A Comissão Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que obriga a União a criar, dentro do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, um banco de dados reunindo pessoas não identificadas que sejam atendidas em hospitais, serviços de acolhimento ou outros órgãos de saúde e assistência social. Deverão ser incluídas também pessoas falecidas cuja identidade não tenha sido esclarecida.
Conforme a proposta, o banco de dados com pessoas não identificadas reunirá características físicas, fotos e outras informações úteis para seu reconhecimento por parte de conhecidos.
Paulo Bilynskyj relatou a proposta na comissão e defendeu sua aprovação – Vinicius Loures / Câmara dos Deputados
Autorização A publicidade desses dados, no entanto, dependerá de prévia e expressa autorização do seu titular, conforme determina a Lei Geral de Proteção de Dados, que poderá revogá-la a qualquer momento ou delimitar quais informações permanecerão sob sigilo. Os dados disponibilizados serão públicos e poderão ser acessado por qualquer pessoa por meio da internet dentro de um período de 30 dias.
A proposta prevê também a criação de banco de dados com informações sigilosas (físicas e genéticas) de pessoas não identificadas, destinado aos órgãos de segurança pública. E prevê ainda que as buscas por criança ou adolescente desaparecido deverão incluir o compartilhamento de dados biométricos presentes em órgãos de identificação civil que permitam o reconhecimento facial.
Relator O texto aprovado é o substitutivo da Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família, ao Projeto de Lei 397/20, do deputado Gutemberg Reis (MDB-RJ). Esse substitutivo recebeu parecer favorável do relator na Comissão de Segurança Pública, deputado Delegado Paulo Bilynskyj (PL-SP).
“A aprovação deste projeto de lei é crucial para melhorar a proteção e o bem-estar das pessoas desaparecidas e não identificadas no Brasil”, avaliou o relator. “A combinação de tecnologia de reconhecimento facial com medidas rigorosas de privacidade e segurança garantirá que a sociedade brasileira possa responder de forma mais eficaz e humana a essa questão grave”, completou.
O texto aprovado muda a Lei 13.812/19, que sistematizou a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas e a a Lei 6.015/73, que trata dos registros públicos.
Tramitação A proposta tramita em caráter conclusivo e segue para análise da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
Na Justiça Trabalhista, quando for constatada a necessidade econômica da parte, o juiz pode lhe conceder o benefício da Justiça gratuita. Seguindo esse entendimento, a juíza Ângela Castilho Rogêdo Ribeiro, da 14ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, deferiu um pedido de gratuidade na fase de execução a um trabalhador em situação de pobreza.
Segundo os autos, o homem foi condenado em uma ação trabalhista que teve como parte uma empresa de alarmes e dispositivos de segurança eletrônica. Na fase de execução da sentença, contudo, ele alegou estar desempregado e sem condições financeiras para pagar as despesas do processo.
O trabalhador entrou, então, com uma petição pleiteando a concessão de Justiça gratuita na execução. Como justificativa, ele sustentou que sua condição econômica constituiu fato novo e que o benefício da assistência judiciária pode ser requerido em qualquer fase processual, não estando, por isso, sujeito à preclusão (perda do direito de manifestação no processo).
Ao analisar o caso, a juíza Ângela Ribeiro foi breve ao fundamentar a decisão. Citando os documentos entregues pelo autor e uma pesquisa feita pelo juízo no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), ela reconheceu que o homem conseguiu comprovar sua situação de incapacidade econômica, fazendo jus à concessão da gratuidade.
“Assim, (…) demonstra que atualmente sofre essa condição de miserabilidade, razão pela qual, nos termos do artigo 790, §§3º e 4º da CLT, defiro a concessão do benefício da Justiça gratuita ao autor, que por consequência fica isento do recolhimento das custas processuais, às quais fora condenado, bem como está suspenso a exigência de pagamento dos honorários advocatícios sucumbenciais, enquanto perdurar sua condição de hipossuficiência econômica, extinguindo-se a obrigação após decorridos dois anos do trânsito em julgado da presente decisão”, anotou a juíza.
Clique aqui para ler a decisão Processo 0010498-80.2018.5.03.0014
A página da Pesquisa Pronta divulgou dois novos entendimentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no direito penal. Produzida pela Secretaria de Jurisprudência, a edição aborda, entre outros assuntos, o prazo prescricional da pena de multa e a data de início da contagem da prescrição da pretensão executória do Estado.
O serviço tem o objetivo de divulgar as teses jurídicas do STJ, mediante consulta, em tempo real, sobre determinados temas, organizados de acordo com o ramo do direito ou em categorias predefinidas (assuntos recentes, casos notórios e teses de recursos repetitivos).
Direito penal – Prescrição
Fluxo do prazo prescricional. Pena de multa. Causas interruptivas e suspensivas. Art. 51 do Código Penal com as alterações introduzidas pela Lei n. 9.268/1996.
“Segundo o entendimento desta corte, ‘a nova redação do art. 51 do Código Penal não retirou o caráter penal da multa. Assim, embora se apliquem as causas suspensivas da prescrição previstas na Lei n. 6.830/80 e as causas interruptivas disciplinadas no art. 174 do Código Tributário Nacional, o prazo prescricional continua sendo regido pelo art. 114, inciso II, Código Penal’. […]”
AgRg no REsp 1.998.804/TO, relator ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 18/9/2023.
