Barroso adia para novembro julgamento que pode mudar correção do FGTS

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, decidiu nesta segunda-feira (16) adiar para 8 de novembro a retomada do julgamento sobre a legalidade do uso da Taxa Referencial (TR) para correção das contas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

O adiamento foi anunciado após reunião de Barroso com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e outros ministros do governo federal. A retomada da análise do processo estava prevista para quarta-feira (18)

De acordo com Barroso, o adiamento vai permitir que a União possa apresentar novos cálculos sobre a questão. Durante a reunião, o presidente do STF reiterou que considera “injusta” a correção do fundo por índice menor que a poupança. 

Além de Haddad, também participaram da reunião os ministros das Cidades, Jader Filho, e do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, além do advogado-geral da União, Jorge Messias, e a presidente da Caixa, Rita Serrano. 

O julgamento sobre a correção do FGTS foi suspenso em abril deste ano por um pedido de vista apresentado pelo ministro Nunes Marques. Até o momento, o placar da votação está 2 a 0 pela inconstitucionalidade do uso da TR para correção das contas do FGTS. Pelo entendimento, a correção não pode ser inferior à remuneração da poupança.

Na abertura do julgamento, a Advocacia-Geral da União (AGU) também alertou que eventual decisão favorável à correção poderá provocar aumento de juros nos empréstimos para financiamento da casa própria e aporte da União de cerca de R$ 5 bilhões para o fundo.

Entenda

O caso começou a ser julgado pelo Supremo a partir de uma ação protocolada em 2014 pelo partido Solidariedade. A legenda sustenta que a correção pela TR, com rendimento próximo de zero, por ano, não remunera adequadamente os correntistas, perdendo para a inflação real.

Criado em 1966 para substituir a garantia de estabilidade no emprego, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço funciona como uma poupança compulsória e proteção financeira contra o desemprego. No caso de dispensa sem justa causa, o empregado recebe o saldo do FGTS, mais multa de 40% sobre o montante.

Após a entrada da ação no STF, leis começaram a vigorar, e as contas passaram a ser corrigidas com juros de 3% ao ano, o acréscimo de distribuição de lucros do fundo, além da correção pela TR.

Pelo governo federal, a AGU defende a extinção da ação. No entendimento do órgão, as leis 13.446/2017 e 13.932/2019 estabeleceram a distribuição de lucros para os cotistas. Dessa forma, segundo o órgão, não é mais possível afirmar que o emprego da TR gera remuneração menor que a inflação real.

Fonte: Agência Brasil

Aduana em tempo de mudanças globais

Nos dias 28 e 29 de setembro, a International Customs Law Academy (Icla) promoveu sua XVI Reunião Mundial de Direito Aduaneiro. Da presente edição [1], realizada em Berlim, na Universidade de Humboldt [2], participaram representantes de mais de 30 países que esgotaram as inscrições e lotaram o auditório da prestigiosa anfitriã. O encontro marcou o retorno dos eventos presenciais da academia e teve como título “Aduana em tempo de mudanças globais”.

A reunião foi dividida entre as cerimônias de abertura, encerramento e cinco painéis temáticos com palestrantes experts de nacionalidades distintas e representação plural, dentre eles, membros da aduana, de associações civis, universidades e do setor privado. Os temas dos painéis foram muito bem escolhidos permitindo uma visão ampla do cenário atual do comércio internacional, suas implicações aduaneiras, incertezas e inseguranças, o status de implementação do Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC), da revisão da Convenção de Quioto Revisada (CQR), uma reflexão sobre temas aduaneiros clássicos (valoração, classificação, origem, infrações e penalidades) e um painel inovador sobre a doutrina e bibliografia aduaneira.

Alguns temas abordados são presentes em discussões e seminários também entre nós. Dentre esses, Sara Armella [3] discorreu sobre a valoração aduaneira e decisões da Corte Europeia de Justiça e da Suprema Corte Italiana. A jurista italiana destacou a posição das cortes europeias sobre o uso de banco de dados da Aduana para análise de risco e início de fiscalização sobre valoração aduaneira. Para tal finalidade, assinalou, as fontes são legítimas; não o sendo, porém, como fontes únicas a fim de se redefinir o valor aduaneiro. Ao contrário, ser a fonte exclusiva para esse fim é rechaçado pela jurisprudência europeia, cabendo à autoridade aduaneira requisitar informações do importador, assegurando-lhe garantias para que haja sua participação e que possa produzir provas em favor do valor declarado [4].

No mesmo painel, Massimo Fábio [5] discorreu sobre a valoração aduaneira e os preços de transferência, tema atual e debatido na pauta brasileira [6]. O palestrante destacou o volume de operações entre empresas do mesmo grupo, os distintos objetivos de arrecadação relacionados à valoração aduaneira e aos preços de transferência, embora ambas as autoridades competentes busquem o cumprimento do princípio arm’s length. Ressaltou a relevância do estudo sobre preços de transferência para a valoração aduaneira, quando ele traz informações sobre as circunstâncias da venda. Apresentou decisão da Suprema Corte Italiana que reconheceu o direito de restituição de tributos aduaneiros pagos pelo importador sempre que se verifique que, “por erro do interessado e não por escolha”, for registrado um montante de direitos aduaneiros não devidos “no momento do pagamento” e desde que os fatos que deram origem ao pagamento indevido não resultem de “fraude do interessado” [7].

Infrações e penalidades aduaneiras e sua harmonização a nível internacional foi tema das reflexões feitas por Fernanda Inga [8] e Pablo Villegas Landázuri [9]. O tema foi apresentado e introduzido sob a ótica do Gatt, do AFC e da CQR. Foram indicados desafios e oportunidades de uma uniformização internacional na matéria sancionatória, abordando a responsabilidade objetiva e subjetiva, as sanções comumente aplicadas (multas, perdimento e restrições administrativas, como não habilitações e advertências), e defendida a ampla aplicação da proporcionalidade e da razoabilidade nos sistemas sancionatórios. Verificamos dificuldades comuns nessa temática, merecendo sua contínua e aprofundada reflexão, urgindo alterações na legislação aduaneira pátria [10].

Temática atual e relevante foi conduzida por José Rijo. Sob o título “As interpretações das Cortes Nacionais sobre o critério de transformação substancial”, o estudioso trouxe o conceito da transformação substancial na OMC, na OMA e na UE, os desafios enfrentados para harmonização do tema, destacando, entre outros, o desacordo sobre normas para alguns setores (café, pescado, produtos têxteis, máquinas) e as questões práticas complexas que geram insegurança e imprevisibilidade nos agentes econômicos. José Rijo relatou pesquisa jurisprudencial apresentando dez decisões de diferentes jurisdições (União Europeia, Portugal, Brasil, Venezuela, Argentina e Estados Unidos) nas quais se divergiu sobre ter ocorrido, ou não, a transformação, ou elaboração substancial, para aplicação das regras de origem. Dentre elas, uma proferida pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região [11], na qual se decidiu que a importação de cefradina originária de Porto Rico e produzida com componentes originários da Alemanha, Itália e Irlanda preencheu o conceito de alteração substancial, eis que, nessa decisão, ela foi entendida como aquilo que confere nova individualidade à mercadoria. Ao término, compartilhou algumas dúvidas e inquietudes provocativas questionando como ficará a questão da transformação substancial vs inteligência artificial e as impressões 3D, entre outras questões.

Sob o título “Evolução e futuro do Sistema Harmonizado: é necessário uma nova nomenclatura?”, Enrique Herón Jiménez [12] discorreu sobre o Sistema Harmonizado de Designação e Codificação de Mercadorias, destacando sua utilização por 212 países, sendo 161 deles signatários do tratado. Registrou que a sua primeira versão, em 1988, contava com 5.019 descrições de seis dígitos, contando, a atual 7ª Emenda com 5.609 descrições. Após discorrer sobre o histórico de criação das nomenclaturas, desde 1931, até o início dos trabalhos para criação do vigente Sistema Harmonizado, trouxe à reflexão a visualização de uma possível nova nomenclatura do Sistema Harmonizado, apresentando observações de que o atual sistema vigora há 35 anos em um ciclo semelhante às nomenclaturas que o antecederam; que os progressos alcançados nos recentes ciclos de revisão com alterações do SH viabilizariam uma nova estrutura para o mesmo, sendo necessário destacar não haver continuidade na ordem sistemática dos códigos numéricos devido aos títulos e subtítulos suprimidos, criando-se lacunas na numeração da nomenclatura.

