, entendendo que não haveria qualquer vício no pedido de retenção por benfeitorias formulado como pedido contraposto na contestação.

Ação de imissão na posse não tem previsão expressa no CPC

No recurso especial submetido ao STJ, a empresa sustentou que não é possível a formulação de pedido contraposto na ação de imissão na posse.

A relatora do recurso no STJ, ministra Nancy Andrighi, explicou que o pedido contraposto é o instituto processual que faculta ao réu formular pedido contra o autor no âmbito da defesa, sem as formalidades típicas da reconvenção, mas somente nas hipóteses expressamente previstas em lei. Esclareceu que se trata de exceção substancial invocada em defesa nas ações que visam à entrega de coisa, cujo objetivo é encobrir a eficácia da pretensão do autor, postergando a devolução do bem para o momento do ressarcimento das despesas com as benfeitorias.

Como, segundo ela, a ação de imissão na posse não tem referência expressa nem no Código de Processo Civil (CPC) de 1973 nem no de 2015, ficando submetida ao procedimento comum, conclui-se que, em regra, não é possível a formulação do pedido contraposto nesse tipo de ação.

Pedido de retenção por benfeitorias deve ser apresentado na contestação

Embora a ação de imissão na posse não admita o pedido contraposto, a relatora ressaltou que, desde o CPC de 1973, a jurisprudência do STJ definiu que o pedido de retenção por benfeitorias deve ser formulado na contestação – entendimento que passou a contar com previsão expressa no artigo 538, parágrafos 1º e 2º, do CPC de 2015.

A ministra apontou que o direito de retenção é um direito com função de garantia que assiste ao possuidor de boa-fé que realizou benfeitorias no bem, podendo ser utilizado para manter a posse do imóvel até que sejam indenizadas as benfeitorias necessárias e úteis.

“Se o réu, em ação de imissão na posse, veicula o direito de retenção em contestação, não há óbice à sua apreciação pelo juiz, ainda que formulado com o nome de pedido contraposto, máxime tendo em vista os princípios da instrumentalidade das formas, da razoável duração do processo e da primazia do julgamento de mérito”, concluiu Nancy Andrighi ao negar provimento ao recurso da empresa.

Fonte: STJ

Câmara aprova projeto que altera prazos da Lei da Ficha Limpa

Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Discussão e votação de propostas. Dep. Rubens Pereira Júnior (PT-MA)

Rubens Pereira Júnior, relator do projeto

A Câmara dos Deputados aprovou nesta quinta-feira (14) proposta que altera prazos da Lei da Ficha Limpa, reduzindo o período de inelegibilidade em algumas situações. O projeto (PLP 192/23), que segue para o Senado, também unifica prazos de afastamento de candidatos de cargos públicos e concilia a ficha limpa com a nova regra sobre improbidade administrativa.

O texto aprovado em Plenário determina que políticos cassados e condenados não poderão se eleger por oito anos contados da condenação, prazo menor do que o previsto atualmente, que é contado a partir do final da pena ou do mandato.

Se o projeto virar lei, as regras terão aplicação imediata, inclusive sobre condenações já existentes, e a inelegibilidade não poderá ser maior do que 12 anos.

Proporcionalidade
O relator da proposta, deputado Rubens Pereira Júnior (PT-MA), argumentou que a lei atual é desproporcional e não há isonomia entre os agentes políticos. Ele apontou que, condenados pela mesma prática, senadores podem ficar inelegíveis por até 15 anos, enquanto deputados serão afastados das urnas por 11 anos.

“A contagem da inelegibilidade gera assimetrias entre agentes políticos com mandatos de quatro anos (deputados federais, estaduais e distritais) e de oito anos (senadores)”, apontou.

Ele destacou que a proposta repete normas do Código Eleitoral aprovado pela Câmara em 2021 (PLP 112/21). “A inelegibilidade por oito anos, duas eleições, está preservada. O projeto trata tão somente do início da contagem deste prazo, uma simplificação e unificação na linha do que já foi aprovado no Código Eleitoral”, disse.

A deputada Gleisi Hoffman (PT-PR) avaliou que a proposta acaba com excessos da lei atual. “É uma revisão crítica para não criminalizar a política”, disse. Ela destacou que a inelegibilidade não pode atingir o tempo de um mandato que não existe mais, como ocorre atualmente.