Direito penal – Prescrição
Fluxo do prazo prescricional. Pretensão executória do Estado. Marco inicial.
“A jurisprudência desta corte, agora consolidada no âmbito da Terceira Seção após o julgamento do AgRg no REsp n. 1.983.259/PR (relator ministro Sebastião Reis Júnior, julgado em 26/10/2022, DJe de 3/11/2022), é no sentido de que o dies a quo para a contagem da prescrição da pretensão executória é o trânsito em julgado para ambas as partes.”
AgRg no RHC 182.130/PA, relator ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 28/8/2023.
A absolvição pelo Tribunal do Júri em razão do quesito genérico é soberana e não pode ser impugnada — nem reformada por novo julgamento — com a justificativa de que os jurados decidiram de forma contrária às provas dos autos.
Seguindo esse entendimento, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, restabeleceu veredicto do Tribunal do Júri de Florianópolis que absolveu uma mulher acusada de cometer assassinato.
De acordo com os autos, a ré foi submetida ao Tribunal do Júri em 2021, com a acusação de ter matado o marido, um coronel aposentado da Polícia Militar. Ao fim do julgamento, ela foi absolvida, mas o Ministério Público recorreu da decisão. Posteriormente, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) entendeu que o resultado do julgamento foi contrário às provas dos autos e anulou a absolvição.
Sustentando a soberania do veredicto do júri, a defesa impetrou Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça e, por fim, o caso chegou ao Supremo. Nesse intervalo, contudo, o juízo de Florianópolis não esperou a definição do caso pelo STF e marcou um novo júri. Resultado: a mulher foi condenada a oito anos de prisão por homicídio privilegiado.
A palavra final sobre o caso, porém, veio na segunda-feira (23/10), no encerramento da sessão virtual em que o STF julgou o agravo regimental em Habeas Corpus da defesa. Na decisão, prevaleceu o entendimento do ministro André Mendonça.
Divergindo do ministro relator, Dias Toffoli, que negou seguimento ao HC, Mendonça ressaltou que a Constituição assegura, entre os princípios da instituição do júri, a soberania dos veredictos.
Assim, prosseguiu o ministro, dessa garantia decorre a conclusão de que a decisão coletiva proferida pelos jurados não pode, no mérito, ser modificada por juízo ou tribunal. “De outra forma, estaria sendo afastada a competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida”, explicou Mendonça.
Sobre o caso concreto, o magistrado disse que a acusada confessou ter praticado o crime devido às “constantes práticas de violência doméstica e ameaça de morte por parte da vítima”. Diante disso, acrescentou o ministro, a defesa pleiteou o “reconhecimento do homicídio privilegiado, ao argumento de que a acusada cometeu o delito sob o domínio de violenta emoção”, além da absolvição por clemência.
Por fim, Mendonça lembrou que ambas as turmas do STF “já decidiram ser incabível determinar a realização de novo julgamento, partindo-se da premissa segundo a qual estaria a decisão de absolvição dos jurados, com base no quesito genérico, contrária aos elementos probatórios”. Dessa forma, ele concluiu pelo restabelecimento da absolvição. Acompanharam o voto os ministros Kassio Nunes Marques e Gilmar Mendes.
A defesa foi patrocinada pelo advogado Caio Fortes de Matheus, do escritório Dalledone e Advogados Associados.
Clique aqui para ler o voto do ministro André Mendonça HC 231.024
O Ministério Público é parte legítima para ajuizar ação civil pública com o objetivo de contestar atos lesivos ao patrimônio público, ainda que as consequências almejadas com o pedido sejam tributárias, como a anulação da concessão de benefícios fiscais.
Essa conclusão é da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que nesta terça-feira (24/10) deu provimento a um recurso especial ajuizado pelo Ministério Público Federal, autorizando-o a litigar contra a Fundação CSN Para o Desenvolvimento Social e a Construção da Cidadania.
A instituição é o braço social da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e foi agraciada com a Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (Cebas), concedida pelo governo federal para organizações sem fins lucrativos que prestam serviços assistenciais.
Com o Cebas, a Fundação CSN garantiu uma série de benefícios, sendo o principal deles a imunidade de contribuição para a seguridade social. A entidade não paga PIS, Cofins, contribuição previdenciária patronal ou Risco Ambiental do Trabalho (RAT).
O Ministério Público Federal ajuizou ação contra a Fundação CSN por entender que ela não faz jus à isenção fiscal, já que não se enquadra como instituição de assistência social ou de educação. A ação civil pública contém o pedido de pagamento das contribuições e dos impostos correlatos.
Para esse fim, pediu a anulação do ato administrativo concessivo do Cebas. As instâncias ordinárias extinguiram o processo sem resolução do mérito porque, conforme a Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985), a ACP não pode ser usada para veicular pretensões que envolvam tributos.
Essa posição foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 645 da repercussão geral. E a 1ª Seção do STJ já vetou tentativa de relativização da vedação, em casos em que a ACP é usada para discutir temas tributários com o objetivo de concretizar direitos fundamentais.
Por maioria apertada de 3 votos a 2, o STJ reformou o acórdão e autorizou o MPF a litigar pela anulação da concessão do Cebas. Venceu o voto divergente da ministra Regina Helena Costa, acompanhada dos ministros Sérgio Kukina e Paulo Sérgio Domingues.