Outras destacadas apresentações trataram da reforma aduaneira na União Europeia e da modernização da Convenção de Quioto Revisada, sendo elas conduzidas, respectivamente, por Matthias Petschke [13] e Achim Rogmann. Para enfrentar o aumento vertiginoso de declarações de pequeno valor via cross-border e-commerce registradas em 2022 (1 bilhão), a ampliação de padrões e regras a serem aplicadas pela Aduana da UE e a complexidade da descentralização dos sistemas informatizados dos membros, o palestrante apresentou as mudanças a serem implantadas e seus objetivos. Dentre esses citou: reduzir os custos de compliance através de procedimentos mais simples, implementar um regime de e-commerce “tailor-made“, aumentar a proteção do mercado comum através do gerenciamento de riscos e criar uma verdadeira união aduaneira agindo como uma só nas fronteiras. Um dos pontos mais relevantes da reforma é a centralização das informações, haja vista, atualmente, serem 111 sistemas informatizados em funcionamento nos 27 Estados membros. Não existe uma base de dados única, nem uma supervisão integrada das cadeias de valor, prejudicando a gestão de riscos.

Sobre a modernização da CQR, o professor Achim Rogmann [14] relatou a recente adesão do 134º membro, qual seja a República de Gâmbia. Ao analisar a estrutura da CQR, observou que nenhum dos seus Anexos Específicos teve mais do que 50 adesões e que até hoje a UE não aderiu a nenhum deles. Em 2016 foi lançada uma iniciativa para revisar a CQR em razão das rápidas mudanças no cenário do comércio internacional e do objetivo de mantê-la como “flagship convention and a blueprint for modern and efficient customs procedures in the 21st century”. Os trabalhos têm sido intensos, com a participação do setor privado e da academia. Já foram apresentadas 186 propostas abrangendo o texto da CQR (Body), o Anexo Geral e os Anexos Específicos, contemplando 37 conceitos. Os que receberam mais propostas de alteração foram: controle aduaneiro (16), regras de origem (12), uso de tecnologias avançadas (11) e o AEO (9). Em conclusão, registrou que a minuta atual demonstra: (a) alinhamento parcial com o AFC, (b) integração com outros instrumentos da OMA, (c) maior inclusão de aspectos presentes no Gatt e (d) manutenção da estrutura atual. Afirmou ser esperada uma compilação dos potenciais projetos de textos pela OMA até 12/2023 e o início das alterações formais para a primavera europeia de 2024.

Um inovador painel foi o que trouxe a doutrina e bibliografia aduaneira, conduzida por Enrika Naujoké e Rosaldo Trevisan. As mais recentes obras aduaneiras produzidas por acadêmicos, ou coordenadas por membros da academia, e outras publicadas nos últimos anos foram destacadas e muito bem comentadas pelos palestrantes.

No painel sobre novas legislações, um tema de relevância e aplicação prática para exportadores de todo o mundo, inclusive brasileiros, especialmente de cimento, eletricidade, fertilizantes, ferro e aço e alumínio. Trata-se do CBAM (carbon border adjustment mechanism), através do qual a UE procura corrigir, de forma mais eficaz, o risco das empresas deixarem de produzir internamente produtos responsáveis por emissão de gases de efeito estufa (GEE) e se desloquem para países em que não exista regulação sobre a matéria, ou haja menor atenção com o tema ambiental. O objetivo é assegurar a equivalência entre o preço do carbono nas mercadorias produzidas na UE e as importadas. O tema foi exposto por Maryanne Kamau e Iain Sandford [15]. O Regulamento da UE no 956/2023 entrou em vigor em 17/05, tendo sua aplicação se iniciado no dia 1º de outubro para um período de transição que vai até 31/12/2025, entrando em sua segunda fase a partir de 1º/01/2026. Alguns conceitos e previsões importantes sobre o CBAM foram apresentados como, por exemplo, o que são emissões diretas e indiretas. As primeiras são aquelas provenientes dos processos de produção de bens, incluindo emissões provenientes do aquecimento e refrigeração consumidas durante a produção e as indiretas provenientes da produção de eletricidade, que é consumida durante os processos de produção de bens, independentemente do local da produção da eletricidade consumida.

No período de transição, de 1º/10/2023 a 31/12/2025, a obrigação das empresas na UE é de enviar relatórios trimestrais contendo informações sobre quantidade total de cada tipo de bem importado e o total de emissões diretas e indiretas incorporadas. Na segunda fase surgem obrigações pecuniárias como de comprar e manter certificados CBAM por bens importados a depender da quantidade total de emissões incorporadas. O não cumprimento das obrigações permitirá a imposição de penalidades aos importadores infratores.

O CBAM é uma medida que poderá provocar questionamentos quanto a sua observância ao Gatt. Na fase 1, de exigência de apresentação dos relatórios, trata-se de requisitos onerosos, incluindo custos e riscos de penalidades, o que pode restringir o comércio de produtos e coloca em questão a observância ao Artigo XI:1 do Gatt/1994. Na precificação da CBAM, há que se levar em consideração os Artigos I e III do GATT/1994 que preconizam, respectivamente, o princípio da nação mais favorecida e do tratamento nacional, no tocante à tributação e regulamentação interna. A discussão passa também pela possibilidade, ou não, de enquadramento do CBAM no regime de exceções do Artigo XX do Gatt, lembrando que tais medidas não podem resultar em discriminações arbitrárias e injustificadas, ou em barreiras não-tarifárias com fins protecionista, sob pena de membros da OMC poderem recorrer ao seu Órgão de Resolução de Litígios. Aos exportadores brasileiros, que negociam com importadores sujeitos ao CBAM, cabe atenção às novas obrigações que os atingirão, avaliando efeitos e ônus.

Ao analisarmos os temas acima, podemos notar como os fatos aduaneiros têm seu universo próprio, envolvendo operações de entrada e saída de bens de um território aduaneiro a outro e que, cada vez mais, ampliam-se os conteúdos das normas que devem ser observadas nas fronteiras pelos intervenientes e pelas Aduanas, atingindo, inclusive, como vimos, questões ambientais.

[1] A primeira reunião promovida pela ICLA deu-se em 2005, na cidade de Guadalajara, no México. Nos anos seguintes as cidades sede foram Montevidéu, Barcelona, Cartagena, Lisboa, Belo Horizonte, Buenos Aires, Cancun, Bruxelas, Nova York, Genebra, Viña del Mar, Roma, Panamá e Sevilha.

[2] A Universidade de Humboldt é a mais antiga da Alemanha. Foi fundada em 1810 como Universidade de Berlim e fica próxima à Bebelplatz, conhecida como a Praça da Ignorância por ser o local onde Hitler, em 10 de maio de 1933, ordenou a queima de livros em perseguição a intelectuais.

[3] Professora Associada da Universidade de Bocconi.

[4] Segue trecho citado por Sara Armella do julgamento da Suprema Corte Italiana, decisão no 22.200, de 24/07/2023: “In particular, the Supreme Court has clearly ruled that any method of inductive determination of values must be based on objective and reliable surveys, referrering to the concrete case and established at the outcome of a procedure that guarantees sufficient guarantees of scientificity, extended statistical basis and assessability by judges and private operators”.

[5] Professor das Universidades de Roma e de Milão.

[6] Sobre o tema há contribuições publicadas nessa coluna escritos por Leonardo Branco: link; Liziane Meira: link, Fernando Pieri Leonardo: link. Também: LEONARDO, Fernando Pieri. Valoração aduaneira e a utilização dos preços de transferência: algumas convergências e dissonâncias, in JÚNIOR, Onofre Alves Batista e SILVA, Paulo Roberto Coimbra, coord.. Direito Aduaneiro e Direito Tributário Aduaneiro. Belo Horizonte: Letramento – Casa do Direito, 2022. p. 361 a 392.

[7] Citação do palestrante Mássimo Fabio: The Italian Supreme Court and the TP in Customs Judgment No. 7716/2013, 27th March 2013″

[8] Presidente do Instituto Equatoriano de Direito Aduaneiro.