A alteração foi criticada pelo deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS). “Esse projeto vai afrouxar o combate à corrupção eleitoral e diminuir penalidades que políticos deveriam cumprir. Vamos dar uma péssima mensagem da Câmara para a sociedade brasileira.

Outras mudanças
A proposta amplia de 4 meses para 6 meses o prazo de desincompatibilização (afastamento do cargo) exigido para a candidatura de políticos, policiais, servidores públicos e membros do Ministério Público e da Defensoria Pública. O relator explicou que a medida uniformiza regras.

“O modelo atual desequipara, sem razão suficiente, os prazos para a desvinculação dos agentes públicos, que variam entre seis e três meses. Daí a necessidade de uniformizá-los”, afirmou.

O texto também determina que, em caso de condenação por improbidade administrativa, a inelegibilidade dependerá de intenção de descumprir a lei (dolo). O objetivo é incluir na Lei Eleitoral mudança já feita à Lei de Improbidade Administrativa.

Conheça as principais mudanças na regra de inelegibilidade:

Legislativo

  • Como é hoje: senadores, deputados e vereadores cassados pela casa legislativa são inelegíveis por oito anos contados do fim da legislatura.
  • Como será: senadores, deputados e vereadores cassados pela casa legislativa serão inelegíveis por oito anos contados da data da condenação.

Executivo

  • Como é hoje: governadores, vice-governadores, prefeitos e vice-prefeitos cassados são inelegíveis durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos após o término da legislatura.
  • Como será: governadores, vice-governadores, prefeitos e vice-prefeitos serão inelegíveis por oito anos contados da data da perda do cargo.

Cassação pela Justiça Eleitoral

  • Como é hoje: políticos cassados por decisão dos tribunais regionais eleitorais ou do Tribunal Superior Eleitoral são inelegíveis para as eleições que se realizarem nos oito anos seguintes.
  • Como será: políticos cassados por decisão dos tribunais regionais eleitorais ou do Tribunal Superior Eleitoral serão inelegíveis por oito anos contados da data da eleição na qual ocorreu a prática abusiva.

Condenados pela Justiça

  • Como é hoje: pessoas condenadas por decisão colegiada são inelegíveis desde a condenação até oito anos após o cumprimento da pena.
  • Como será: pessoas condenadas por decisão colegiada são inelegíveis pelo prazo de oito anos após a condenação.

Fonte: Câmara Notícias

Para o STJ, não cabe à Fazenda compensar saldo de ICMS ao lavrar auto de infração

A utilização de crédito de ICMS para compensação do tributo devido é uma possibilidade a ser exercida pelo contribuinte no momento do lançamento por homologação. Assim, não é possível impor ao Fisco que faça esse encontro de contas no momento do lançamento de ofício.

Direito de crédito só pode ser exercitável no âmbito do lançamento por homologação, disse o relator, ministro Gurgel de Faria
Lucas Pricken/STJ

Com base nesse entendimento, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso especial de um laboratório farmacêutico que tentava anular um auto de infração lavrado pela Fazenda de São Paulo pelo não pagamento de ICMS no valor de R$ 1,8 milhão.

Segundo o contribuinte, o Fisco paulista deixou de considerar que ele tem R$ 20 milhões em créditos de ICMS aptos a serem compensados em sua escrituração contábil. A alegação é que a decisão administrativa feriu o princípio da não cumulatividade.

É plenamente possível usar esse crédito para compensar a cobrança futura de ICMS, desde que isso seja feito dentro do prazo de cinco anos da data de emissão do respectivo documento fiscal. O que se discutiu, no caso, foi uma possível ampliação das formas admitidas para essa compensação.

O direito à compensação pode ser exercido no lançamento do ICMS por homologação, quando o próprio contribuinte calcula o tributo e antecipa o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, a quem caberá homologar esse ato.

Se o contribuinte não declara o fato gerador do ICMS, o lançamento por homologação é substituído pelo lançamento de ofício, em que o agente fiscal calcula o montante devido. No caso, isso ocorreu pela lavratura de um auto de infração por falta de pagamento, com imposição de multa.