Foco é o ato administrativo Para a ministra, o pedido principal é o de anulação do Cebas. A causa tributária é dependente da higidez do ato de concessão do certificado. Assim, a invalidação da concessão é o que se busca primordialmente, sendo o tema tributário um desdobramento.
“Se negarmos (essa possibilidade), estaremos inibindo o Ministério Público de questionar um ato administrativo que tem, dentre outras consequências, reflexos tributários. A discussão não é só a imunidade tributária. Aqui, o Cebas não poderia ter sido concedido”, destacou a ministra.
O ponto foi igualmente destacado pelo ministro Kukina. Já o ministro Paulo Domingues destacou que a vedação ao uso da ação civil pública para temas tributários deriva do cenário da década de 1990, em que ela era usada para discutir a constitucionalidade de determinados tributos então criados.
“É possível identificar a presença do pedido de anulação do Cebas, com a consequência da perda dessa isenção da imunidade para seguridade social”, concluiu ele ao desempatar a votação a favor da divergência.
Pedido tributário Ficaram vencidos os ministros Benedito Gonçalves, relator da matéria, que votou por manter a conclusão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), e Gurgel de Faria, que nesta terça-feira retomou o julgamento com a apresentação do voto-vista.
Para eles, o pedido é de índole tributária, sendo a anulação do Cebas apenas o meio para obter o fim buscado: a declaração de que a Fundação CSN deve pagar as contribuições sociais. “Sendo o pedido de ordem tributária, não verifico possibilidade de o Ministério Público ser parte legítima”, disse Gurgel de Faria.
Controle é um instrumento tipicamente republicano. Quem assume incumbências públicas tem que prestar contas de seus atos ao povo, pois trabalha em função do povo. Para tanto, é necessário haver sistema de controle que verifique a adequação das condutas de conformidade com o prescrito pela Constituição e demais normas. E isso ocorre por meio do sistema de controle público e social estabelecido pela Constituição.
A ideia de controle está associada à de poder, que possui diversas dimensões, dentre elas a política, a econômica, a religiosa, a moral e a técnica, envolvendo não apenas dominação, mas também influência.
Controle é um termo amplo que abrange diversas funções, dentre outras, as atividades de auditoria, de fiscalização, de autorização, de sustação ou de impedimento à realização de atos que estejam sendo praticados. Cada um desses termos possui conotação própria.
Auditar possui um escopo mais amplo do que fiscalizar, pois implica a comparação de procedimentos e o diálogo para correção de rotas. Fiscalizar implica a identificação de irregularidades e punição dos atos realizados. Eventuais incorreções identificadas pelo sistema de auditoria podem gerar relatórios de inconformidade e recomendações para a correção dos procedimentos, mas sem punições; já o sistema de fiscalização, quando identifica uma inconformidade, aplica penalidades.
Outras funções inseridas na atividade de controle são as de autorização e as de sustação ou de impedimento da prática, ou para a prática de certos atos. Vê-se isso, por exemplo, nas atribuições do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que é um órgão de controle econômico, pois não só fiscaliza como também autoriza determinados procedimentos empresariais, como fusões e aquisições, caso identificadas algumas hipóteses específicas tendentes à dominação de mercados.
A atividade de controle pressupõe publicidade e transparência, que são essenciais para a atividade governamental como um todo, o que permite afirmar sua essencialidade no âmbito de ações públicas que sejam efetivamente republicanas.
O vocábulo publicidade diz respeito ao que é público, que está em consonância com o que é “do povo”. Como o governo age em nome do povo, tudo que ele fizer deve ser tornado público, isto é, deve ter publicidade. Esse sentido do vocábulo publicidade tem correlação com a vulgarização de uma ideia ou informação, isto é, levá-la ao vulgo, torná-la vulgar.
Existem três vocábulos que muitas vezes são confundidos no estudo desse tema: publicidade, publicação e propaganda. Cada qual possui um sentido diferente.
Propaganda é a função de propagação de ideias visando ao convencimento das pessoas. Esta não se dirige apenas a divulgar, mas também a convencer e está mais voltada para o setor comercial, para as vendas, para colocar uma marca ou produto na preferência dos consumidores.
Publicidade está voltada à divulgação e difusão de fatos, ideias e eventos, sem o necessário objetivo de convencer (próprio da propaganda), mas de informar.
A linha de distinção é tênue, mas existe. O Reich alemão criou, em 1933, o “Ministério da Propaganda“, que foi determinante para a disseminação e o convencimento daquela população acerca da ideologia nazista.
Essa é a distinção que está na base da determinação constitucional de vedar o uso da publicidade para promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos (artifo 37, §1º), devendo ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, de atos, programas, obras, serviços e campanhas realizadas pelo poder público. Não se pode usar do governo para propaganda pessoal ou mesmo do próprio governo, mas para publicidade das ações e campanhas necessárias para informação da sociedade. Estão permitidas, por exemplo, as campanhas publicitárias de vacinação periódica contra doenças, ou divulgação de informações sobre prazos para pedidos de bolsas de estudo ou exames gerais na rede de ensino, como o Enem. Deverão ser vedadas todas aquelas que não tenham caráter publicitário, mas propagandístico do governo.