[9] Presidente do Instituto Equatoriano de Direito Tributário.

[10] Vários artigos a respeito da temática já preencheram a coluna, entre eles recomendamos o que foi publicado por Leonardo Branco e Thális Andrade: link. Sobre o tema, publicamos: LEONARDO, Fernando Pieri. Direito Aduaneiro Sancionador à luz do AFC/OMC, da CQR/OMA e do ATEC, in PEREIRA, Cláudio Augusto Gonçalves e REIS, Raquel Segalla, coord. Ensaios de Direito Aduaneiro II. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023, p. 164-186.

[11] Disponível em: link. Acesso em 15/10/2023.

[12] Expert em classificação tarifária, foi representante da AGA – Administração Geral das Aduanas, do México, na OMA.

[13] Diretor da Comissão Aduaneira Europeia – DG TAXUD, da União Europeia.

[14] Professor. Dr. Decano da Faculdade de Direito Europeia de Brunswick, Universidade de Ciências Aplicadas da Ostfalia.

[15] Consultores em comércio internacional e aduanas.

Fonte: Conjur

Sistema acusatório: o juiz das garantias e o interesse dos juízes

O juiz das garantias, quando for introduzido no sistema inquisitorial brasileiro em vigor, deve servir — quem sabe tão só — aos juízes; quando, por evidente, deveria servir a todos. É razoável tentar explicar tal assertiva de modo a que, antes de tudo, os próprios juízes possam melhor esclarecer a situação e, depois, aderiram ao acolhimento da refundação do sistema, a fim de que se faça vivo, de fato, o sistema acusatório.

Todos, de uma maneira geral, sabem sobre as diferenças entre os sistemas processuais — muito em voga nos últimos anos — mas, agora, é preciso que não reste dúvida a respeito do tema, de modo a que eventual preconceito contra o sistema acusatório não prejudique sua efetiva implantação. Faz-se tempo, de consequência, de se unir esforços. A matéria referente ao juiz das garantias tem muito a ver com isso. 

De fato, a introdução do juiz das garantias, no ordenamento jurídico brasileiro, como se sabe, foi efetivada pela Lei n° 13.964, de 24/12/19, o chamado “pacote anticrime” que, nascendo no executivo, ganhou alterações (dentre elas as referentes ao juiz das garantias) na Câmara dos Deputados, como obra de uma comissão ali formada.

Era, de certa forma, uma aspiração antiga da doutrina democrática do processo penal, porque o instituto sempre esteve vinculado ao sistema acusatório, e por ele se lutava e luta até hoje. Estava previsto, antes, de lege ferenda, nos artigos 15 a 18, do PLS n° 156/09, o projeto de reforma global do Código de Processo Penal.

Parecia, com a previsão legal, que se estava dando o passo mais importante para a implantação do único sistema processual penal compatível com a Constituição da República. Não era uma refundação propriamente dita porque se tratava de uma reforma parcial mas, mesmo assim, um substancioso primeiro passo. Admitia-se que “o processo penal terá estrutura acusatória…” (artigo 3°-A, primeira parte), ou seja, que todo o processo penal seria regido por tal sistema, de modo a que se não invocasse, contra o dispositivo da lei (plenamente compatível com a CR, repita-se), as inconstitucionalidades, incoerências e maldades do velho sistema inquisitório. Era uma luz no fim do túnel.

A esperança de se ter um processo penal democrático começou a estremecer quando instituições ligadas à magistratura (Associação de Magistrados do Brasil — AMB; e Associação dos Juízes Federais do Brasil — Ajufe), logo depois da publicação da lei, propuseram a ADI n° 6.298, com questionamentos sérios, embora improcedentes; e logo em seguida os partidos políticos Podemos e Cidadania propuseram a ADI n° 6.299, assim como o PLS a de n° 6.300. Por fim, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) propôs a ADI n° 6.305.

Todos, em ultima ratio, não queriam a implantação do juiz das garantias, o que significava manter o status quo, o qual foi mantido em face de liminar concedida pelo relator, ministro Luiz Fux, suspendendo a eficácia de vários preceitos, mormente, quanto ao juiz das garantias, aqueles do artigo 3°-A a 3°-F. A matéria só volta à pauta em junho de 2023, com a conclusão do julgamento em 23/6/23. Nele, a Corte (contra o voto do relator) decidiu, no mérito, pela constitucionalidade e obrigatoriedade do juiz das garantias, o que aparentemente garante que será implementado.

Mas a Corte, porém, mexeu de tal forma no texto referente ao juiz das garantias, com interpretações criativas e outras diatribes que acabou por criar um mostro, uma aberração jurídica. No fundo, confirmou a introdução do instituto (sabidamente ligado ao sistema acusatório), mas glosou (por “interpretações conforme” e declarações de inconstitucionalidade) os preceitos da lei para manter o atual sistema inquisitorial.

Como ele fazia sentido e era adequado aos preceitos que com ele vieram, a perspectiva — não se pode duvidar — é que a experiência não dê certo. E não pelo próprio instituto do juiz das garantias e, sim, pela manutenção do sistema inquisitorial. Por sinal, desde este ponto de vista, pode ser um fracasso como, de regra, acontece com institutos importados do sistema acusatório e alojados no sistema inquisitório, dentre outras coisas pelo fato de terem fundamentos diferentes e, portanto, uma epistemologia que não dialoga com aquela do estranho. Resta o perigo — que sempre ronda situações assim — do instituto ser acusado de não responder ao que veio, embora, com ele fora do devido lugar, seria um despautério.

Por outro lado, se ele vingar, tende a ser por motivo diverso daquele pelo qual responde a sua finalidade.

Ora, o juiz das garantias — pensado como no sistema acusatório — atua basicamente na fase de investigação preliminar e até o recebimento da inicial acusatória, razão por que a ele é dada (inclusive por coerência) o juízo de admissibilidade da acusação. Com isso, decide sobre as questões — começando pelas constitucionais — da referida fase, ou melhor, até o juízo de admissibilidade da acusação.

Deste modo, não tem iniciativa probatória (para se garantir sua imparcialidade em relação às referidas questões), por um lado, mas, pelo outro, impedido de julgar o mérito e remeter o material recolhido (salvo as provas irrepetíveis) para a fase seguinte, garante ao juiz do processo a originalidade cognitiva. E nisso residem os principais pilares de sustentação de um sistema acusatório democrático.

Se tudo isso ficou consumido na decisão do STF, o que sobra de importante ao juiz das garantias tupiniquim?

Por certo que tendo competência funcional, não será — e não deve ser — um mero juiz auxiliar do juiz do processo. Longe disso, embora alguns devam pensar desta forma e, outros, queiram que assim seja na prática, mesmo porque na estrutura inquisitorial do processo penal brasileiro quase tudo é possível. Algo do gênero, então, seria um desastre.

Mas atenção! Ter-se-á, no processo penal, dois juízes atuando no mesmo processo em primeira instância e, portanto, tende a diminuir substancialmente a carga de trabalho do juiz do processo. Não se perde — e isso é muito claro — a jurisdição, logo, o poder; e sim uma parte da competência, ou seja, do trabalho, ou, para ser mais técnico, do exercício jurisdicional. A decisão do STF, deste modo, vem ao encontro de uma demanda histórica da magistratura, qual seja, aquela que aponta para a redução da carga de trabalho.  

O que resta saber é se o juiz das garantias, com o arranjo feito pelo STF, irá  beneficiar tão só aos juízes que, hoje, carregam o trabalho inteiro da persecutio criminis.

A resposta, ao que parece, não se pode dar imediatamente, mesmo porque ela depende — e agora sem a base legal — daquilo que irão fazer os juízes na função de juiz das garantias. A subjetividade, enfim, define o desempenho da função e o que se pode esperar é que todos entendam o instituto como um elemento efetivamente importante do sistema acusatório, fazendo dele algo democrático mesmo que metido na estrutura inquisitorial.

E isso se pode afirmar porque se tratam de situações diferentes. Afinal, o sistema processual penal brasileiro é — reconhecidamente — inquisitorial e muitos — muitos! — juízes são democráticos, inclusive por aplicarem de modo estrito a CR (Constituição da República) e as leis, o que tem sido motivo de larga reputação, mesmo em tempos sombrios.