Para a empresa, caberia ao Fisco paulista, no momento de lavrar o auto de infração, perceber que ela tinha crédito suficiente para abater a totalidade do que não recolheu a título de ICMS. Essa possibilidade já foi admitida pelo STJ, em precedente da 2ª Turma (REsp 1.250.218).

Para as instâncias ordinárias, no entanto, esse encontro de contas é uma tarefa do contribuinte, que pode ou não exercê-la no momento oportuno. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concluiu que não há qualquer dever da administração fazendária de fazer essas contas.

Voto da ministra Regina Helena abordou a praticabilidade para pagamento do ICMS
Lucas Pricken/STJ

Essa interpretação foi referendada por unanimidade de votos na 1ª Turma. Relator, o ministro Gurgel de Faria observou que cabe somente ao contribuinte escolher o momento para compensação dos créditos de ICMS e quais deles serão efetivamente aproveitados.

Se a empresa não exerce essa faculdade no momento oportuno, não pode fazê-lo retroativamente. “Concluo, assim, que o direito de crédito somente pode ser exercitável no âmbito do lançamento por homologação”, afirmou o relator.

Consequências
Na visão do ministro Gurgel de Faria, é simplesmente impossível o Fisco considerar eventual saldo credor de ICMS no lançamento de ofício do imposto. Isso porque a análise feita depende da validade das declarações e dos documentos apresentados pelo contribuinte quando da ocorrência do fato gerador.

“Se cada vez que o Fisco não homologar a apuração e o pagamento do imposto for necessária a investigação de toda a documentação fiscal relacionada com os créditos do contribuinte, o objeto da fiscalização será aumentado em muitas vezes, inviabilizando, na prática, o exercício do mister da administração tributária”, explicou ele.

Essa questão prática também foi levada em conta no voto-vista da ministra Regina Helena Costa, que classificou o lançamento por homologação como instrumento de praticabilidade para pagamento do ICMS, pois simplifica e racionaliza a atividade administrativa.

Para ela, adotar a disciplina do lançamento por homologação também para os casos de lançamento de ofício resultaria na redução significativa desses benefícios e implicaria salvo-conduto para uma atuação descompromissada com a cultura de conformidade fiscal.

Uma empresa que possui créditos de ICMS, por exemplo, não precisaria se preocupar com a falta de pagamento do tributo no futuro ou com obrigações tributárias acessórias, pois caberia ao próprio Fisco afastar essas irregularidades em prol de uma compensação que o próprio contribuinte não fez quando teve a oportunidade.

“Ademais, caso a medida pleiteada se tornasse a regra, os direitos da empresa recorrente de parcelar o débito, buscar a transação e utilizar posteriormente o saldo, observado o prazo decadencial, seriam atingidos”, concluiu a ministra.

Clique aqui para ler o acórdão
AREsp 1.821.549

Fonte: STJ

É possível cumular cumprimento provisório e definitivo de capítulos diversos da mesma sentença

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, decidiu que é possível a propositura concomitante de cumprimento provisório e cumprimento definitivo de capítulos diversos do mesmo pronunciamento judicial. O colegiado ainda concluiu que não é necessário desmembrar o processo e que a competência para processar ambas as execuções é do juízo que decidiu a causa em primeiro grau.

De acordo com os autos, após vencer uma demanda contra três empresas, a parte requereu o cumprimento definitivo da parcela incontroversa, contra a qual não houve recurso, e o cumprimento provisório da parcela controversa da sentença.

O pedido de cumprimento provisório foi recebido, mas as instâncias ordinárias negaram a possibilidade de execução simultânea da parcela incontroversa, sob o fundamento de que a coisa julgada é total, e não parcial.

Mérito da causa pode ser cindido e examinado em duas ou mais decisões

A relatora do recurso no STJ, ministra Nancy Andrighi, observou que o CPC de 2015 passou a admitir a formação da coisa julgada em capítulos, conforme se depreende dos dispositivos que tratam desse instituto (artigos 502 e 523), da possibilidade de decisão parcial de mérito (artigo 356), da execução definitiva da parcela incontroversa (artigo 523), da rescisão de capítulo da decisão (artigo 966,  parágrafo 3º) e da devolutividade do capítulo impugnado na apelação (artigo 1.013, parágrafo 1º).