Por outro lado, publicizar é mais amplo do que publicar. Publicar é apenas tornar público através de uma edição gráfica, ou virtual pela Internet, de um determinado ato de governo. Publicizar é difundir atos, fatos e ações de governo. É fornecer informação. Faz parte de uma iniciativa do agente público visando comunicar ao povo determinado ato ou procedimento. A publicidade é atinente a toda e qualquer ação pública. De que adiantaria a comunicação de uma campanha de vacinação apenas no diário oficial do Município? É necessário fazer com que a população a ser atingida por aquela determinada política pública efetivamente tome conhecimento das ações que estão sendo executadas pelo governo, em seu benefício.
É preciso distinguir ainda publicidade de transparência. A transparência obriga que todo e qualquer documento ou ato público esteja acessível e seja inteligível a quem nele tiver interesse. Publicidade equivale a um megafone, pelo qual se difunde uma informação; transparência equivale a vitrine de uma loja – não faz a disseminação da informação ao público, mas permite às pessoas verem a tudo dentro dela.
Enquanto a publicidade visa a difusão de informações, a transparência retira os véus que podem existir sobre a atividade pública. Existem atividades administrativas que não devem ser objeto de difusão de informações, no sentido do atingimento da população em geral, mas devem estar disponíveis a quem desejar obtê-las. A transparência é outro âmbito do princípio da publicidade.
O principal fundamento está no artigo 5º, XXXIII, que obriga o poder público a prestar informações, corolário do princípio da publicidade. Essa norma constitucional, que veicula um instrumento para o acesso ao direito fundamental de liberdade de informação, permite que qualquer pessoa tenha acesso aos documentos e informações que estão na posse do setor público.
Verifica-se que nem sempre o controle público é suficiente para controlar o próprio Estado. Em razão desses e de outros fatores, surge a necessidade do controle social, que, ao lado do controle público, visa subsidiá-lo e, muitas vezes, supri-lo, podendo mesmo funcionar contra ele.
Por controle social deve-se entender o controle exercido diretamente por toda a sociedade, e não por meio do Estado. Uma dessas fórmulas se dá pela inserção de pessoas representativas da sociedade nos órgãos decisórios para que o povo esteja inserido nessas deliberações e no controle dos atos do Estado.
Em diversos âmbitos foram determinados controles sociais pela Constituição, como pode ser visto: a) No artigo 204, II, quando possibilita a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações referentes à seguridade social, em todos os níveis; b) No artigo 216-A, X, quando estabelece a democratização dos processos decisórios referentes às atividades culturais, com participação e controle social; c) No artigo 173, §1º, I, quando determina que a lei tratará do estatuto jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista e menciona que deverá ser abordada a forma de sua fiscalização pelo Estado e pela sociedade. Esses são alguns exemplos, que podem ser acrescidos de vários outros, espraiados pelo ordenamento jurídico.
Nem sempre a inclusão de membros da sociedade civil funciona no sistema de controle, pois a atomização dessa participação acaba por acarretar o enfraquecimento de sua atuação para as finalidades perseguidas. É usual que haja também a captura desses indivíduos pelo aparato estatal, o que a regulamentação deve dar conta de evitar.
O Decreto 8.243/2014 instituiu a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), visando regular a participação social em diversos Conselhos, tendo gerado uma reação política inaudita no Brasil, havendo mesmo quem temesse pela sovietização do Brasil caso ele fosse implementado. Foi por tal motivo que, em 2019, esse Decreto foi revogado pelo Decreto 9.759, de 11/04/19, sem que nenhuma política de controle social tenha sido implementada em substituição.
É chegada a hora de reavivar o controle social da atividade estatal em nossa república, a fim de que cumpra seu papel ao lado, e muitas vezes contra o controle público.
Esse trabalho foi apresentado na 9ª edição do Encontro do Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Cosud), realizado na Universidade de São Paulo, na cidade de São Paulo, nos dias 19 e 21 de outubro de 2023, referente ao Grupo de Trabalho sobre Transparência, Controladoria e Ouvidoria, sendo que parte dele compõe o livro Orçamento Republicano e Liberdade Igual— Ensaio sobre Direito Financeiro, República e Direitos Fundamentais no Brasil (Belo Horizonte: Editora Fórum, 2018), da lavra do primeiro autor deste texto.
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a instituição financeira responde pelo vazamento de dados pessoais sigilosos do consumidor, relativos a operações e serviços bancários, obtidos por criminosos para a prática de fraudes como o “golpe do boleto”. Nesse tipo de estelionato, golpistas se passam por funcionários de um banco e emitem boleto falso para receberem indevidamente o pagamento feito pelo cliente.
O colegiado reformou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e restabeleceu a sentença que condenou um banco a declarar válido o pagamento realizado por meio de boleto fraudado e devolver à cliente parcelas pagas indevidamente em contrato de financiamento.
De acordo com o processo, a cliente encaminhou e-mail para o banco solicitando informações sobre como quitar a operação. Dias depois, ela foi contatada pelo WhatsApp por uma suposta funcionária da instituição e recebeu um boleto no valor de cerca de R$ 19 mil. A cliente pagou o boleto, mas depois descobriu que o documento havia sido emitido por criminosos.
Para o TJSP, o golpe contra a cliente foi aplicado por meio de negociações realizadas de maneira informal. O tribunal também considerou que as informações do boleto falso divergiam dos dados constantes do contrato de financiamento e que a consumidora falhou em seu dever de segurança e cautela.