A decisão do STF, por outro lado, mostrou, escancaradamente, que muitos dos ministros não tinham o conhecimento desejado (em suma: que deveriam ter) sobre o tema dos sistemas processuais penais, o que acabou sendo determinante para a decisão tomada — e ficou estampado nos votos —, a qual se valeu de um decisionismo inconcebível e inaceitável. A exceção — e está registrado — foi o ministro Edson Fachin, que votou contra a maioria em grande parte das questões envolvendo a matéria, sendo sempre vencido. É certo, porém, que se trata de um tempo difícil para discutir tema tão sensível à democracia, o que se percebe pelos inquéritos conduzidos pelo ministro Alexandre de Moraes no STF.

De qualquer forma — e mais uma vez —, há de se notar que são coisas diferentes; e isso é importante perceber para não se deixar de pensar que as decisões de Brasília, hoje, quase que instantaneamente produzem efeitos no Brasil inteiro. Só Brasília que, não raro, não percebe isso; talvez porque em muitos aspectos siga longe demais do Brasil.

Fonte: Conjur – Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

STF vai discutir contribuição previdenciária de empregada sobre salário-maternidade

O Supremo Tribunal Federal vai discutir a constitucionalidade da incidência de contribuição previdenciária a cargo da empregada sobre o salário-maternidade pago pela Previdência Social. A matéria, tratada em Recurso Extraordinário, teve repercussão geral reconhecida por unanimidade pela Corte (Tema 1.274).

STF vai discutir contribuição previdenciária de empregada sobre salário-maternidade

Agência Brasil

Inicialmente, a 1ª Vara Federal de Jaraguá do Sul (SC) julgou o pedido da contribuinte improcedente, por entender que o caso era distinto do tratado pelo STF no RE 576.967, em que foi declarada inconstitucional a cobrança da contribuição previdenciária patronal sobre o salário-maternidade (Tema 72).

Essa decisão, porém, foi modificada pela 3ª Turma Recursal Federal em Santa Catarina em favor da contribuinte e contra a União, que foi condenada a restituir os valores recolhidos.

No RE apresentado ao Supremo, a União argumenta, entre outros pontos, que os ganhos dos empregados devem ser incluídos na base de cálculo das contribuições previdenciárias. Também sustenta que, ao se desonerar a empregada da contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade, esse tempo deixará de contar para fins de aposentadoria.

Repercussão geral
Ao se manifestar pela repercussão geral, a relatora, ministra Rosa Weber (aposentada), considerou que o caso tem acentuada repercussão jurídica, social e econômica, e lembrou que há pelo menos 83 processos no Supremo sobre o tema.

Ela explicou que a matéria envolve o custeio da seguridade social, o equilíbrio atuarial e financeiro do fundo previdenciário e a compatibilidade da contribuição previdenciária a cargo da empregada com o entendimento firmado pelo STF em precedente vinculante. Ainda não há data para o julgamento de mérito do recurso. Com informações da assessoria de imprensa do Supremo Tribunal Federal.

RE 1.455.643

Fonte: Conjur

Campanha Outubro Rosa no STJ tem palestra sobre mamografia aberta ao público

Em mais uma iniciativa da campanha Outubro Rosa, de conscientização para a prevenção do câncer de mama, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) promoverá, no próximo dia 19, uma nova edição do Consultório Aberto, com a palestra “Mamografia anual ou bianual? Ponderando riscos e benefícios para uma decisão consciente”.

A palestra vai acontecer na Sala de Reuniões Corporativas, no primeiro andar do Edifício Ministros I, na sede do STJ, em Brasília, a partir das 17h, e terá transmissão simultânea pelo canal do tribunal no YouTube.

O evento será aberto ao público, e os interessados podem se inscrever, até o dia da palestra, nestes linksmodalidade virtual modalidade presencial.

Participarão do debate as médicas Flávia Fernandes, mastologista do Hospital do Câncer Anchieta, representando a Sociedade Brasileira de Mastologia, e Salete da Silva Rios, coordenadora de ginecologia e obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB).

A mediação ficará a cargo do médico Alberto Zaconeta, professor adjunto de obstetrícia da Faculdade de Medicina da UnB e servidor da Secretaria de Serviços Integrados de Saúde (SIS) do STJ.

Exposição e doações

Durante este mês de outubro, a fachada do tribunal está iluminada em rosa, cor-símbolo da campanha. Entre outras atividades destinadas a esclarecer o público sobre a importância da prevenção, está sendo realizada a exposição A mulher e o câncer de mama no Brasil, aberta à visitação até 31 de outubro, na Praça do Servidor. A mostra é organizada pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca), em parceria com a Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

A SIS também recolherá doações de lenços, cabelos e acessórios para a Rede Feminina de Combate ao Câncer de Brasília. O material pode ser entregue no salão da Associação dos Servidores do STJ e do Conselho da Justiça Federal (ASSTJ) ou na recepção da SIS.

Fonte: STJ

Primeira mulher a presidir o STJ, ministra Laurita Vaz deixa a corte após 22 anos

Nos primeiros versos da obra Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, Cora Coralina apresenta uma mulher que usa a poesia para se reinventar, capaz de escalar a própria vida como se fosse uma montanha, removendo pedras e plantando flores em seu caminho.

Essa personagem que enfrenta os desafios com aguçada sensibilidade é frequentemente associada à escritora, mas, para muitos que conhecem de perto a ministra Laurita Vaz, também serviria para descrevê-la no curso de seus 45 anos de atividade jurídica – trajetória que se encerra na próxima quinta-feira (19), quando ela se aposenta após 22 anos de exercício do cargo no Superior Tribunal de Justiça (STJ).​​​​​​​​​

Após 45 anos de dedicação ao direito, 22 deles no STJ, Laurita Vaz se aposenta no próximo dia 19. | Foto: Gustavo Lima/STJ​

Laurita Vaz foi a primeira mulher a presidir o Tribunal da Cidadania e o Conselho da Justiça Federal (CJF), no biênio 2016-2018. Foi também a primeira mulher com origem no Ministério Público Federal (MPF) a integrar a corte.

Extensa carreira no Ministério Público e atuação perante tribunais

Goiana como Cora Coralina, Laurita Hilário Vaz nasceu no município de Anicuns e se formou em direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, em 1976. Logo em seguida, especializou-se em direito penal e direito agrário pela Universidade Federal de Goiás.

Em 1978, iniciou uma longa carreira no Ministério Público, primeiramente como promotora em Goiás, e, a partir de 1984, como procuradora da República, oficiando perante o Supremo Tribunal Federal (STF).

De 1986 até 1998, integrou o Conselho Penitenciário do Distrito Federal como representante do Ministério Público Federal, presidindo-o nos dois últimos anos. Paralelamente, trabalhou como professora de universidades de Brasília nas áreas de direito penal e processual penal. 

Ainda na década de 1990, atuou no STJ como subprocuradora-geral da República, até ser nomeada ministra pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em junho de 2001, na cadeira que antes pertencia ao ministro William Patterson.

Somados os períodos como representante do MPF na corte e como ministra, foram mais de três décadas de atividades no tribunal.

Trabalho intenso em busca da decisão justa e equilibrada

Marcos Brayner, coordenador da assessoria do gabinete da ministra, acompanhou essa trajetória desde 2000, quando Laurita Vaz ainda oficiava no STJ como subprocuradora-geral da República, e foi o secretário-geral da Presidência no período em que ela assumiu o comando da corte. A experiência adquirida no órgão ministerial foi determinante para que a ministra desenvolvesse sua maneira de julgar, avalia o assessor-chefe.

No dia a dia do tribunal, segundo Brayner, a ministra sempre se preocupou com o impacto de seu trabalho na vida das pessoas e da sociedade em geral; por isso mesmo, buscava entregar decisões justas e equilibradas, com um olhar cuidadoso para os hipossuficientes.  

“A sensibilidade que demonstra em seus julgamentos e votos não se opõe à necessidade de ser firme nas investigações, condenações e prisões por crimes reputados graves. Dispensa sempre um cuidado especial com causas que envolvem vulneráveis, como crianças, idosos e mulheres. É firme, sem perder o espírito fraternal”, definiu.