De acordo com a ministra, isso significa que o mérito da causa poderá ser cindido e examinado em duas ou mais decisões no curso do processo. “Na vigência do CPC/2015, parece não mais subsistir a vedação ao trânsito em julgado parcial ou progressivo das decisões. Assim, quando não impugnados capítulos da sentença autônomos e independentes, estes transitarão em julgado e sobre eles incidirá a proteção assegurada à coisa julgada”, declarou.

Sem impugnação, parcela transita em julgado e pode ser executada definitivamente

Nancy Andrighi também ressaltou que, subsistindo parcela controversa, sobre a qual pende recurso sem efeito suspensivo, é viável o cumprimento provisório da sentença, nos termos do artigo 520, com a garantia de caução prevista no inciso IV, do CPC.

Segundo a relatora, nada impede que, no mesmo pronunciamento judicial, exista parcela incontroversa, em relação à qual não tenha havido nenhum recurso. “Ante a ausência de impugnação, e consideradas as especificidades da situação em concreto, a referida parcela transitará em julgado e poderá ser executada de maneira definitiva, concomitantemente e sob mesmo procedimento”, afirmou.

A ministra ainda apontou que não há a necessidade de se realizar o desmembramento do processo, sendo competente para processar ambos os cumprimentos de sentença o órgão judicial que julgou a demanda em primeiro grau de jurisdição, nos termos do artigo 516, inciso II, do CPC – ainda que, por conveniência da organização judiciária local, tenham sido criados juízos especializados.

“Dessa maneira, é de ser determinado o retorno dos autos ao juízo de origem para que aprecie a existência de parcelas incontroversas, reconhecida a possibilidade de tramitação concomitante de cumprimentos provisório e definitivo de capítulos diversos da mesma sentença”, concluiu ao dar provimento ao recurso especial.

Leia o acórdão no REsp 2.026.926.

Fonte: STJ

Pedidos de vista adiam a votação da PEC que anistia partidos por descumprirem cota feminina

Gilmar Félix/Câmara dos Deputados

Discussão e votação do parecer do relator

Antonio Carlos Rodrigues (E) apresentou parecer nesta quarta-feira (13)

Um pedido de vista coletivo adiou nesta quarta-feira (13) a votação da proposta de emenda à Constituição (PEC) que concede anistia a partidos políticos que não cumpriram as cotas mínimas de destinação de recursos em razão de sexo ou raça nas eleições de 2022. A proposta impede sanções de qualquer natureza, como devolução de valores, multa ou suspensão dos recursos do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário. A PEC está sendo analisada por uma comissão especial da Câmara dos Deputados.

O texto em discussão é um substitutivo do relator, deputado Antonio Carlos Rodrigues (PL-SP), para a PEC 9/23, do deputado Paulo Magalhães (PSD-BA) e outros.

Além da anistia para o descumprimento das cotas, o substitutivo também mantém da PEC original a proibição de sanções relacionadas à prestação de contas anteriores a promulgação da nova Emenda.

Candidatas Laranja
Primeira a pedir vista do relatório, a deputada Fernanda Melchionna (Psol-RS) chamou a proposta de “PEC da Vergonha e da Autoanistia”. Ela questionou a não realização de cinco audiências públicas aprovadas pelo colegiado e criticou diversos pontos da PEC. “A proposta tem o relator de um partido político que é diretamente beneficiado por um ‘jabuti’ gigante, que busca revogar uma decisão da Justiça do Ceará”, disse Melchionna.

Segundo ela, sete mulheres afirmaram em depoimento que foram candidatas sem saber naquele estado.  “São sete candidaturas de mulheres usadas como laranja, com condenação em primeiro e segundo grau pela Justiça do Ceará, condenações importantíssimas para combater o uso de candidatas laranja.”

Um trecho incluído no substitutivo pelo relator prevê a não aplicação de sanções, como perda de mandato e decretação de inelegibilidade, quando a decisão judicial acarretar redução do número de candidatas eleitas.

Para a deputada Bia Kicis (PL-DF), por outro lado, o dispositivo faz justiça a candidatas eleitas legitimamente. “Aí vem uma decisão, porque houve casos de candidaturas laranja, para retirar aquelas que foram eleitas legitimamente e colocar homens no lugar delas. Isso é um absurdo. O relatório prevê que, em caso de não cumprimento da cota feminina, a decisão que resultar em perda de mandatos de mulheres não será aplicada”, argumentou.