Bancos respondem por danos causados em fraudes praticadas por terceiros
A ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso da cliente, explicou que, nos termos da tese fixada no julgamento do Tema Repetitivo 466 – que contribuiu para a edição da Súmula 479 do STJ –, as instituições bancárias respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno em caso de fraudes praticadas por terceiros, tendo em vista que a responsabilidade decorre do risco da atividade.
Em relação aos chamados golpes de engenharia social, a relatora comentou que os criminosos costumam conhecer os dados pessoais das vítimas e, com base neles, usam técnicas psicológicas de persuasão – a exemplo da simulação de um atendimento bancário verdadeiro – como forma de atingir seu objetivo ilícito.
“Assim, para imputar a responsabilidade às instituições financeiras, no que tange ao vazamento de dados pessoais que culminaram na facilitação de estelionato, deve-se garantir que a origem do indevido tratamento seja o sistema bancário. Os nexos de causalidade e imputação, portanto, dependem da hipótese concretamente analisada”, ponderou a ministra.
Nesse cenário, a ministra apontou que não poderia ser imputada ao banco a responsabilidade exclusiva no caso de vazamento de dados cadastrais básicos, como nome e CPF, porque essas informações podem ser obtidas por fontes alternativas. Por outro lado, caso os dados do consumidor sejam vinculados a operações e serviços bancários, a instituição tem o dever de armazenamento e proteção, sob pena de eventual vazamento configurar falha na prestação do serviço.
LGPD também prevê responsabilidade por falhas de segurança
Nancy Andrighi destacou que, nos termos do artigo 44 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), o tratamento de dados será irregular quando não fornecer a segurança que o titular espera, considerando-se o resultado e os riscos desse tratamento.
No caso analisado, a ministra reforçou que, segundo as informações dos autos, os criminosos detinham dados pessoais da cliente referentes às suas operações bancárias. A relatora também apontou que, embora o boleto falso tivesse diferenças em relação aos documentos verdadeiros, não se espera que uma pessoa comum seja sempre capaz de identificá-las.
Segundo a relatora, algumas circunstâncias pesam a favor da responsabilização do banco: o estelionatário tinha conhecimento de que a vítima era cliente da instituição financeira, sabia que ela encaminhou e-mail com a finalidade de quitar sua dívida e também possuía dados relativos ao financiamento. Essas informações, sobretudo os dados pessoais bancários, são sigilosas, e seu tratamento incumbe à entidade bancária com exclusividade, concluiu a ministra ao restabelecer a sentença.
A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a lei não impõe a necessidade de intimação do investigado, mesmo por edital, para que ele justifique o descumprimento das condições pactuadas em acordo de não persecução penal (ANPP). Para o colegiado, não é o caso de aplicar por analogia o artigo 118, parágrafo 2º, da Lei de Execução Penal, pois esse dispositivo diz respeito a pessoas presas.
O entendimento foi estabelecido pela turma julgadora ao manter acórdão do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) que negou o pedido da defesa para que o investigado fosse intimado por edital e pudesse se justificar antes da rescisão do ANPP. Após firmar o acordo com o Ministério Público, ele não foi mais localizado para dar cumprimento aos seus termos.
Segundo o processo, o investigado, em audiência, tomou conhecimento dos termos do acordo e das consequências do seu descumprimento. Posteriormente, o juízo expediu intimação para que ele iniciasse o cumprimento do ANPP, porém, em duas diligências, o oficial de justiça foi informado de que o investigado não morava no endereço fornecido. Também foi infrutífera a tentativa de intimação por telefone.
Em razão disso, a defesa pediu que fosse feita a intimação por edital, mas o TJGO negou. Em habeas corpus dirigido ao STJ, a defesa alegou que a intimação por edital seria válida e que não foram esgotados os meios de localização do investigado.
Violação das condições definidas no ANPP resulta na revogação do benefício
O relator do habeas corpus, desembargador convocado Jesuíno Rissato, destacou que, com a não localização do investigado, ficou configurado o descumprimento das condições impostas no ANPP, especialmente o dever de comunicar eventual mudança de endereço ou telefone.
Segundo o relator, o artigo 28-A, parágrafo 10º, do Código de Processo Penal estabelece que o descumprimento do ANPP resulta na revogação do benefício, devendo o Ministério Público comunicar a situação ao juízo, para fins de rescisão do acordo e oferecimento da denúncia.
Além disso, Rissato observou que o parágrafo 9º do artigo 28-A exige que a vítima seja intimada da homologação do acordo e de seu eventual descumprimento, mas não há determinação legal para que o investigado seja intimado para se justificar quando não cumpre as condições definidas pelo Ministério Público.
“Sendo evidenciado, assim, o descumprimento do acordo de não persecução penal, e inexistindo qualquer ilegalidade no indeferimento da intimação editalícia, tampouco sendo caso de aplicação analógica do artigo 118, parágrafo 2º, da Lei de Execuções Penais (visto que o paciente não se encontra em situação de execução de pena privativa de liberdade), não se constata ofensa à garantia da ampla defesa e do contraditório, mesmo porque a defesa manifestou-se previamente sobre os fatos”, concluiu o relator ao negar o pedido de habeas corpus.