Grande número de processos julgados reflete dedicação profissional

Durante seu período no STJ, Laurita Vaz exerceu diversas funções de destaque. Antes de se tornar presidente da corte, em 2016, presidiu a Terceira Seção e a Quinta Turma, órgãos especializados em direito penal. Também ocupou cargos no CJF e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde foi corregedora-geral eleitoral de 2013 a 2014. Atualmente, integra a Corte Especial, a Terceira Seção e a Sexta Turma – colegiado do qual é presidente.

Nesses 22 anos, a ministra se colocou entre os membros do tribunal com maior número de julgados. Até julho último, ela havia proferido 377.433 decisões – o que representa uma média de 17.156 por ano, incluindo os períodos em que foi presidente e vice-presidente. No total, foram 56.639 acórdãos de sua relatoria e 320.794 decisões monocráticas. Entre os acórdãos, 14 resultaram de julgamentos relatados pela ministra no rito dos recursos repetitivos.

Redução do acervo processual e revolução digital marcaram presidência

O número crescente de processos que chegam à corte sempre foi uma preocupação da magistrada. O período em que ela atuou na presidência, entre 2016 e 2018, foi marcado pela expressiva redução de 25% no estoque processual – um feito inédito. Ao tomar posse no cargo, Laurita Vaz deixou claro que os esforços de sua gestão se concentrariam na atividade-fim do tribunal, visando julgamentos mais rápidos e com qualidade.

“O STJ não pode mais se prestar a julgar casos e mais casos, indiscriminadamente, como se fora uma terceira instância revisora. Não é. Ou, pelo menos, não deveria ser, porque não é essa a missão constitucional do tribunal”, afirmou a ministra na ocasião, ao anunciar sua disposição de intensificar as gestões junto ao Congresso Nacional em defesa da aprovação da emenda constitucional que viria a criar o chamado filtro de relevância do recurso especial.

A redução dos processos se deu por meio de uma série de iniciativas, como a criação de uma força-tarefa para auxiliar os gabinetes dos ministros, o investimento em gestão de precedentes e medidas para ampliação e reestruturação do Núcleo de Admissibilidade e Recursos Repetitivos (Narer), depois transformado na Assessoria de Admissibilidade, Recursos Repetitivos e Relevância (ARP). Além disso, foram implementadas inovações como o Plenário Virtual, a Central do Processo Eletrônico e o uso, pela primeira vez, da inteligência artificial para mapear e classificar processos.

Outro avanço tecnológico relevante do período foi a criação do Chancela, aplicativo para dispositivos móveis que permite a assinatura eletrônica de documentos, com o objetivo de facilitar a atuação dos relatores nos processos a partir de qualquer lugar onde estiverem.

Ministra revogou prisão após falha grave em reconhecimento fotográfico

Em seus votos como julgadora, Laurita Vaz deu importante contribuição para a formação da jurisprudência do STJ em matéria penal. Paralelamente ao rigor técnico de suas decisões, a sensibilidade diante dos grupos sociais vulneráveis se manifestou em diversos momentos, como na definição de parâmetros para aplicação da Lei Maria da Penha e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A seguir, algumas das principais decisões da magistrada.

Ao relatar o HC 769.783, em maio deste ano, a ministra determinou a soltura imediata de um porteiro – homem negro e morador da periferia – que foi condenado pela Justiça do Rio de Janeiro com base apenas no reconhecimento fotográfico. Segundo a defesa, a situação se repetia em outros 61 processos criminais, em que ele era investigado ou foi condenado com amparo apenas em uma foto apontada pelas vítimas.

Laurita Vaz e os demais ministros da Terceira Seção classificaram a situação como um “erro judiciário gravíssimo”. Para ela, os autos demonstraram que a descrição apresentada pela vítima para o suspeito do crime – “jovem, pardo, com cavanhaque e magro” – era genérica, incapaz de particularizar uma pessoa sem a indicação de outros elementos físicos.

“Merece destaque o fato de que, em audiência, a vítima não afirmou que havia reconhecido o paciente, em sede policial, com absoluta certeza. Ao contrário, alegou que, naquela ocasião, após visualizar as fotos, apenas sinalizou que possivelmente o réu seria o autor do crime”, disse a relatora.

Crime de exposição sexual de menores não exige nudez

Em abril de 2022, ao julgar um caso em segredo de Justiça, a Sexta Turma reafirmou que o sentido da expressão “cena de sexo explícito ou pornográfica”, trazida no artigo 241-E do ECA, não se restringe às imagens de genitália desnuda ou de relações sexuais.

Com base no princípio da proteção integral da criança e do adolescente, a ministra Laurita Vaz, relatora, entendeu que o alcance da expressão deve ser definido a partir da análise do contexto da conduta investigada, e é imprescindível verificar se há evidência de finalidade sexual – o que pode ocorrer sem a exposição dos genitais do menor. Para ela, a interpretação do ECA deve sempre considerar, entre outros aspectos, os fins sociais a que a lei se dirige e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

Por isso, prosseguiu a magistrada, é forçoso concluir que o artigo 241-E do estatuto, “ao explicitar o sentido da expressão ‘cena de sexo explícito ou pornográfica’, não o faz de forma integral e, por conseguinte, não restringe tal conceito apenas àquelas imagens em que a genitália de crianças e adolescentes esteja desnuda”.

Ações em curso não impedem aplicação do tráfico privilegiado

Sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.139), a ministra foi a relatora, em agosto de 2022, no julgamento que definiu a impossibilidade de utilização de inquéritos ou ações penais em curso para impedir a aplicação da redução de pena pela configuração do chamado tráfico privilegiado.

“Todos os requisitos da minorante do artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/2006 demandam uma afirmação peremptória acerca de fatos, não se prestando a existência de inquéritos e ações penais em curso a subsidiar validamente a análise de nenhum deles”, afirmou Laurita Vaz.

Caso Marielle: investigações foram mantidas no Rio de Janeiro

A ministra foi a relatora do incidente de deslocamento de competência (IDC 24) ajuizado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) com a intenção de transferir para a esfera federal a investigação sobre os mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, ocorrido em 2018, no Rio de Janeiro. Em maio de 2020, a Terceira Seção, por unanimidade, indeferiu o pedido.

Laurita Vaz avaliou que o caso não preenchia os requisitos necessários para a federalização e votou para que a investigação permanecesse sob a competência da Justiça estadual, da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro. Para a ministra, não se verificava desídia ou desinteresse na solução do crime por parte das autoridades estaduais.

Ministra relatou caso precursor de deslocamento de competência

A ministra também foi a relatora do IDC 2, julgado em outubro de 2010 – o primeiro caso de federalização aceito pelo STJ desde a criação do instituto pela Emenda Constitucional 45, de 2004.

Seguindo o seu voto, a Terceira Seção decidiu pela federalização do caso Manoel Mattos, advogado e vereador que denunciava a atuação de grupos de extermínio na divisa entre Pernambuco e Paraíba, com a participação de policiais. Ele foi morto a tiros em janeiro de 2009.

Laurita Vaz destacou as ameaças sofridas pelo vereador e por seus familiares, em um cenário de violência marcado por cerca de 200 homicídios com características de execução sumária, ocorridos na região ao longo de dez anos – situação que atraiu a atenção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Aproveitamento do estudo como forma de remição da pena

Em março de 2005, um precedente relatado pela ministra Laurita Vaz (REsp 256.273) contribuiu para a elaboração da Súmula 341, ampliando as possibilidades de ressocialização do preso.

Na época, o artigo 126 da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) previa apenas a possibilidade de remição por meio do trabalho, sem menção expressa ao estudo. A ministra, porém, atribuiu interpretação extensiva à atividade laboral. “É que a mens legislatoris, com o objetivo de ressocializar o condenado para o fim de remição da pena, abrange o estudo, em face da sua inegável relevância para a recuperação social dos encarcerados”, avaliou.   

Proteção aos direitos das mulheres foi tema recorrente de julgados

Laurita Vaz definiu, em sua atuação jurisdicional, entendimentos relevantes em matéria de violência contra a mulher. Sua preocupação com o tema foi exposta no dia 8 de março de 2023 (Dia Internacional da Mulher), quando a sessão de julgamento da Terceira Seção contou com a presença, por videoconferência, de Maria da Penha Maia Fernandes, cuja história de luta, após ser agredida pelo marido, inspirou o surgimento da Lei 11.340/2006, que leva seu nome.