Gilmar Félix/Câmara dos Deputados

Discussão e votação do parecer do relator. Dep. Fernanda Melchionna (PSOL - RS)

Fernanda Melchionna citou decisão judicial sobre candidaturas laranja no Ceará

Cota racial
Outra inovação do relator insere na Constituição uma cota mínima de 20% dos recursos dos fundos eleitoral e partidário para candidaturas de pessoas pretas e pardas, independentemente do sexo. Atualmente, o financiamento de candidaturas negras é proporcional ao número de candidatos negros no partido.

Em 2021, para incentivar a participação de pretos e pardos na política, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 111, estabelecendo que os votos dados a candidatas e candidatos pretos e pardos nas eleições sejam contados em dobro para fins de distribuição dos recursos dos fundos entre os partidos políticos.

Recursos para dirigentes
O substitutivo do relator estabelece ainda um teto de 10% do Fundo Partidário para ser usado mensalmente para o pagamento de multas aplicadas aplicadas às legendas após a vigência da Emenda 117.

“Estamos inaugurando um novo modelo que sanciona o partido, em bases mensais, no valor correspondente a 10% do Fundo Partidário recebido pela agremiação”, diz o relator.

STF
Uma ação movida pelo partido Rede Sustentabilidade e pela Federação Nacional das Associações Quilombolas (Fenaq) questiona a Emenda 117. Relator da matéria, o ministro Luís Roberto Barroso remeteu a decisão ao Plenário da Corte. Ainda não há data para o julgamento.

O Supremo já havia decidido em 2018 que a distribuição do financiamento de campanhas deveria ser proporcional aos candidatos de acordo com o gênero, respeitando o limite mínimo de 30% para mulheres. No entanto, a Emenda 117 anistiou os partidos que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições ocorridas antes da promulgação.

Para a Rede e a Fenaq, ao conceder a anistia, a PEC viola o princípio da igualdade de oportunidades entre candidatos nas eleições, além da diversidade e da pluralidade racial e de gênero.

Doações de empresas
O relator optou ainda por excluir da PEC a possibilidade de as legendas recorrerem ao financiamento empresarial para quitação de dívidas contraídas antes de 2015, época em que era permitido o recebimento de doações de pessoas jurídicas.

Essa modalidade de financiamento acabou com a Lei 13.165/15 (Minirreforma Eleitoral), que entrou em vigor em setembro de 2015.

Fonte: Câmara Notícias

Repetitivo vai definir se cooperativa médica pode exigir processo seletivo e limitar ingresso de membros

A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afetou ao rito dos repetitivos os Recursos Especiais 2.033.484 e 2.033.992, nos quais se discute se é lícito à cooperativa de trabalho médico, em seu estatuto social, exigir a aprovação em processo seletivo para o ingresso de novos cooperados e se o respectivo edital pode estabelecer limite no número de vagas.

O relator dos recursos é o ministro Raul Araújo, e a questão submetida a julgamento foi cadastrada na base de dados do STJ como Tema 1.212. Na decisão pela afetação do tema, o colegiado não suspendeu a tramitação dos processos semelhantes. Em seu voto, o relator apontou que o caráter repetitivo da demanda está presente, tendo em vista a multiplicidade de recursos sobre o assunto no tribunal.

Raul Araújo também ressaltou que as duas turmas de direito privado do STJ e a própria Segunda Seção têm diversos precedentes que consideram lícitas a exigência de processo seletivo e a limitação do número de associados, em razão do mercado para a especialidade em questão e do necessário equilíbrio financeiro da cooperativa. Ele apontou, por outro lado, a existência de posições divergentes no tribunal.

De acordo com o relator, a tese a ser fixada “contribuirá para oferecer maior segurança e transparência na solução da questão pelas instâncias de origem e pelos órgãos fracionários desta corte, porquanto o tema ainda não recebeu solução uniformizadora, concentrada e vinculante sob o rito especial dos recursos repetitivos”.