A diversidade no modo de execução de delitos da mesma espécie impede a aplicação da regra do crime continuado (artigo 71 do Código Penal), devendo ocorrer a somatória das penas prevista no concurso material (artigo 69).
Com essa fundamentação, o ministro Joel Ilan Paciornik, do Superior Tribunal de Justiça, deu provimento ao agravo em recurso especial interposto por um promotor de Justiça mineiro e elevou a pena de um homem condenado por ameaçá-lo.
O acusado fez as ameaças por cartas e por meio eletrônico porque discordou da atuação funcional da vítima em demandas judiciais e administrativas do seu interesse. Por esse motivo, foram imputados ao réu quatro delitos de coação no curso do processo.
“Conforme ficou comprovado nos autos, dois dos delitos foram praticados por meio de cartas enviadas à vítima, e outros dois foram praticados através de rede social. (…) Nesse contexto, considerando a diversidade no modo de execução dos crimes, fica impedido o reconhecimento da continuidade delitiva”, anotou o ministro.
Ao substituir a regra do crime continuado pela do concurso material, Paciornik elevou a dosimetria da pena do réu pelos quatro crimes de coação no curso do processo para o total de três anos, dez meses e 20 dias de reclusão, em regime inicial fechado.
Segundo acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), “as coações no curso do processo foram cometidas de maneira semelhante, consubstanciada no envio de mensagens, pouco importando se isso se deu por meio físico ou eletrônico”.
Devido a esse entendimento, a corte mineira manteve a sentença que reconheceu o crime continuado em relação às quatro coações no curso do processo e fixou a pena total do acusado em dois anos e um mês de reclusão, em regime inicial fechado.
Consta dos autos que as mensagens eletrônicas ameaçando o promotor foram dirigidas ao pastor da igreja frequentada pela vítima. O réu ainda criou um perfil falso para publicar postagens ameaçadoras ao representante do MP. Devido às ameaças, o ofendido precisou trocar a escola dos filhos e alterou a sua rotina de casa e do trabalho.
O promotor interpôs o agravo porque o TJ-MG invocou a Súmula 7 do STJ para não admitir o seu recurso especial. Diz a súmula que “a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”.
Porém, Joel Paciornik afastou a suposta barreira alegada pela corte mineira. “A análise do recurso prescinde do reexame de fatos e provas. Cuida-se a hipótese de revaloração do conjunto fático-probatório dos autos, pois os fatos são incontroversos.”
No mesmo processo, o réu foi condenado em primeiro grau por calúnia e injúria, com penas, respectivamente, de nove meses e dez dias de detenção e de dois meses e dez dias de detenção, ambas em regime semiaberto. O TJ-MG e o STJ mantiveram essas sanções.
O mês de setembro consolidou uma virada na Justiça do Trabalho. Corroborando decisões que foram assinadas em primeira instância e em um tribunal regional, a 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho reconheceu o vínculo empregatício de um entregador com a Uber (Uber Eats), o que resultou em um desempate no TST. Agora, a 2ª, a 3ª, a 6ª e a 8ª Turmas da corte superior reconhecem esses trabalhadores como empregados dos aplicativos, enquanto a 1ª, a 4ª e a 5ª Turmas rechaçam o vínculo.
A razão dessa mudança de entendimento está no amadurecimento de dois conceitos que têm aparecido com mais frequência nas jurisprudências trabalhistas: a gamificação do trabalho e a subordinação algorítmica. O primeiro conceito consiste no uso de técnicas de jogos para gerir a relação laboral (metas, premiações etc.); já o segundo trata da substituição da pessoa física responsável por dar ordens (subordinação clássica) pelo algoritmo, que, na prática, funciona como chefe do trabalhador.
Em setembro, magistrados assinaram, com base nesses conceitos, duas decisões sem precedentes na Justiça brasileira, ordenando que as empresas Uber e Rappi registrassem os seus colaboradores no Brasil de acordo com as regras trabalhistas. A primeira veio da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo e a segunda, do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (Grande São Paulo e litoral paulista). As duas foram provocadas por ações civis públicas originadas a partir de extensos inquéritos produzidos pelo Ministério Público do Trabalho, por isso sua extensão nacional.
Já a decisão do TST, assinada no último dia 27 pela desembargadora convocada Margareth Rodrigues Costa, foi provocada por um caso individual. Todas elas carregam argumentos semelhantes, que, de alguma forma, subvertem a maneira como as empresas dizem operar no Brasil (leia, ao final desta reportagem, o posicionamento da Uber).
Por unanimidade, os ministros da 2ª Turma do TST seguiram a fundamentação de Margareth Costa, que diz que a Uber pune os motoristas com bloqueio, coloca-os em uma espécie de ranqueamento de corridas, estabelece as demandas para cada profissional e remunera-os diretamente, “tudo de acordo com as condições empresariais estipuladas unilateralmente por ela”.
“Verifica-se, no âmbito da programação inscrita no software do aplicativo, que o modelo de gestão do trabalho das referidas empresas orienta-se, em um processo denominado de gamificação, (…), na qual trabalhadores são estimulados e desestimulados a praticarem condutas, conforme os interesses da empresa-plataforma, a partir da possibilidade de melhorar seus ganhos e de punições indiretas, que respectivamente reforçam condutas consideradas positivas e reprimem condutas supostas negativas para a empresa, em um repaginado exercício de subordinação jurídica”, diz a relatora em sua argumentação.