Emocionada, Laurita Vaz exaltou o impacto da lei para as mulheres que ainda não vivem a plenitude da igualdade, pois são desprotegidas, violentadas e não têm trabalho digno – mulheres “sem rumo e horizontes”, que, na opinião da magistrada, necessitam ainda da ajuda das autoridades constituídas.

Lei Maria da Penha é aplicável em caso de ameaça feita por irmão

Em fevereiro de 2012, como relatora do REsp 1.239.850, a ministra estabeleceu que a Lei Maria da Penha se aplica em caso de ameaça feita contra mulher por irmão, ainda que eles não residam juntos. A magistrada avaliou que a aplicação da lei deve considerar a relação entre os sujeitos envolvidos, sendo desnecessária a demonstração de coabitação.

Segundo o processo, o irmão foi até a casa da vítima, onde fez ameaças e danificou seu carro. As intimidações continuaram por meio de mensagens pelo celular.

“Nesse contexto, inarredável concluir pela incidência da Lei 11.343/2006, tendo em vista o sofrimento psicológico em tese sofrido por mulher em âmbito familiar, nos termos expressos do artigo 5º, inciso II”, observou a relatora.

Fama da vítima não afasta incidência da lei

Dois anos depois, em caso que tramitou em segredo de Justiça, a Quinta Turma estabeleceu que o fato de a vítima ser figura pública renomada não afasta a competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para julgar o delito. O caso analisado envolvia uma atriz agredida em público pelo namorado com um tapa no rosto.

Para Laurita Vaz, o destaque da mulher no meio social, seja por situação profissional ou econômica, não afasta a incidência da Lei Maria da Penha, nos casos em que ela for submetida a violência decorrente de relação íntima afetiva.

Em outro processo (HC 477.723), a defesa alegou que a lei não poderia ser aplicada porque o acusado e a vítima estavam separados de fato havia 13 anos. Porém, de acordo com a ministra, sendo o agressor e a vítima ex-cônjuges, “pode-se concluir, em tese, que há entre eles relação íntima de afeto para fins de aplicação das normas contidas na Lei Maria da Penha”.

Fonte: STJ

Comissão promoverá audiência pública para debater educação nos espaços prisionais

A Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara dos Deputados promove na terça-feira (17) audiência pública para debater a educação nos espaços prisionais. A reunião foi solicitada pela presidente da comissão, deputada Luizianne Lins (PT-CE), e pelos deputados Luiz Couto (PT-PB) e Miguel Ângelo (PT-MG).

Os parlamentares lembram que o Plano Nacional de Educação (PNE) 2001/2010 estabeleceu como meta a implantação, em dez anos, da educação formal nas modalidades Educação de Jovens e Adultos (EJA) e ensino a distância (EAD) em todas as unidades prisionais do Brasil. No entanto, eles alertam que, após mais de 20 anos do PNE, somente 10% das pessoas privadas de liberdade no País têm acesso à educação básica nas unidades prisionais.

 
Audiência Pública - Exibição do documentário “Ithaka: A luta de Assange”. Dep. Luizianne Lins (PT-CE).
Luizianne Lins propôs o debate na Comissão de Direitos Humanos – Renato Araujo/Câmara dos Deputados

Ao propor o debate, os deputados também defenderam a elaboração de legislação específica e uma maior participação do Ministério da Educação “nas questões relacionadas aos profissionais de educação que atuam junto às pessoas que vão retornar à sociedade ao final da pena”.

Fonte: Câmara dos Deputados

Câncer de mama e dispensa discriminatória

O mês de outubro é conhecido mundialmente como Outubro Rosa pela campanha de prevenção do câncer de mama que tem como objetivo incentivar o autocuidado e informar sobre prevenção e tratamento da doença.

O câncer de mama é a primeira causa de morte por câncer na população feminina no Brasil, representando 16,3% do total de óbitos no período de 2016-2020, além de ser o tipo de câncer mais comum entre as mulheres em todo o mundo.

Segundo pesquisa do Instituto Nacional de Câncer do Ministério da Saúde (Inca), a estimativa é de 73.610 casos novos da doença para o ano de 2023, com 18.361 mortes, sendo 220 homens [1] e 18.139 mulheres (2021 — Atlas de Mortalidade por Câncer — SIM) [2].

A prevenção da doença é fundamental porque se diagnosticada na fase inicial, cerca de 95% dos casos de câncer de mama têm chance de cura, motivo pelo qual deve ser incentivado o autoexame a partir dos 20 anos; consultas médicas regulares; e, a realização de mamografias anualmente, a partir dos 40 anos.

A Lei nº 13.733, publicada em 2018, dispõe sobre as atividades da campanha Outubro Rosa para conscientização sobre o câncer de mama, com a iluminação de prédios públicos com luzes cor de rosa; promoção de palestras, eventos e atividades educativas; veiculação de campanhas de mídia e disponibilização à população de informações em bannersfolders e outros materiais ilustrativos e exemplificativos sobre a prevenção do câncer, que contemplem a generalidade do tema; além da realização de atos lícitos e úteis para a consecução dos objetivos da campanha.

O grande número de mulheres diagnosticadas com esse tipo de câncer impacta em toda a sociedade, inclusive no direito do trabalho. Tanto é que o Tribunal Superior do Trabalho (TST) tem aplicado a Súmula 443, presumindo discriminatória a dispensa da empregada acometida pela grave doença.

Em junho de 2023, o ministro Relator Sergio Pinto Martins conheceu do recurso de agravo e, no mérito, negou-lhe provimento, para manter a decisão do Tribunal Regional de origem, que em conformidade com a jurisprudência pacífica da Corte, consagrada na Súmula 443 do TST, entendeu ser discriminatória a despedida de empregada diagnosticada de neoplasia maligna de mama, senão vejamos:

AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO REGIONAL PUBLICADO NA VIGÊNCIA DAS LEIS Nº 13.015/2014 E Nº 13.467/2017- DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. A decisão monocrática está correta e não merece nenhum reparo, pois foi proferida em conformidade com a jurisprudência pacífica e notória desta Corte Superior, consagrada na Súmula 443 do TST, no sentido de que “presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego”. No presente caso, o Tribunal Regional consignou que “os documentos médicos apresentados com a petição inicial dão conta de ter, a reclamante, recebido diagnóstico de neoplasia maligna de mama em junho de 2017, tendo sido submetida a tratamento cirúrgico (mastectomia da mama direita e posterior reconstrução da mama com prótese de silicone), estando em acompanhamento e tratamento pós diagnóstico”. Ressaltou que a reclamada não negou desconhecer o estado de saúde da autoraque foi “despedida em pleno período de recuperação de uma doença que suscita forte estigma e preconceito, sendo inarredável a conclusão de que esta é nula de pleno direito”. Acrescente-se que a reclamada não trouxe nenhuma prova apta a justificar a dispensa da reclamante, presumindo-se, portanto, que a rescisão do contrato de trabalho foi discriminatória. Agravo de que se conhece e a que se nega provimento. (TST – Ag-AIRR: 00207635620185040001, Relator: Sergio Pinto Martins, Data de Julgamento: 21/06/2023, 8ª Turma, Data de Publicação: 26/06/2023) — grifo nosso.

Verifica-se que, no caso em epígrafe, os documentos médicos apresentados comprovaram que a reclamante, diagnosticada com neoplasia maligna de mama, foi submetida a tratamento cirúrgico (mastectomia da mama), estando em acompanhamento e tratamento, quando foi dispensada. Ademais, o fato de a autora estar apta para o trabalho, na ocasião da dispensa, não foi capaz de afastar a prova da discriminação em razão do estado de saúde da trabalhadora, já que esta foi despedida em pleno período de recuperação de uma doença grave que suscita forte estigma e preconceito.

No mesmo sentido foi a decisão da 5ª Turma do TST, que manteve a determinação de reintegração ao emprego de uma assistente administrativa dispensada, sem justa causa, quando fazia tratamento de câncer de mama, acrescida da condenação ao pagamento de R$ 20 mil de indenização à empregada em decorrência da dispensa, considerada discriminatória pelo colegiado [3].