Recursos repetitivos geram economia de tempo e segurança jurídica

O Código de Processo Civil de 2015 regula, nos artigos 1.036 e seguintes, o julgamento por amostragem, mediante a seleção de recursos especiais que tenham controvérsias idênticas. Ao afetar um processo, ou seja, encaminhá-lo para julgamento sob o rito dos repetitivos, o tribunal facilita a solução de demandas que se repetem na Justiça brasileira.

A possibilidade de aplicar o mesmo entendimento jurídico a diversos processos gera economia de tempo e segurança jurídica. No site do STJ, é possível acessar todos os temas afetados, bem como conhecer a abrangência das decisões de sobrestamento e as teses jurídicas firmadas nos julgamentos, entre outras informações.

Fonte: STJ

CCJ aprova projeto que obriga presença de exemplar de Estatuto da Advocacia em delegacias

Vinicius Loures/Câmara dos Deputados

Marcos Pollon fala durante reunião de comissão

Marcos Pollon apresentou emenda autorizando estatuto em formato digital

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou projeto que torna obrigatória a manutenção de exemplar do Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em delegacias e estabelecimentos prisionais estaduais e federais, para consulta sobre as prerrogativas do advogado junto a esses órgãos. 

O não cumprimento na norma, segundo o texto aprovado, implicará a responsabilização da autoridade que preside, chefia ou dirige o órgão, por transgressão disciplinar, a ser apurada pela autoridade administrativa competente.

O relator da matéria, deputado Marcos Pollon (PL-MS), apresentou parecer favorável ao Projeto de Lei 6116/16, do deputado Pr. Marco Feliciano (PL-SP), com emenda para prever a possibilidade, como alternativa, de órgãos de segurança disponibilizarem o estatuto em formato digital. 

“Ao serem divulgados o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, divulgam-se também as garantias do advogado e do cidadão, pilares do Estado Democrático de Direito. Cabe um aperfeiçoamento ao projeto no sentido de garantir o acesso por meios digitais, uma vez que os recursos eletrônicos estão cada vez mais presentes no dia a dia da população e dos operadores do direito”, defendeu Pollon.

O projeto tramita em caráter conclusivo e, portanto, pode seguir ao Senado, a menos que haja recurso para votação pelo Plenário.

Fonte: Câmara Notícias

Verba destinada a mulher pode ser usada em chapa liderada por homem

Não há qualquer irregularidade no emprego de verbas do Fundo Partidário destinadas a candidaturas femininas na campanha de uma candidata a vice-governadora que integra uma chapa encabeçada por um homem.

Campanha de Jorginho Mello e Marilisa Boehm contou com R$ 9 milhões destinados às candidatas mulheres do PL catarinense
Eduardo Valentel/Secom/Governo SC

Com esse entendimento, o Tribunal Superior Eleitoral negou provimento a recurso ordinário em ação que tinha como objetivo cassar os mandatos de Jorginho Mello (PL) e Marilisa Boehm (PL), eleitos no ano passado governador e vice de Santa Catarina, respectivamente.

A ação de investigação judicial eleitoral (Aije) foi ajuizada pela candidata a deputada estadual Advogada Rosane (Psol), com a alegação de que houve uso indevido de recursos e abuso de poder econômico por parte da chapa vencedora na eleição para o governo catarinense.

Isso porque o PL catarinense recebeu cerca de R$ 9,3 milhões em verbas do Fundo Partidário para serem destinadas a candidaturas femininas, de modo a cumprir o artigo 44, inciso V, da Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/1995).

Desse montante, R$ 9 milhões foram repassados para a conta de campanha de Marilisa Boehm e, na sequência, encaminhados para a conta da campanha de Jorginho Mello. O restante das candidaturas femininas proporcionais do PL catarinense contou com R$ 336 mil de verbas.

A alegação da autora da ação era que essa foi a forma encontrada pelo partido para mascarar o uso do dinheiro, usando-o para financiar a campanha de um homem, o que causou desequilíbrio em relação aos demais concorrentes.

O Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina (TRE-SC) afastou a ocorrência de uso indevido de recursos e abuso de poder econômico, entendendo que a destinação da verba foi lícita, especialmente porque, nos termos do artigo 91 do Código Eleitoral, a chapa majoritária é una e indivisível.