A cizânia na Justiça do Trabalho pode culminar em intervenções do Supremo Tribunal Federal, que, a despeito de não ter competência para tal, tem se posicionado como a última instância em questões trabalhistas, influindo nas decisões sobre vínculo. Além disso, um grupo de trabalho interdisciplinar discute uma regulamentação específica para esses trabalhadores.
À revista eletrônica Consultor Jurídico, no entanto, procuradores do Trabalho, professores e outros especialistas no assunto dizem que, caso seja formulada, uma nova norma deve partir dos direitos já consagrados pela Convenção das Leis do Trabalho (CLT), e não da redução destes.
“O debate de outra classificação, um meio termo, um terceiro tipo, é prejudicial. Nós precisamos de regulação específica para questões específicas: controle digital, dados e gamificação. A classificação é clara, só não é aplicada pela legislação que já temos”, diz Viviane Vidigal, advogada, professora de Direito do Trabalho e estudiosa da gamificação, com teses de mestrado, doutorado e livros de doutrina que abordam o tema.
“A subordinação jurídica é um conceito que tem dinâmica. Nós o conceituamos à luz de fatos contemporâneos. Lá atrás, quando a subordinação é conceituada pela primeira vez, a gente estava olhando para uma outra forma de organizar o trabalho: o fordismo. Fábricas, uniformes, chefe dando ordem… Isso porque não havia outra possibilidade de fazer valer as regras de uma empresa. Agora, a tecnologia tirou a necessidade de uma pessoa física dando ordens para que os funcionários cumpram as regras.”
Para a professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), doutora em Direito pela UFMG e servidora da Justiça do Trabalho Ana Carolina Paes Leme, hoje “a subordinação é gamificada”.
“A ordem não é direta, não se fala para o motorista do Rio de Janeiro: ‘Vá à praia do Leblon’. Eles falam: ‘Hoje está sol, você vai deixar de ir lá?’. Ou: ‘70% da base foi para o Jardim Botânico no evento X, você vai ficar de fora?’. Então não é uma ordem direta, é uma ordem gamificada. Isso tudo é subordinação, isso são ordens. Tem cara de que não é ordem, mas, na verdade, induz ao comportamento.”
O inquérito conduzido pelo MPT que culminou na condenação na 4ª Vara de São Paulo mostrou ainda que a Uber precifica os pagamentos (que eles chamam de repasses) de acordo com o salário mínimo brasileiro. Além disso, oito em cada dez motoristas, conforme já publicado por várias pesquisas acadêmicas, têm como renda principal o trabalho no aplicativo, o que afasta as argumentações de liberdade e de que a prática é um complemento financeiro.
Disse um ex-gerente-geral da Uber no Rio de Janeiro, conforme mostrado no inquérito contra a empresa: “Há um time de precificação global na matriz; a cidade realiza planilha propondo determinado preço, que deve ser aprovado pelo presidente global; a planilha leva em conta distância, número de viagens por hora, trânsito, salário mínimo, combustível e o valor do carro e respectiva depreciação; que também é comparada a tarifa com as praticadas pelos táxis; que quanto mais barato, mais o negócio cresce”.
Dano à arrecadação e falsa liberdade A decisão da 4ª Vara paulistana estabeleceu uma multa bilionária à Uber a título de danos morais coletivos, o que gerou ruído no Poder Judiciário, tendo em vista que é uma sentença de primeira instância. A condenação, no entanto, partiu de uma investigação do MPT que já dura sete anos, e leva em consideração fatores como a ausência de arrecadação por parte do Estado nesse período (incluindo valores previdenciários) e a prática de fraude trabalhista por parte da Uber.
A atuação do MPT nesse terreno é ampla. Em novembro de 2021, quando o órgão ajuizou a ação que no mês passado resultou em condenação na Justiça do Trabalho de São Paulo, corriam 625 inquéritos contra aplicativos, mais de um terço deles contra a Uber.
De acordo com os estudiosos entrevistados pela ConJur, as decisões favoráveis aos aplicativos tinham como base duas alegações: não há subordinação a uma pessoa física, portanto esta não resta configurada em nenhuma hipótese; a empresa não presta serviços de transporte, mas de tecnologia, conduta que é apontada como fraudulenta pelo MPT. A companhia ainda alegou em suas argumentações que não contrata os motoristas, mas que eles a contratam.
A análise dos dados produzidos pelas próprias empresas, que estão sob sigilo no processo, foi fundamental para mudar essas percepções, segundo o procurador do MPT Renan Kalil, que chefia a Coordenadoria Nacional de Combate à Fraude nas Relações de Trabalho (Conafret) e atua na ação.
“Não existe liberdade. Estamos diante da empresa impondo regras que o motorista deve cumprir, e se ele não cumprir há consequências, que afetam diretamente seu trabalho. Dizer que é um trabalho apenas porque a pessoa pode escolher quando liga o aplicativo é um pouco distante do que acontece de fato a partir do momento em que você está conectado trabalhando.”
No caso que envolve a Rappi, cuja origem também é um inquérito conduzido por Kalil, as informações fornecidas pela empresa mostram que os entregadores têm pontuações e, a partir desses números, os trabalhos são distribuídos. Para receber mais trabalhos em determinado bairro no horário de pico, é necessária determinada quantidade de pontos. Esses pontos são acumulados a partir das circunstâncias de cada entregador. Na prática, os trabalhadores não sabem como funciona essa distribuição.