Assim, é fundamental que a sociedade esteja atenta para evitar a ocorrência da doença, divulgando e participando da campanha do Outubro Rosa e da necessidade de realização de autoexame e dos cuidados mínimos com a saúde, especialmente porque o câncer de mama é uma doença que, se detectada precocemente, tem altos índices de cura!


[1] Apesar de raro, o câncer de mama também pode acometer homens.
Os casos representam 1% do total, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA). – https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/outubro/brasil-registrou-207-obitos-de-homens-por-cancer-de-mama-em-2020

[2] https://www.gov.br/inca/pt-br/assuntos/cancer/tipos/mama

[3] Processo: Ag-AIRR-1001196-48.2016.5.02.0033

Fonte: Conjur

Legalização do uso da cannabis: medo e ajustes jurisprudenciais necessários

A publicização midiática do julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659, oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal decidirá sobre a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei n.º 11.343/2006 (Lei de Drogas), favoreceu o amplo debate sobre o tema, especialmente nas redes sociais, muitas vezes com projeções alarmantes sobre as consequências que a eventual descriminalização da maconha promoverá no cotidiano brasileiro.

A disseminação a jato de desinformações desnudou a necessidade de uma melhor reflexão sobre o uso de drogas, sobre o estágio civilizacional adequado para se experimentar a nova perspectiva e sobre os princípios de justiça que o envolvem.

A partir dos estudos lançados em ensaios anteriores desta coluna, se pretende aqui debater a respeito da inescapável “marcha do espírito” em favor da legalização do uso de drogas, do reconhecimento da maturidade social para o enfrentamento do fenômeno psicológico representado pelo medo e das estratégias empregadas pelo STF e pelo STJ para, paulatinamente, ajustar a interpretação da constituição, do direito e do processo penal à realidade mais recente que se consolida no horizonte. A conclusão conclama à perfeita delimitação da matéria a ser travada no âmbito do STF e aquela da competência infraconstitucional do STJ, evitando-se o contrassenso de eventuais divergências entre os dois tribunais máximos do país.

Confirmando a primeira hipótese, a exploração da maconha para fins medicinais bem demonstra o desbordo do plano meramente jurídico sobre o tema. Os pacientes simplesmente não podem ser alijados do tratamento canábico por mero capricho do legislador ou por imposições de ordem moral ou religiosa. Por outro lado, a indústria e o mercado igualmente estão reagindo às limitações da produção e cada vez mais pressionam para a normalização do plantio, da manipulação e do comércio da droga. A aceitação do uso recreativo em diversos países, como Estados Unidos, Canadá, Portugal, Espanha, Holanda, Argentina e Uruguai, não deixa dúvida sobre o caráter irrefreável da legalização da maconha.

O negócio já movimenta milhões de dólares e se sedimentou sem maiores rupturas nos países que a ele aderiram. Rápida pesquisa no âmbito do Google bem demonstra a fácil captura da planta pelo agro e a sua conformação com a indústria e o comércio.[1]

Além do reconhecido emprego medicinal, a cannabis e a sua variante, a fibra de cânhamo, são empregadas como matéria prima em mais de 5.000 (cinco mil) produtos de diferentes domínios da cadeia produtiva, como a indústria têxtil, a construção civil, o setor de combustíveis, entre outras. A sua regulamentação, tal como ocorrido nos EUA, onde já representa o quinto maior cultivo,[2] certamente abrirá espaço para o surgimento de outros mercados que ajudarão a desenvolver a economia.

Portanto, é uma realidade que não pode mais ser ignorada pelos poderes.

Ocorre que o discurso proibicionista ainda mantém o assunto como verdadeiro tabu, estigmatizando os usuários como corrompidos, amorais e perigosos, enfim, um risco para “as pessoas de bem”.

Conta muito com o medo decorrente dos falsos alarmes morais, a segunda premissa trabalhada neste artigo.

Para não se alongar o debate em demasia, tomam-se emprestadas as lúcidas conclusões do criminólogo Riccardo Cappi, professor da Uneb (Universidade do Estado da Bahia), ao estudar a influência imposta pelo medo para justificar o movimento em prol da redução da maioridade penal, que em tudo se aplica às drogas. Afirma o autor[3]:

A partir do medo, a percepção sobre o problema é reduzida. O meu medo faz com que eu esteja focado naquilo que pode me atingir, sem ver a complexidade, a circunstância, a história, as possibilidades e as alternativas. O medo e a dor são legítimos. Mas não podemos pautar políticas públicas com base no medo […]. Quando o estado e parlamentares apresentam uma saída distante da legalidade, essa solução mágica passa a ser atraente e a exclusão radical se apresenta como remédio. As entidades tomam a decisão de condenar o indivíduo à morte social. Na criminologia, a questão da periculosidade sempre foi um problema. É impossível fazer uma previsão absoluta e certeira. Há uma relativa incerteza com a qual temos que trabalhar.

Há o medo de a legalização das drogas determinar a piora do quadro e elevar o número de dependentes. Existe o caráter doloroso e amedrontador de que esse pesadelo possa fugir do controle e se tornar endêmico. Com base no discurso catastrófico, políticos reacionários se vestem com a capa da moralidade para obter ganhos junto ao eleitorado cristão-conservador. Tudo muito fora da racionalidade.

Daí a importância do debate sereno e equilibrado sobre a questão. A propósito, vale registrar o recente artigo assinado por David Pinter Cardoso aqui nesta coluna, quando projetou o círculo socialmente maduro alcançado pela sociedade brasileira a partir dos seguintes tópicos: (i) proibir drogas não reduz a oferta e nem a demanda de drogas ilícitas; (ii) regulamentar o uso não necessariamente aumenta o consumo; (iii) maior risco à saúde não guarda relação com drogas serem proibidas; (iv) uso de drogas não é problema de saúde; o problema é o uso abusivo de drogas; (v) a maconha não é porta de entrada para outras drogas; (vi) drogas não geram crimes; proibir drogas sim e (vii) mais prisões não necessariamente reduzem criminalidade.[4]

Apesar disso, o ambiente político atual não permite supor que a formalização da legalização do uso de drogas será enfrentada racionalmente por leis aprovadas pelo Legislativo ou por decisões do Executivo, ficando a problemática, mais uma vez, entregue ao Poder Judiciário.

A corte constitucional (STF) e a corte infraconstitucional (STJ) não fugiram do compromisso e passaram a enfrentar o tema, ambas com estratégias bem calculadas de não favorecer a ruptura brusca do modelo comportamental, indicativo claro de que também não se sentem imunes ao angustiante medo de não saber ao certo até onde a mudança alcançará.

Para a sorte de todos, embora nutrindo a tendência natural de se preocupar mais com os aspectos negativos em detrimento dos alcances positivos das decisões, as maiores instâncias do Poder Judiciário decidiram romper com a paralisia que se arrastava há anos sobre a sempre criticada criminalização do uso de drogas.

Desde a primeira edição do seu festejado “Introdução crítica ao direito penal brasileiro”, em 1990, Nilo Batista já não aceitava a tipificação penal do usuário:[5]

As aplicações legislativas do princípio da lesividade também comparecem como fundamento parcial da impunibilidade do chamado crime impossível (art. 17 CP). O mesmo fundamento veda a punibilidade da autolesão, ou seja, a conduta extrema que, embora vulnerando formalmente um bem jurídico, não ultrapassa o âmbito do próprio autor, como, por exemplo, o suicídio, a automutilação e o uso de drogas. No Brasil, o artigo 16 da Lei 6368/76 incrimina o uso de drogas em franca oposição ao princípio da lesividade e as mais atuais recomendações político-criminais.

Ainda assim, mesmo tardiamente, deve-se louvar as posturas atuais das cortes superiores.

Esta coluna também já deixou registradas as principais críticas ao controle penal e ao contundente fracasso da política de guerra às drogas. Não existem mais ilusões a esse respeito. Portanto, é de se aplaudir o movimento jurisprudencial ocorrido tanto no STF como no STJ.