Relator no TSE, ministro Floriano de Azevedo Marques afastou irregularidades
Alejandro Zambrana/Secom/TSE

Chapa una e indivisível
Por unanimidade de votos, o TSE manteve essa posição. Relator da matéria, o ministro Floriano de Azevedo Marques apontou que o financiamento da chapa majoritária aproveita ambos os candidatos, independentemente do gênero, e que não há provas de desvio de finalidade.

Respeitado o percentual destinado à promoção de candidaturas femininas, os partidos têm total autonomia para decidir como distribuir esses recursos. O fato de enviar a maioria da verba para a candidata a vice, por si só, não é suficiente para indicar fraude, segundo o relator.

Para ele, essa análise não pode ser reduzida a meras estatísticas, pois envolve muitas variáveis, como a viabilidade eleitoral de cada mulher, a relevância do cargo em disputa, a representatividade em colégios eleitorais relevantes e o papel que a mulher exercerá no mandato.

“A depender do contexto da disputa e das estratégias eleitorais, o êxito na eleição de uma vice-governadora pode superar o proveito eventualmente obtido com a obtenção de mais votos para candidatas a cargos proporcionais sem chance de serem eleitas”, exemplificou o magistrado.

Assim, não se pode extrair desvio de finalidade, fraude ou abuso de poder econômico na conduta de um partido que, visando a êxito na disputa ao governo, concentra recursos no financiamento de uma chapa composta por um homem como titular e uma mulher como vice.

A votação foi unânime. Ao acompanhar o relator, o ministro Alexandre de Moraes pontuou que o cargo de vice-governador não pode ser subestimado, inclusive porque “o Brasil tem uma tradição de os vice assumirem”.

Para ele, a situação não é de fraude, mas de estratégia eleitoral em colocar uma mulher ligada ao ramo da segurança pública — Marilisa Boehm é delegada — como candidata a vice, algo que inclusive já deu resultado em Santa Catarina em eleições anteriores.

RO 0602902-30.2022.6.24.0000

Fonte: Conjur

Terceirização e trabalho escravo, o alienista trabalhista

Por Otavio Torres Calvet

Defendi que a contribuição assistencial, ainda que fixada sem oposição do trabalhador, não pode ser objeto de desconto automático no salário dos empregados por força do artigo 611-B, XXVI da CLT.

Um dos comentários ao artigo me classifica com “defensor da escravatura”, afirmando, entre outras coisas, que a Justiça do Trabalho existe para proteger o “direito dos hipossuficientes”, lamentando que eu “comande uma escola de formação de juízes trabalhistas”.

Poderia, talvez deveria, ter ignorado o presente comentário, mas há coincidências na vida que despertam algo que acaba tomando uma forma própria que precisa ganhar corpo. Uma confluência de fatores que geram alguma percepção nova ou, quem sabe, o somatório de acidentes que produzem uma tragédia. Caberá ao leitor decidir.

O fato é que tenho lido e ouvido, com certa frequência, que a terceirização propiciada pela reforma trabalhista é culpada pelo trabalho análogo à escravidão. E não se trata de manifestação isolada nem de pouca autoridade. O último que vi defender essa conexão foi o próprio ministro do Trabalho e Emprego.

Escravatura, escravidão, este autor, reforma trabalhista. Tais são os sinais que inspiraram o artigo, produzido logo após o término da releitura de O Alienista, de Machado de Assis, na edição lançada pela Editora Antofágica. Uma obra-prima cuja leitura deixa qualquer pretenso escritor, no mínimo, inspirado. E como tenho este espaço semanal, por que não me aventurar?

Acompanhando as desventuras de Simão Bacamarte e sua luta contra a insanidade geral, compreendi que a área trabalhista padece do mesmo problema. A diferença é que aqui não tratamos de “doudos” que seriam recolhidos à “Casa Verde”, mas de doutos aprisionados por narrativas. A escravidão como resultado da terceirização regulamentada pela reforma trabalhista é uma delas.

Tal qual o ilustre médico alienista, podemos separar nossos doutos em três espécies: os que acreditam nas narrativas; os que usam as narrativas, pouco importando a verdade; os que sabem que se trata de uma mera narrativa, mas ficam omissos.