“É uma série de regras que eles colocam para te fazer trabalhar conforme os interesses deles, de direcionamento de entregadores.”
Em relação à possível regulamentação, Kalil diz que “o ponto de partida deveriam ser os parâmetros de proteção trabalhistas que temos hoje em dia”. O procurador cita o artigo 6º da CLT, parágrafo único, implementado na reforma de 2011, que, em tese, já deveria ser utilizado para reconhecimento de vínculo:
“Artigo 6º — Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego. Parágrafo único — Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.
Sobre as experiências de outros países (na Alemanha, por exemplo, os motoristas de aplicativos são tratados como empregados formais), Kalil cita algumas normativas aprovadas na Espanha, que colocam regras sobre o algoritmo, inclusive sobre sua transparência, como dispositivos interessantes para serem aplicados no Brasil. “A capacidade de produzir provas do trabalhador e da plataforma é muito discrepante. A plataforma tem todos os dados, organiza o negócio, ela está melhor posicionada para argumentar que há outra relação que não a de emprego.”
Também procurador do MPT e membro do grupo de trabalho que discute o tema em Brasília, Ilan Fonseca foi, por quatro meses, motorista da Uber para escrever sua tese de doutorado. Ele observou empiricamente as estratégias da empresa para tentar burlar o vínculo, além de outras situações que configuram subordinação.
“A Uber consegue fiscalizar não apenas a velocidade do carro, o trajeto do carro, mas até o comportamento do motorista dentro do carro.” Ele afirma que toda a relação de trabalho se dá nos moldes tradicionais, com recompensas, caso as metas sejam cumpridas, e punições, caso não sejam.
“Se a ordem é dada, ela é supervisionada. Se não é cumprida, aí você vai ter, na sequência, esse poder punitivo. Esse poder punitivo virá na forma de bloqueios, de penalidades impostas no rendimento desse trabalhador, na impossibilidade de você ascender profissionalmente. A Uber trabalha com planos de carreira, onde, à medida em que você vai cumprindo mais tarefas, você vai subindo de posto, vai podendo se posicionar em aeroportos, vai podendo ter acesso a melhores corridas”, conta Fonseca.
No fim, diz o procurador, “se você é um trabalhador que não atende aos interesses da empresa, você pode vir a ser desligado, e o que a gente tem visto é que essas condições geralmente não têm nenhuma transparência. Então, esses requisitos, que para o Direito de Trabalho são muito tradicionais, eles se encontram todos presentes nessa relação entre aplicativos e motoristas”.
No caso dos bloqueios, a Justiça já reconheceu em várias decisões que a Uber não explica o porquê das punições, ou seja, não há transparência em relação às restrições impostas aos trabalhadores. Essa prática reforça a ideia de que a empresa tem poder de punição semelhante à demissão sem justa causa, traço das relações de emprego celetistas.
A estratégia, de acordo com a pesquisadora Viviane Vidigal, faz parte de um organograma para mascarar o vínculo. Depois da subordinação, a empresa usa sua atividade-fim para tentar burlar a CLT.
“As empresas se afirmam como da área de tecnologia, para afastar a sua outra atividade-fim. Por quê? Parte da magistratura sabe que subordinar-se é estar na atividade-fim da empresa, integrado a seus fins. Se eu entendo que a empresa é de tecnologia e minha atividade é de transporte, eu não me enquadro como empregado atrelado à atividade-fim. Portanto, a subordinação estrutural está afastada, e isso aparece nas decisões expressamente.”
Outro lado Em nota enviada à ConJur, a Uber diz que “não usa ‘gamificação’ nem aplica ‘punições’ para obter ‘subordinação algorítmica’, tese interpretativa sem qualquer respaldo na legislação e que não se sustenta ao ser confrontada com a realidade”.
“A Uber esclarece que vai recorrer da decisão proferida pela 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, que representa entendimento isolado e contrário ao de outros casos já julgados pelo próprio Tribunal, pelo STJ e pelo STF. A empresa considera que o acórdão da 2ª Turma não avaliou adequadamente o conjunto de provas produzido no processo e se baseou, sobretudo, em posições doutrinárias de fundo ideológico que já foram superadas, inclusive pelo Supremo”, diz a nota.
“As pessoas que se cadastram na plataforma são trabalhadores independentes que utilizam a plataforma de intermediação digital da Uber para gerar renda com autonomia e flexibilidade. Escolhem livremente os dias e horários de uso do aplicativo, se aceitam ou não viagens/entregas e, mesmo depois disso, ainda existe a possibilidade de cancelamento. Não existem metas a serem cumpridas, não se exige número mínimo de viagens/entregas, não existe superior hierárquico nem encarregado de supervisão do serviço, não há obrigação de exclusividade, não existe controle ou determinação de cumprimento de jornada mínima”, continua a empresa.
Processo 1001416-04.2021.5.02.0055 (Rappi) Clique aqui para ler o acórdão Processo TST-RR-536-45.2021.5.09.0892 (Uber Eats) Clique aqui para ler o acórdão Processo 1001379-33.2021.5.02.0004 (Uber) Clique aqui para ler a decisão
Fonte: Conjur
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