O primeiro, em seu papel maior de guardar a Constituição, corajosamente colocou em pauta e iniciou o julgamento do citado Recurso Extraordinário n.º 635.659, caminhando para confirmar a inconstitucionalidade da tipificação do uso de maconha.

Sem dúvida, empregou postura cautelosa e limitou bastante o alcance do julgado, o que não retira o mérito do enfrentamento da questão e da busca por critérios formais para distinguir o usuário do traficante.

No artigo publicado em 8 de setembro passado, Cristiano Maronna descortinou o desenvolver do julgamento e deixou assentados importantes apontamentos na esperança de contribuir para que, ao final, o STF estabeleça parâmetros de produção e validade dos indícios, afastando-se da centralidade do testemunho policial e das provas a ele ancoradas para a tipificação do tráfico de drogas. [6]

Em acréscimo, considera-se fundamental a convalidação pelo STF da interpretação da legislação infraconstitucional adotada pelo STJ a partir de um sem-número de julgados sobre a matéria.

Controle da constitucionalidade pelo STF; controle da legalidade pelo STJ.

A jurisprudência atual do STJ passou a atacar o instrumento mais perverso da política de guerra às drogas, qual seja, o paulatino rebaixamento do standard probatório para fundamentar o decreto de prisões preventivas e a prolação de sentenças condenatórias.

Entre outros julgados, cuidou (i) de restabelecer a observância dos rigores legais para a validade das buscas domiciliares (HCs 598.051/SP e 766.654/SP), (ii) de considerar insuficientes para a condenação os conjuntos probatórios calcados somente em elementos informativos do inquérito ou em testemunhos indiretos para a sentença condenatória (AgRg no REsp 2.026.690/BA), (iii) de resgatar as formalidades exigidas pelo art. 226 do CPP para o reconhecimento de pessoas (HC nº 598.886/SC) e (iv) de elevar o standard probatório exigível para a busca pessoal ou veicular, sem mandado judicial (RHC 158.580/BA).

Recuperou, dessa forma, a vitalidade das normas infraconstitucionais encarregadas de dar efetividade aos postulados de garantia insertos na CF/88, favorecendo, rapidamente, melhores índices no enfrentamento da superlotação carcerária.

Contudo, conforme informado por esta ConJur, recente julgado do STF, sob o fundamento de violação do Tema 280 de Repercussão Geral, derrubou um acórdão do STJ que reconheceu a nulidade do flagrante em razão da violação de domicílio e, por conseguinte, das provas decorrentes do ato.

Vale destacar o seguinte trecho do voto condutor:[7]

[…] o Superior Tribunal de Justiça, no caso concreto ora sob análise, após aplicar o Tema 280 de Repercussão Geral dessa SUPREMA CORTE, foi mais longe, alegando que, não obstante os agentes de segurança pública tenham recebido denúncia anônima acerca do tráfico de drogas no local e o suspeito tenha empreendido fuga para dentro do imóvel ao perceber a presença dos policiais, tais fatos não constituiriam fundamentos hábeis a permitir o ingresso no domicílio do acusado, haja vista que não houve nenhuma diligência investigativa prévia apta a evidenciar elementos mais robustos da ocorrência do tráfico naquele endereço […].
Nesse ponto, não agiu com o costumeiro acerto o Superior Tribunal de Justiça, pois acrescentou requisitos inexistentes no inciso XI, do artigo 5º da Constituição Federal, desrespeitando, dessa maneira, os parâmetros definidos no Tema 280 de Repercussão Geral por essa SUPREMA CORTE.

A decisão, portanto, não merece prosperar.

Na presente hipótese, o Tribunal da Cidadania extrapolou sua competência jurisdicional, pois sua decisão, não só desrespeitou os requisitos constitucionais previstos no inciso XI, do artigo 5º da Constituição, restringindo as exceções à inviolabilidade domiciliar, como também, inovando em matéria constitucional, criou uma nova exigência — diligência investigatória prévia — para a plena efetividade dessa garantia individual, desrespeitando o decidido por essa Suprema Corte no Tema 280 de Repercussão Geral […].

Incabível, portanto, ao Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo a imposição de providências administrativas como medida obrigatória para os casos de busca domiciliar, sob o argumento de serem necessárias para evitar eventuais abusos, além de suspeitas e dúvidas sobre a legalidade da diligência, em que pese inexistir tais requisitos no inciso XI, do artigo 5º da Constituição, nem tampouco no Tema 280 de Repercussão Geral julgado por essa Suprema Corte.

O embaraço criado com a decisão acima não traz nenhum benefício para a segurança jurídica e representa grave retrocesso no avanço jurisprudencial iniciado pelo STJ em favor da maior racionalidade na aplicação da lei antidrogas.

Com a devida licença, tanto o objeto do Tema 280 como as circunstâncias fáticas que envolveram o caso concreto dizem muito mais respeito à legalidade do que à constitucionalidade, ou seja, a matéria é predominantemente de ordem infraconstitucional, da competência do STJ e não do STF.

O principal instrumento de garantia do indivíduo frente ao poder punitivo estatal é o princípio da legalidade, cuja origem histórica remonta à luta contra o arbítrio e a opressão impostos pelo sistema penal do final do século 18. Portanto, mais do que favorecer a igualdade de todos perante a lei, a busca pela uniformização da interpretação da lei penal e processual penal visa à proteção da liberdade individual, somente alcançável através da estrita observância do princípio da legalidade.

Decidir acerca da regularidade da prisão em flagrante determinada por busca domiciliar sem mandado judicial é tarefa exclusiva do STJ, pois, afinal, todo o procedimento está descrito e limitado em lei federal. Desse modo, é dele a competência para “promover a interpretação condizente do tipo com o espírito do ordenamento imposto pelo Estado Democrático de Direito, adequando o seu alcance até o limite permitido pelo princípio da legalidade”. [8]

A função de zelar pela uniformização da lei federal não pode e nem deve ser repartida com o STF, sob pena de o STJ se transformar em mera instância de passagem. As decisões do Superior Tribunal de Justiça, tratando-se de matéria infraconstitucional, “hão de ser finais, irrecorríveis, com autoridade de coisa julgada”. [9]

Nesse instante crucial da tão esperada travessia jurisprudencial para o enfrentamento mais efetivo, mais inteligente e mais humanitário do tráfico de drogas e das organizações criminosas que gravitam ao seu redor, avultam as singulares missões de guarda da Constituição pelo STF e de uniformização da interpretação da lei federal pelo STJ.

Espera-se, serenamente, que saibam divisar e respeitar reciprocamente a elevada competência de cada um.


[1] Os seguintes sítios eletrônicos demonstram a força do negócio: https://herbarium.la/https://highwaycannabis.com/https://www.thewoodsweho.com/https://en.cannabisstoreamsterdam.com/https://www.royalqueenseeds.pt/https://www.sirius.nl/https://plantamaestra.cl/https://expocannabis.uy/.

[2] Sobre a assertiva: https://forbes.com.br/forbesagro/2022/11/cannabis-legal-nos-eua-rende-us-5-bi-aos-produtores-em-2022/.

[3] Cappi, Ricardo. A maioridade penal nos debates parlamentares: motivos do controle e figuras de perigo. São Paulo: Editora Casa do Direito, 2017.

[4] CARDOSO, David Pinter. O básico sobre a criminalização de drogas. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-set-29/repensando-drogas-basico-criminalizacao-drogas; Acesso em 11.10.2023.

[5] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 92-3.

[6] MARONNA, Cristiano.  Ganhou, playboy!: o standard probatório no crime de tráfico de drogas. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2023-set-08/ganhou-playboy-standard-probatorio-trafico-drogas>. Acesso em 11.10.2023.

[7] Disponível em < file:///C:/Trabalho/icp%20e%20mais/repensando/stf-cita-inovacao-derrubar-acordao-stj.pdf>. Acesso em 11.10.2023.

[8] MARCHI JÚNIOR, Antônio de Padova. Princípio da legalidade penal: proteção pelo STJ e parâmetros de interpretação. Belo Horizonte: Del Rey. 2016, p. 178.

[9] NAVES. Nilson Vital. O Superior Tribunal e a Questão Constitucional. Revistra dos Tribunais. São Paulo: RT, v. 797, p. 28-42, mar. 2002.

Fonte: Conjur

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