A primeira categoria, dos que acreditam nas narrativas, geralmente composta por estudantes, induz uma afeição quase contagiosa. Não se verifica aqui nenhum tipo de malícia, nada que pudesse desabonar a conduta dos seus integrantes, muito ao contrário. O que move sua vontade é o desejo de ser caridoso, de identificar um tutelado que precisa ser protegido de um grande inimigo, geralmente chamado abstratamente de “capital”, mas que acaba por atingir concretamente um dos lados da equação, o empregador.

Pode acontecer de os doutos da primeira categoria findarem por migrar em algum momento da carreira, isso para os guerreiros que não abandonarem a causa, na medida em que a visão vai se ampliando e as narrativas começam a não encontrar eco na realidade.

O segundo tipo, os que usam da narrativa, pouco importando a verdade, constitui, sem qualquer dúvida, o mais problemático, já que não adianta tentar reverter o quadro, não se trata de mero engano ou falta de experiência, mas de necessidade de a narrativa se sustentar para que o estado das coisas não se altere.

Aqui, penso, se insere a maioria dos atores trabalhistas atuais, cada um antevendo um futuro não muito auspicioso para as relações trabalhistas celetistas, desesperados para a manutenção da forma com que as coisas sempre funcionaram, para assim manterem seus próprios sustentos. Tipo perigoso, pois qualquer um que ouse trazer a verdade à tona se transforma em verdadeiro inimigo.

Da terceira categoria, a dos que sabem da narrativa porém ficam omissos, dela nada se pode exigir. Trata-se, no mais das vezes, de sobrevivência ou de cansaço. Talvez seja a escolha mais inteligente, por certo que as coisas evoluirão independentemente do desgaste de agir contrariamente ao avestruz.

Dizer que a terceirização da reforma trabalhista é a grande culpada do trabalho análogo à escravidão constitui, simplesmente, uma narrativa falsa. E nem é preciso mais que o resto deste artigo para explicar.

Primeiro, porque a terceirização da atividade-fim foi considerada constitucional por quem de direito, o Supremo Tribunal Federal. Logo, mesmo que a reforma trabalhista não tratasse do tema, o estado de coisas seria o mesmo. Na verdade, pior, porque não haveria nenhuma regulamentação específica criando os freios necessários para utilização desse instrumento, tal como criado pela reforma.

Segundo, porque a tentativa de imputar à terceirização a produção de trabalho escravo é antiga, mesmo na “época de ouro” em que apenas a tal da atividade-meio era “terceirizável”, seja lá o que isso significava. Basta ver notícias do período anterior à reforma, como na publicação de 24/6/2014 do site Repórter Brasil.

Terceiro, porque a regulamentação da reforma trabalhista ampliou a proteção ao trabalhador terceirizado, como por exemplo:

1. Necessidade de capacidade econômica compatível pela prestadora de serviços, com capital social mínimo conforme a quantidade de empregados;

2. Isonomia de tratamento aos trabalhadores terceirizados em relação aos efetivos da empresa contratante;

3. Utilização do trabalho apenas no objeto específico da terceirização;

4. Responsabilidade direta da contratante pelo ambiente de trabalho dos trabalhadores terceirizados;

5. Responsabilidade subsidiária da contratante pelos direitos trabalhistas independentemente de culpa nas atividades privadas.

Antes da reforma trabalhista basicamente utilizava-se a terceirização por força de Súmula do Tribunal Superior do Trabalho, de número 331, onde tudo dependia de interpretações e construções doutrinárias que, ao fim e ao cabo, estavam na maioria em divórcio com a Constituição Federal (não sou eu quem diz, mas o STF).

O silogismo, portanto, terceirização-reforma-escravidão, não se sustenta. Ou é entoado por quem acredita na narrativa ou quem por ela pretende algum proveito. Como não tenho instinto de sobrevivência e (ainda) não me cansei, e falta-me a inteligência, fica aqui minha análise.

E para agradar ao comentarista, nada melhor que um “defensor da escravatura” também defender que a reforma trabalhista não produziu escravidão. Pensando bem, talvez falte uma última categoria de doutos trabalhistas, na qual me incluo. Aquela que se autoenclasura dentro da verdade. E vamos ver por quanto tempo até sucumbirmos, nós, “bacamartes”.

Nota de alerta
Prevenção contra fraudes com o nome do escritório Aragão & Tomaz Advogados Associados